domingo, 11 de agosto de 2024

Knut Hamsun, À Porta do Reino (Ved Rigets Port)

 

Não traduzida em português Ved Rigets Port (À Porta do Reino) é a primeira peça de uma trilogia centrada na figura de Ivar Kareno, um jovem filósofo que pretende manter-se fiel à radicalidade do seu pensamento, influenciado por Nietzsche, e em confronto com a filosofia de origem britânica. As outras duas peças são Livets Spill (O Jogo da Vida) e Aftenmde (Crepúsculo). Existe uma edição francesa, da editora Actes du Sud, que reúne as três peças. Em À Porta do Reino, a tensão dramática gira em torno do tema da fidelidade. Esta é tratada em diversos níveis, desde a fidelidade matrimonial, o nível mais baixo e menos relevante na peça, a fidelidade entre amigos e a fidelidade a si mesmo, o tema central que fundamenta os outros níveis de fidelidade.

A fidelidade a si mesmo, contudo, é a fidelidade às suas ideias, à visão que se tem do mundo. Ivar Kareno, como acontece, não poucas vezes no mundo do pensamento, pretende representar uma ruptura com aquilo que está estabelecido. Vive centrado na produção e publicação de uma obra que, imagina, abrirá novos horizontes, obra que põe em causa o pensamento e a influência do professor Gylling, um reputado e respeitado filósofo e professor. Casado com Elina, Ivar Kareno, tem o casamento à beira da ruptura. Por um lado, a incapacidade de sustentar a família, pois a sua obra é recusada pelo editor, que não está disponível para publicar uma obra radical e um ataque a Gylling. Por outro, pela pouca atenção que dá à sua mulher, a qual se sente abandonada, pela excessiva preocupação de Ivar com a obra. A fidelidade a si é uma fidelidade, de natureza fundamentalista, às suas ideias radicais, que nem o perigar do casamento, nem a bancarrota do casal, o levam a pôr em causa, em amenizar a crueza do pensamento de uma juventude ainda imatura, como sugere o Gylling.

Essa intransigência com as ideias emerge numa outra situação. Carter Jerven, um amigo de Kareno e que com ele partilha uma nova visão do mundo, acabado de se doutorar, empresta-lhes dinheiro para este evitar a bancarrota de Ivar a penhora dos seus bens. Este acaba por aceitar. Contudo, ao descobrir que a tese de doutoramento do amigo trai os princípios em que ambos acreditavam, ao perceber que, de algum modo, Jerven cedeu para encontrar um caminho para a sua carreira, devolve o dinheiro. Esta devolução e as razões apresentadas têm um efeito inesperado na vida de Jerven. A noiva, perante a recusa de Kareno em aceitar o dinheiro, rompe a relação. Jerven tenta, em nome da amizade, que Kareno aceite a sua ajuda, pois isso salvaria a sua ligação Mademoiselle Hovind, a noiva. Contudo, Ivar Kareno mantém-se intransigente. As suas ideias valem mais do que a amizade, ainda por cima a amizade de um homem que traiu os seus ideais de juventude.

Também o casamento de Ivar e Elian entra em crise. A situação financeira e, fundamentalmente, a pouca atenção que Ivar dá à mulher abrem o caminho para que Endre Bondensen, um jornalista influente e sedutor, atraia Elina, já desesperada pelas suas tentativas infrutíferas para levar a que o marido permita uma solução para a degradada situação financeira em que vivem, para que ele aceite a ajuda dos pais dela ou para que siga os conselhos do professor Gylling, os quais levariam à publicação da obra de Kareno pelo editor. A intransigência do jovem filósofo é total, e mesmo a ameaça de infidelidade da mulher é inútil para o fazer mudar de atitude. O casamento pode desfazer-se, o importante, porém, é que o autor seja fiel a si, isto é, às suas ideias e à sua radicalidade.

A peça de Hamsun explora uma ambiguidade na ideia de fidelidade a si. Ivar Kareno é, na verdade, fiel a si mesmo ou fiel a uma visão do mundo, a um conjunto de ideias e a um projecto de as impor destruindo outras visões do mundo? Será essa fidelidade uma relação autêntica consigo mesmo ou não passará de uma intransigência motivada por um conjunto de ideias abstractas, fruto de um ego inflacionado? Não é claro, nesta primeira peça, o estatuto de Kareno. Será um herói ou um bufão imaturo e incapaz de compreender o mundo? As relações concretas de amizade e de amor são trocadas pela fidelidade a essas ideias. Os outros – no caso, a mulher Elina e o amigo Carter Jerven – têm, claramente, menos valor, aos olhos do candidato a filósofo, do que essas ideias, pelas quais está disposto a enfrentar a pobreza e o abandono. O caminho de Ivar Kareno está em aberto e isso será explorado nas outras duas peças da trilogia.

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