quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Ursula K. Le Guin, Do outro lado do sonho

 

Publicado originalmente em 1971, nos Estado Unidos, com o título de The Lathe of Heaven, foi agora, Março de 2024, editado pela Relógio de Água com o título Do outro lado do sonho. Contrariamente ao que o título português deixa transparecer, o romance de Ursula K. Le Guin não é uma exploração das realidades oníricas, dos processos dos sonhos ou dos níveis inconscientes dos indivíduos, mas uma reflexão sobre a ética, as utopias e as consequências destas, um confronto entre o homem médio, conservador, e o génio focado na melhoria do mundo. O sonho entra na história como um dispositivo que permite a criação de mundos alternativos, como fruto dos sonhos utópicos da humanidade. George Orr é levado a tratamento compulsivo por ter sido apanhado num consumo excessivo de drogas, abastecendo-se num dispensário estatal mesmo com cartões emprestados. Ora, Orr sofria de um problema que o conduziu à procura de substâncias que evitassem que sonhasse. Descobrira um estranho poder dos seus sonhos. Estes alteravam a realidade, adequando-a ao que sonhara, sem que ninguém, para além do sonhador, desse por isso.

As alterações da realidade estavam longe de ser apenas benevolentes. O fundo inconsciente produtor de sonhos não se deixava capturar. Não apenas os sonhos eram imprevisíveis, como eram imprevisíveis as suas consequências. Contudo, não era apenas isso que torturava Orr. Ele, o mais mediano dos homens, achava que não tinha direito a alterar a realidade. Perturbava-o que a sua faculdade de sonhar se arvorasse numa espécie de deus irrequieto e imponderado. As drogas que procura e toma visam suspender a capacidade de sonhar e a subsequente alteração do mundo. O que está em jogo, em George Orr, é um conflito ético sobre quais devem ser os limites do humano. Aquilo que pode ser percebido como um poder excepcional – e, ilusoriamente, caso fosse domesticado, uma dádiva – é percebido como um ultrapassar dos limites, um confiscar dos poderes de Deus – ou da natureza – para moldar a realidade aos seus próprios desejos. Mesmo que Orr não tenha a capacidade de planear os sonhos e prever os seus efeitos, sabe-se que, numa interpretação psicanalítica, os sonhos são a expressão de desejos e conflitos recalcados. O senso comum – George Orr é um representante desse senso comum – é avesso a qualquer experimentação social, a qualquer alteração radical da realidade, e é isso que os seus sonhos representam.

A preocupação de Orr com o seu poder de alterar a realidade é também uma preocupação com a estabilidade da linha do tempo. Os seus sonhos não apenas criavam futuros imprevisíveis, como alteravam o próprio passado. A liquefacção do tempo, onde a sua fluidez habitual, com a cadeia de causas e efeitos que, de algum modo, podem ser calculados ou, pelo menos, esboçadas as consequências, introduz um princípio de incerteza numa esfera da realidade que não é governada por esse princípio. Conforme os sonhos vão acontecendo e a realidade se vai alterando, incluindo a realidade do passado, as pessoas podem acumular memórias conflituantes, o que fará perigar um elemento central da psicologia humana, a identidade de cada um. A identidade de si depende, em grande medida, das suas memórias, do modo como elas foram consolidadas através de narrativas que harmonizam dissensões e resolvem, ou evitam, conflitos. A alteração que o sonho de Orr tinha o poder de induzir no passado, criando, a cada sonho, um novo passado, tinha efeitos colaterais terríveis na identidade dos seres humanos, que é um dos bens que o homem comum tem em maior conta. Ele é a sua identidade e é proprietário dessa identidade. É insuportável tudo o que crie fracturas na identidade e não haverá coisa que tenha mais poder de fracturar uma identidade do que a existência de memórias conflituais do passado, motivadas pela existência incompreensível de diversos passados.

O outro lado do romance de Ursula Le Guin – talvez, a questão central – tem o seu núcleo no Dr. William Haber, psiquiatra e director do Instituto Onirológico do Oregon. É a ele que cabe tratar Orr. Quando se apercebe do poder deste, quando compreende que é real e não uma mera ilusão, não resiste à tentação de melhorar o mundo, usando os sonhos do seu paciente. Giza um plano de domesticação da faculdade de sonhar de Orr, para que a possa orientar para os fins supostamente benévolos que o habitam. Ao contrário do homem comum, Haber é um representante puro do Iluminismo, da transformação do mundo através da ciência, neste caso da ciência dos sonhos, e da tecnologia dependente dessa ciência (ele criou um dispositivo, o aumentador, para ampliar os sonhos do paciente e os seus efeitos). Em Haber, Le Guin condensa a panóplia de visionários políticos e sociais que transportam em si sonhos e utopias de transformação da realidade social a partir da vontade de vanguardas revolucionárias, que pretendem acelerar o tempo, substituindo as reformas sociais paulatinas pelas drásticas alterações da realidade política e social.

O romance não representa um conflito entre o homem moderno, racionalista e crente na tecnologia, e o homem tradicional submetido aos encantamentos do mito e à tradição religiosa. O conflito, apesar do romance ser de 1971, é aquele que hoje se tornou muito claro nas sociedades ocidentais, entre o homem comum e o homem com forte formação intelectual, que pensa poder dispor do mundo à sua vontade. De algum modo, o romance representa a vitória desse homem comum sobre o homem filho do Iluminismo, a vitória do senso comum sobre uma razão que se desvia desse sentido comum para servir desejos que, benévolos, na sua aparência, são a origem de mundos distópicos, onde o ser humano é destruído na sua própria natureza, ao ser destruída a sua identidade. Se nós olharmos as experiências totalitárias do século XX percebemos muito bem como, em cada uma delas e em nome de um outro mundo melhor, a identidade humana era sistematicamente destruída. Le Guin, no fundo, retoma a ideia leibniziana de que este é o melhor dos mundos possíveis. Todas as alternativas a este mundo são piores. Isto não significa que este mundo seja imóvel e não exista mudança, mas esta deve-se inscrever dentro dos limites do próprio mundo e não na utopia de um outro radicalmente diferente.

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