quarta-feira, 30 de maio de 2018

A eutanásia, dois problemas

Salvador Dali, El caballero de la muerte, 1934

Ontem foram discutidos na Assembleia da República quatro projectos de lei que visavam legalizar a eutanásia. Todos os projectos foram chumbados. Contudo, segundo alguns deputados, o problema voltará ao parlamento na próxima legislatura. A questão parece-me demasiado complexa para que não haja sobre ela uma discussão muito mais ampla e profunda. Até à tomada de posição do Partido Comunista Português, a questão estava inquinada com a suspeita de que a oposição à eutanásia se devia, em última análise a motivações religiosas, as quais não podem ser impostas a não crentes. A recusa do PCP em apoiar a legalização deslocou a discussão para outro plano que não o religioso.

Há dois problemas que me afligem na legalização da eutanásia. O deputado comunista João Oliveira argumentou que "a legalização da eutanásia não pode ser apresentada como matéria de opção ou reserva individual". É aqui que se encontra um dos principais problemas. Não terá qualquer pessoa o direito à propriedade de si mesma e a dispor de si e da sua vida como entender? Não estará incluído no direito de dispor de si o direito a determinar a sua morte? Coloquemos de lado o espinhoso problema de alguém ser propriedade de si mesmo. Poderá haver um direito a morrer?

A morte é o momento em que cessa a capacidade de uma pessoa reivindicar os seus direitos. Reivindicar um direito a morrer é exigir um direito para fazer cessar a capacidade de reivindicar qualquer direito. Ora os direitos humanos – onde vem em primeiro lugar o direito à vida – são considerados no mundo ocidental inalienáveis. Será compatível com a estrutura dos direitos humanos um suposto direito a morrer, isto é, um direito a alienar todos os seus direitos? Se considerarmos os direitos humanos – entre eles, o direito à vida – como incondicionais, então não me parece possível, sem que o direito à vida se relativize e se torne alienável, invocar um direito a ser auxiliado a morrer.

Vejamos o caso de outro ponto de vista. A morte, na verdade, não é um direito é um facto. Um indivíduo, com poder para isso, pode produzir esse facto suicidando-se. É um acto privado que se funda numa capacidade pessoal e não em qualquer direito. Muitos doentes terminais não estão em condições de o fazer. A defesa da legalização da eutanásia responde a essa incapacidade criando a possibilidade de, em certas circunstâncias, o Estado não criminalizar a participação de terceiros na morte daquele que é incapaz de pôr fim à vida.

O que significa isto? Significa que se passa do suicídio como acto privado para o suicídio assistido e a eutanásia voluntária como actos públicos, juridicamente permitidos. Esta transição não é inócua. Será admissível ao Estado permitir, através do reconhecimento do direito a executar a eutanásia, que alguém participe na morte de outra pessoa, mesmo que a pedido desta? Se exceptuarmos o caso extremo da guerra, o Estado não apenas não permite que alguém mate outra pessoa como se impediu a si próprio de matar. Legalizar a eutanásia é permitir que alguém ponha fim a uma vida e, se o Serviço Nacional de Saúde fosse convocado para tal, é conferir a um serviço do Estado o poder de tirar a vida.

A eutanásia, para além das questões religiosas, as quais dizem apenas respeito aos crentes e não podem ser projectadas sobre a vida dos não crentes, e dos dramas terríveis que envolvem as pessoas em estado terminal, vem colocar em cheque duas crenças fundamentais do nosso modo de vida. Nós acreditamos que os direitos humanos são incondicionais e inalienáveis. A permissão da eutanásia mostra-os como relativos e alienáveis. Acreditamos que o Estado não pode permitir que alguém mate e que ele próprio não pode matar. A eutanásia vem abrir uma excepção numa crença tida, também ela, como incondicional. A sociedade precisa de pensar mais maduramente o problema.

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Maio de 68 e democracia

A minha crónica no Jornal Torrejano.


Passam este mês 50 anos dos acontecimentos que ficaram conhecidos por Maio de 68, um conjunto de revoltas estudantis que se prolongaram numa onda grevista, sem precedentes, dos operários franceses. Por norma, salienta-se a natureza excepcional desses acontecimentos, onde se aliaram reivindicações libertárias dos estudantes, na área dos comportamentos sociais e sexuais, com as exigências sindicais bem mais prosaicas por parte significativa da mão-de-obra francesa. Aos acontecimentos – fundamentalmente, às exigências estudantis – ficou adstrito todo um folclore que nunca deixou de assombrar a política de uma certa Europa. Nem sempre se afirma, porém, com suficiente clareza, que as eleições democráticas de 30 de Junho desse ano liquidaram, no plano político, o processo começado na Universidade de Paris, Nanterre, com o movimento espontaneísta e libertário do 22 de Março.

