quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Pobres mãos

Jean-Michel Basquiat, Hand Anatomy, 1982

De punhos para ferir, fizeram pobres mãos para trabalhar. Nesta meditação poética de René Char, pertencente ao ciclo La Parole en Archipel, o adjectivo pobres é a porta por onde podemos entrar no domínio do sentido, mesmo que a tradução nos roube a entrada no outro domínio central da poesia, o do som. Se Char tivesse omitido a adjectivação das mãos, teria descrito uma metamorfose do mundo, dado uma informação factual sobre a evolução civilizacional da espécie. No entanto, o adjectivo pobres coloca-nos numa situação equívoca. Aparentemente, as mãos são pobres para trabalhar. Nesta pobreza podemos escutar a incapacidade, a ausência de domínio sobre os objectos a trabalhar.

A leitura desvia-se, muito rapidamente, para outra direcção. As mãos que trabalham são já um empobrecimento relativamente aos punhos que ferem. A dignidade primeira da mão residiria então no bater, no ferir e, em última instância, no matar. Trabalhar será assim uma forma de humilhação que a espécie impôs aos seus punhos quando os transformou em mãos. Um leitor informado da história do mundo dirá que o pequeno texto de Char é uma constatação nostálgica da transição de um mundo aristocrático, fundado na guerra, para um mundo burguês, centrado no trabalho ou na exploração do trabalho, se a sua alma se inclinar para uma leitura marxista.

A leitura poética convida-nos, todavia, a não optar por nenhuma destas alternativas de interpretação do adjectivo pobres. O essencial é manter as duas em tensão e deixar-se guiar por elas. Sim, é verdade que a transição do punho que fere para a mão que trabalha é um empobrecimento, mas é-o não porque tenha deixado de ferir mas porque ainda não é suficientemente rica para trabalhar, para que da sua arte saiam obras dignas da nossa admiração. Mais do que um lamento pelo declínio da virtude aristocrática da guerra, na pobreza das mãos que trabalham ressoa o desejo de que elas se tornem mais aptas, mais criativas, para as obras que esperam pela sua destreza. O desejo de que elas não matem nem trabalhem, mas criem. Que as mãos não sejam nem do aristocrata nem do trabalhador, mas do criador, do poeta, desse poeta que ainda não encontrou as mãos à altura de criar a poesia que o aguarda.

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Uma doença

Ana Peters - Divertimentos bajo cristal (1966)

Eu sei que a ideologia é como Deus. Está em toda a parte e cuida de nós. No entanto, ao cuidar de nós, a ideologia, seja ela qual for, tem por condão enviesar o nosso olhar, a forma como interpretamos o mundo e seleccionamos os imperativos que comandam as nossas acções. Uma pessoa que sofra de uma qualquer doença deseja, acima de tudo, curar-se dessa doença ou, em caso de ser impossível erradicá-la, diminuir-lhe ao máximo os efeitos nefastos.

Podemos pensar a ideologia como uma doença, uma doença cognitiva que nos faz confiar em crenças que, por norma, pouco têm a ver com a realidade. O normal seria que cada um de nós procurasse, por todos os meios, curar-se da doença. Sabemos que a ideologia, como uma doença crónica, não pode ser erradicada completamente, mas seria expectável que estivéssemos todos empenhados em diminuir-lhe os efeitos nefastos que ela tem sobre o sistema das nossas crenças.

A verdade, contudo, é que a generalidade dos seres humanos – fundamentalmente, aqueles que se interessam pela política – gosta de estar doente. O problema da ideologia não reside tanto nela nos enviesar a compreensão do mundo, mas no facto de nos tornar tão dependentes que queremos permanecer doentes, cada vez mais doentes, de tal forma que se tem honra na patologia que nos atinge e exibimo-la não com o pudor recomendado mas como se ela fosse uma medalha ganha na alta competição ou um troféu de caça.

domingo, 28 de janeiro de 2018

Ensaios sobre a luz (21)

Michael Inmann, Left Spaces, Vienna 2005

A casa abandonada abre-se lentamente para que a luz a penetre e ilumine a dor que, como um murmúrio, desagua na poeira do esquecimento.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Micropoemas - Mármore 5

Ricardo Kersting - Pássaro (aqui e aqui)

5. Pássaro

Pássaro,
pedra pura voa.

Na aldeia,
o bronze do sino ecoa.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Passos Coelho

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Agora que Rui Rio tomou conta do PSD, falemos de quem sai. Passos Coelho recebeu o país das mãos de Sócrates numa situação terrível e com um programa de resgate de dureza desnecessária imposto pela troika. E aqui começa o equívoco de Passos Coelho. Não apenas deixou transparecer que aquele programa da troika, apesar de negociado com Sócrates, era o programa de governação do PSD, como fez saber que pretendia ir além da troika, ser mais castigador dos portugueses do que os representantes dos credores. Num país frágil como Portugal, isto soou a muitos sectores sociais como pura provocação e mesmo uma espécie de revanchismo contra alguma igualdade social que o pós 25 de Abril e a adesão à CEE – agora União Europeia – trouxeram.

