Jean-Michel Basquiat, Hand Anatomy, 1982
De punhos para ferir,
fizeram pobres mãos para trabalhar. Nesta meditação poética de René Char,
pertencente ao ciclo La Parole en
Archipel, o adjectivo pobres é a
porta por onde podemos entrar no domínio do sentido, mesmo que a tradução nos
roube a entrada no outro domínio central da poesia, o do som. Se Char tivesse
omitido a adjectivação das mãos, teria descrito uma metamorfose do mundo, dado
uma informação factual sobre a evolução civilizacional da espécie. No entanto,
o adjectivo pobres coloca-nos numa
situação equívoca. Aparentemente, as mãos são pobres para trabalhar. Nesta
pobreza podemos escutar a incapacidade, a ausência de domínio sobre os objectos
a trabalhar.
A leitura desvia-se, muito rapidamente, para
outra direcção. As mãos que trabalham são já um empobrecimento relativamente
aos punhos que ferem. A dignidade primeira da mão residiria então no bater, no
ferir e, em última instância, no matar. Trabalhar será assim uma forma de
humilhação que a espécie impôs aos seus punhos quando os transformou em mãos.
Um leitor informado da história do mundo dirá que o pequeno texto de Char é uma
constatação nostálgica da transição de um mundo aristocrático, fundado na
guerra, para um mundo burguês, centrado no trabalho ou na exploração do trabalho, se a sua alma se inclinar para uma leitura marxista.
A leitura poética convida-nos, todavia, a não optar por
nenhuma destas alternativas de interpretação do adjectivo pobres. O essencial é
manter as duas em tensão e deixar-se guiar por elas. Sim, é verdade que a
transição do punho que fere para a mão que trabalha é um empobrecimento, mas
é-o não porque tenha deixado de ferir mas porque ainda não é suficientemente
rica para trabalhar, para que da sua arte saiam obras dignas da nossa
admiração. Mais do que um lamento pelo declínio da virtude aristocrática da guerra, na pobreza das mãos que trabalham ressoa o desejo de que elas se tornem
mais aptas, mais criativas, para as obras que esperam pela sua destreza. O desejo de que elas não matem nem trabalhem, mas criem. Que as mãos não sejam nem do aristocrata nem do trabalhador, mas do criador, do poeta, desse poeta que ainda não encontrou as mãos à altura de criar a poesia que o aguarda.