As autoridades francesas começaram por tentar travar a crise estudantil através da repressão, recorrendo à violência policial. Foi como usar gasolina para apagar uma fogueira. Os acontecimentos políticos duraram cerca de dois meses e morreram nas eleições antecipadas. Ao devolver a palavra à população, o problema político ficou resolvido. O poder adquiriu uma nova legitimidade, embora o fim político do general de Gaulle tivesse ficado traçado. A revolta dissolveu-se como que por encanto. Passados cinquenta anos, numa altura em que a democracia representativa parece sofrer de uma grave doença, que alguns parecem desejar que seja fatal, não será descabido sublinhar este facto tantas vezes esquecido pela nostalgia dos soixante-huitards reais ou imaginários.

O Maio de 68 foi uma porta por onde passou muito do que estava em gestação na sociedade francesa e ocidental. O Vaticano II, a guerra do Vietname, a descolonização da Argélia, a prosperidade do pós-segunda-guerra, a descoberta e legalização da pílula, tudo isso tinha gerado tensões de natureza social, política e comportamental, as quais precisavam de uma abertura para emergirem no palco do mundo. O Maio de 68 foi essa abertura. Muito do que entrou por essa porta tornou-se o nosso modo de vida. Isso e a mitologia que foi produzida nos anos subsequentes criaram uma névoa que oculta o essencial. As dinâmicas libertária e esquerdista do movimento, ambas claramente antidemocráticas empalideceram e morreram na consumação de um acto eleitoral. É desconsolador chamar a atenção para o facto, mas nestes dias difíceis para a democracia, é bom não esquecer os recursos que esta possui.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

A nossa pátria

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Ao comprar a nova tradução de Frederico Lourenço da Odisseia de Homero, lembrei-me da célebre frase de Fernando Pessoa ou, melhor, de Bernardo Soares: Minha pátria é a língua portuguesa. Há nesta frase um equívoco qualquer. A língua portuguesa, como outras, é apenas uma pátria de acolhimento. Na verdade, somos uma espécie de refugiados de uma pátria mais arcaica e fundamental. Que pátria é essa? É aquela que Frederico Lourenço, através das suas traduções de Homero e da Bíblia, está a expor aos portugueses. Não é uma pátria territorial, mas uma herança com cerca de três milénios.

A nossa pátria é a poesia dos gregos. De Homero, de Hesíodo, de Píndaro, de Ésquilo, de Sófocles e de muitos outros. A nossa pátria é a filosofia de Platão e de Aristóteles. A nossa pátria é a poesia latina de Horácio, Ovídio, Virgílio. Inclui Cícero, Marco Aurélio, Tito Lívio. A nossa pátria é o Antigo Testamento e o Novo Testamento, Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino. Apesar de esforços hercúleos de alguns – como Frederico Lourenço –, a nossa pátria arcaica está a ser corroída pelo abandono a que nós, seus filhos e cidadãos, estamos a votá-la.

É nos autores clássicos greco-latinos e nos dois Testamentos, que constituem o livro sagrado do Cristianismo, que estão os fundamentos daquilo que somos. É lá que residem as fontes que nos alimentaram nos últimos milénios. A descristianização e o abandono, na instrução escolar, da leitura dos clássicos estão a introduzir, desde há décadas, uma brecha entre as gerações actuais e fundo cultural que lhes deu origem, sentido e substância. A partir de certa altura, parece ter-se constituído uma conspiração com a finalidade de cortar as novas gerações da ligação ao passado e apagar, na sua memória, o conhecimento dessa herança que nos trouxe até aqui.

A aventura do homem ocidental não começou com a revolução científica do século XVII, o Iluminismo, a revolução industrial e tecnológica, o liberalismo e a democracia. Começou muito mais cedo, começou nesse tempo e com essa herança que hoje queremos esquecer. Esquecer a nossa origem não é apenas um problema de má memória mas um efectivo suicídio colectivo. Sem a memória do passado, a identidade torna-se de tal maneira frágil que seremos levados por um qualquer vendaval que a História está sempre pronta a oferecer. A leviandade com que estamos a descartar os clássicos greco-latinos e o Cristianismo, a matar a nossa pátria arcaica, é o sintoma de uma doença que tem todo o ar de ser fatal.