Salvador Dali, El caballero de la muerte, 1934
Ontem foram discutidos na Assembleia da República quatro
projectos de lei que visavam legalizar a eutanásia. Todos os projectos foram
chumbados. Contudo, segundo alguns deputados, o problema voltará ao parlamento
na próxima legislatura. A questão parece-me demasiado complexa para que não
haja sobre ela uma discussão muito mais ampla e profunda. Até à tomada de
posição do Partido Comunista Português, a questão estava inquinada com a
suspeita de que a oposição à eutanásia se devia, em última análise a motivações
religiosas, as quais não podem ser impostas a não crentes. A recusa do PCP em
apoiar a legalização deslocou a discussão para outro plano que não o religioso.
Há dois problemas que me afligem na legalização da eutanásia.
O deputado comunista João Oliveira argumentou que "a legalização da
eutanásia não pode ser apresentada como matéria de opção ou reserva
individual". É aqui que se encontra um dos principais problemas. Não terá qualquer
pessoa o direito à propriedade de si mesma e a dispor de si e da sua vida como
entender? Não estará incluído no direito de dispor de si o direito a determinar
a sua morte? Coloquemos de lado o espinhoso problema de alguém ser propriedade
de si mesmo. Poderá haver um direito a morrer?
A morte é o momento em que cessa a capacidade de uma pessoa
reivindicar os seus direitos. Reivindicar um direito a morrer é exigir um
direito para fazer cessar a capacidade de reivindicar qualquer direito. Ora os
direitos humanos – onde vem em primeiro lugar o direito à vida – são considerados
no mundo ocidental inalienáveis. Será compatível com a estrutura dos direitos
humanos um suposto direito a morrer, isto é, um direito a alienar todos os seus
direitos? Se considerarmos os direitos humanos – entre eles, o direito à vida –
como incondicionais, então não me parece possível, sem que o direito à vida se
relativize e se torne alienável, invocar um direito a ser auxiliado a morrer.
Vejamos o caso de outro ponto de vista. A morte, na verdade,
não é um direito é um facto. Um indivíduo, com poder para isso, pode produzir
esse facto suicidando-se. É um acto privado que se funda numa capacidade
pessoal e não em qualquer direito. Muitos doentes terminais não estão em
condições de o fazer. A defesa da legalização da eutanásia responde a essa
incapacidade criando a possibilidade de, em certas circunstâncias, o Estado não
criminalizar a participação de terceiros na morte daquele que é incapaz de pôr
fim à vida.
O que significa isto? Significa que se passa do suicídio
como acto privado para o suicídio assistido e a eutanásia voluntária como actos
públicos, juridicamente permitidos. Esta transição não é inócua. Será admissível
ao Estado permitir, através do reconhecimento do direito a executar a eutanásia,
que alguém participe na morte de outra pessoa, mesmo que a pedido desta? Se
exceptuarmos o caso extremo da guerra, o Estado não apenas não permite que
alguém mate outra pessoa como se impediu a si próprio de matar. Legalizar a
eutanásia é permitir que alguém ponha fim a uma vida e, se o Serviço Nacional
de Saúde fosse convocado para tal, é conferir a um serviço do Estado o poder de
tirar a vida.
A eutanásia, para além das questões religiosas, as quais
dizem apenas respeito aos crentes e não podem ser projectadas sobre a vida dos
não crentes, e dos dramas terríveis que envolvem as pessoas em estado terminal,
vem colocar em cheque duas crenças fundamentais do nosso modo de vida. Nós
acreditamos que os direitos humanos são incondicionais e inalienáveis. A
permissão da eutanásia mostra-os como relativos e alienáveis. Acreditamos que o
Estado não pode permitir que alguém mate e que ele próprio não pode matar. A
eutanásia vem abrir uma excepção numa crença tida, também ela, como
incondicional. A sociedade precisa de pensar mais maduramente o problema.
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