domingo, 28 de abril de 2019

François Mauriac, O Mistério dos Frontenac


Antes de ser editado em livro pela Grasset em 1933, O Mistério dos Frontenac (Le Mystère Frontenac), de François Mauriac, foi publicado em cinco folhetins na La Revue de Paris, entre Dezembro de 1932 e Fevereiro de 1933. A tradução portuguesa, de Luís Forjaz Trigueiros, que também assina um prefácio, é de 1956, publicada pela Editora Ulisseia. O tempo da narrativa é o da segunda década do século XX, no período que antecede a Grande Guerra de 1914-1918. Apesar das personagens relevantes possuírem contornos delineados e diferenciados, que os individualizam, a obra de Mauriac põe em acção uma personagem colectiva, a família Frontenac. Esta opção narrativa indica de imediato uma visão que não se confunde nem com as glórias individualistas da cosmovisão liberal nem com as preocupações sociais da mundividência socialista. O mundo que emerge do romance é tipicamente burguês mas de tonalidade católica.

A família não deve ser entendida apenas no sentido biológico e afectivo, mas como pedra angular do mundo burguês, isto é, num sentido social. É nela que uma certa relação com o mundo dos negócios se preserva e se transmite de geração em geração. Do ponto de vista histórico, as velhas tradições sociais ligadas aos estados sociais foram aniquiladas pela Revolução Francesa, nos finais do século XVIII. A única tradição viva é a do terceiro estado e é na família que ela se transmite, não a todos os membros, mas a um deles que acaba por ter um papel patriarcal, cuidando dos negócios e dos outros membros. A família, enquanto veículo de tradição, encontra o seu fundamento na fé religiosa. A comunidade biológica é trabalhada e metamorfoseada pela comunhão espiritual, pelas crenças e ritos que solidificam a volubilidade das ligações naturais.

A família Frontenac, tal como aparece no livro, é já uma família amputada. Michel Frontenac morre jovem e deixa a sua mulher, Blanche, com cinco filhos. Três rapazes e duas raparigas. Há também Xavier Frontenac, irmão do falecido Michel. A narrativa estrutura-se em torno de quatro personagens. Blanche, que apenas é Frontenac pelo casamento, Xavier e dois dos rapazes, o mais velho Jean-Louis e Yves. É neste quarteto que Mauriac tece as linhas do espírito de família, mostrando também as suas contradições e os eventuais pontos de fuga. De certa maneira, em todas estas personagens existem pontos de fuga, que ameaçam a tradição e podem pôr em causa a própria família. No entanto, o poder de atracção é de tal maneira poderoso que acaba por debelar as ameaças que a vida e a passagem do tempo colocam ao clã.

Se se pretender fazer uma leitura do título da obra, o mistério dos Frontenac é esse poder atractor dos vínculos da família burguesa. Esse poder é misterioso pois não reside naquilo que pode ser explicado apenas pela razão. Não são os interesses económicos, por exemplo, que justificam que a família seja observada como uma personalidade – e, romanescamente, como personagem. Não é também, a mera dimensão biológica – acrescida pelo desenvolvimento de laços de afecto – que explica aquele clã. É como se existisse um espírito vindo do passado, no qual Blanche se integra e assume como seu, que encarna nos diversos membros e lhes dá coerência e coesão. Esse espírito – talvez o espírito dos antepassados – não se deixa apreender pelo olhar frio a analítico da razão, mostrando-se apenas numa cultura comum, onde a religião possui um papel central, e nos afectos que devem ser compreendidos como indicadores de reconhecimento de pertença a uma mesma pátria, com os seus costumes e linguagem.

O romance tematiza os diversos pontos de fuga das personagens centrais. A vida misteriosa do tio Xavier em Angoulême e, depois, em Paris, sempre longe dos seus familiares, que protege e cujos bens defende. A sombra da morte que, premonitoriamente, paira sobre Blanche, a matriarca que vinda de fora encarna o espírito da família. O delíquio intelectual de Jean-Louis, o mais velho dos irmãos Frontenac, que tem a ousadia de pensar em ir estudar Filosofia e fazer vida de académico. A natureza mística e poética do adolescente Yves, que se transmuta em dândi na juventude. Em todos eles compreende-se a existência de forças obscuras de dissolução, mas o mistério da família permite-lhes chegar unidos a esse momento crucial da História da Europa, a primeira Grande Guerra, onde todos os laços do mundo antigo se dissolvem.

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