Aliado a isto veio toda uma retórica putativamente neoliberal, sustentada pela comunicação e redes sociais, blogosfera e grupos de jovens de aparência liberal e alma autoritária. Toda esta parafernália verbal assentava no puro desconhecimento do país, em leituras apressadas e num desejo indisfarçado das novas gerações da elite encontrarem pontos que lhes permitissem, como vingança social, fazer crescer as desigualdades. E contra tudo o que a prudência aconselhava, Passos Coelho deixou-se envolver neste lixo ideológico, o qual transpareceu muitas vezes nas suas palavras, criando ressentimento em grande parte população.

Passos Coelho perdeu uma grande oportunidade, talvez a maior desde o 25 de Abril, de reformar o país. O choque da governação Sócrates abriu-lhe uma porta para alterar a relação dos portugueses com o Estado e de criar relações sociais mais livres, onde autonomia e iniciativa individuais fossem decisivas. Ora, em vez de um discurso unificador dos portugueses perante a catástrofe (Sócrates e a troika) e a necessidade de um outro caminho, Passos Coelho preferiu um discurso ideológico agressivo, criador de divisões e de louvor à troika. Decidiu fechar a porta que lhe tinha sido aberta.

Isto não significa que o governo de Passos Coelho se pudesse eximir a cumprir o acordo de resgate com a troika. Nenhum governo o podia fazer. O cumprimento do memorando é um mérito que recai em Passos Coelho. Além disso, porém, deveria ter feito outras coisas. Por um lado, ter-se mostrado mais preocupado com o destino dos portugueses e, por outro, ter aproveitado a situação para arrumar o Estado e as relações entre este e a sociedade civil. Não fez uma coisa nem outra. Passos Coelho enredou-se em equívocos ideológicos que o conduziram para fora da governação e, agora, da liderança do PSD. Nem um grande estadista nem um terrível demónio social, apenas um fruto equivocado da ideologia.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Um sidonismo suave

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Apesar da situação actual ser radicalmente diferente daquela que, durante a I República, conduziu Sidónio Pais ao poder, o país caiu, sem dar por isso, num novo sidonismo. Sidónio, de forma turbulenta, tal como eram os tempos de então, liquidou o parlamentarismo republicano e instaurou um regime presidencialista. Marcelo Rebelo de Sousa, sem questionar a constituição, está, pelo seu talento pessoal e pela inabilidade dos partidos políticos e do governo, a construir um presidencialismo não de direito mas de facto. À primeira vista tudo se mantém igual ao que sempre foi. O primeiro-ministro é o responsável pela governação,  a Assembleia pelo processo legislativo e o Presidente da República continua com os mesmos poderes limitados dos seus antecessores. Aparentemente.

Percebe-se, desde muito cedo, que Marcelo Rebelo de Sousa tem como projecto determinar a governação do país. Fá-lo não pela subversão do regime, mas dentro do quadro constitucional, tirando partido da ambivalência do semipresidencialismo. A relação directa com os cidadãos, o clima de cumplicidade e de tutoria do povo que ele, mal eleito, começou a construir dão-lhe legitimidade suficiente para aniquilar qualquer desafio que um qualquer governo lhe lance. O momento decisivo em que o regime se torna efectivamente presidencial é o da tragédia dos incêndios. Se até aí o governo já tinha pouca margem de manobra, a partir da segunda vaga de incêndios deixou de ter qualquer independência relativamente aos desejos políticos de Marcelo Rebelo de Sousa. O governo começou por ser uma iniciativa da esquerda maioritária no parlamento. Hoje, ao perder a autonomia face a Belém, é o governo do Presidente da República.


Presidencialismo e uma relação directa com o povo foram características centrais do sidonismo. Também a actual relação da população com os partidos políticos é semelhante à existente no tempo de Sidónio. Perante as inabilidade e maquinações dos partidos e a cada vez menor consideração que a população lhes vota, o Presidente, pai e pastor do povo, trata-os de forma professoral e condescendente, exercendo um nunca confessado poder executivo real. Sem sujar as mãos, Marcelo Rebelo de Sousa realiza o seu velho sonho de governar, embora por interposta pessoa. As próximas eleições legislativas não têm já a ver com quem os portugueses escolherão para governar. Elas vão decidir através de quem, pessoas e partidos, Marcelo Rebelo de Sousa irá continuar a governar o país. Um novo sidonismo. Suave, cheio de afectos e de paternalismo.