sábado, 8 de novembro de 2025

Mariana Mortágua e o Bloco de Esquerda


Mariana Mortágua anunciou que deixará o parlamento e não se recandidatará à coordenação do Bloco de Esquerda (BE). O caso Mariana Mortágua é interessante porque mostra que uma pessoa tecnicamente bem preparada não tem de dar um bom líder. Mariana Mortágua foi uma deputada excelente. Competência técnica e assertividade. Contudo, a sua liderança política foi um desastre. O BE quase desapareceu do parlamento e está em vias de extinção. À sucessora de Catarina Martins falta-lhe uma qualidade essencial: a empatia. Surge, aos olhos do eleitorado, como distante, para não dizer arrogante. Falta-lhe também maleabilidade para perceber as mutações sociais e para compreender que a agenda política do seu partido já só atrai um núcleo muito restrito da população. Mariana Mortágua passa de uma deputada brilhante a uma líder medíocre. Ultrapassou o seu limite. Pagou, politicamente, caro. 

É um facto que os tempos não estão de feição para a esquerda, seja ela qual for. Os interesses do eleitorado deslocaram-se para áreas em que a esquerda tem muita dificuldade em integrar na sua agenda. Os eleitores estão, por um lado, mais individualistas e descrentes nas lutas sociais; por outro, mais interessados numa afirmação identitária, deixando-se cativar pelos discursos de exclusão dos que são diferentes, como os imigrantes. Também a visão do mundo que, através das redes sociais, se tornou dominante, é adversa para a esquerda. Tanto ao nível dos costumes, como da economia, as perspectivas ideológicas e a interpretação do que deve ser a sociedade mudaram radicalmente, estando parte substancial do eleitorado mais perto daquilo que é defendido pela direita radical, do que daquilo que propõe a esquerda. Tudo isto tornou a tarefa de Mariana Mortágua mais difícil, mas isso não explica a sua incapacidade para lidar com a situação. 

A substituição da actual líder por um outro porá fim à agonia do BE? É duvidoso. O BE foi uma invenção genial para integrar no sistema político nacional um conjunto de militantes da extrema-esquerda, que pretendiam entrar no mainstream político sem passar pela desonra da deserção da sua área e integração nos grandes partidos. Enquanto esses militantes, que vinham dos anos 70, estiveram no activo, o BE, ajudado por uma comunicação social simpática e por uma conjuntura política favorável, teve um desempenho político e eleitoral interessante. Hoje, porém, nem a comunicação social é simpática para o BE, nem a conjuntura lhe é favorável. Mariana Mortágua estava longe de ser a líder ideal do BE, mas os tempos não auguram nada de bom para a futura liderança.

sábado, 25 de outubro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (26)

Arshile Gorky, Agonia, 1947

Esculpir horizontes

em espelho quebrado,

 

uma feroz paixão

resplandece na face.

 

Ciclone de sangue

em ondas de areia.

 

As águas do mar

reverberam na manhã:


o coração demente,

os miasmas da noite.

 

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

 

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Comentários (33)

Paul Klee, Arrebato de miedo III, 1939

 o nosso medo
não usa camisa e dormir
não tem olhos de coruja
não levanta a tampa
não apaga a vela
Zbigniew Herbert

Pior que os medos metafísicos são os terrores físicos. Não aqueles que vêm da deriva de uma biologia que perde o oriente e se entrega à música da dor ou à dança da morte. Há um terror que nasce do arbítrio do outro, daquele que, sem lhe ser concedido, tomou um estranho poder sobre as nossas vidas, dispondo do nosso corpo e do nosso tempo. O pior dos medos nasce no coração desse obscuro outro, da sua impotência, do negro pavor que o habita, do desejo de apaziguar a sua culpa lançando um lençol de perdição sobre a vida dos outros.

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Diálogos aporéticos (11) - A grande noite

Yale Joel, Couple embracing late at night on the Schoffelgasse,  Zurich, 1948

- Adeus, tenho de ir.

- Mas, tínhamos combinado...

- Não me lembro de ter combinado nada.

- Estás a brincar.

- Talvez sofra de uma estranha amnésia.

- Como é possível? Não tens idade para isso.

- Meu querido, a deficiência da memória não tem por causa única a idade.

- Os planos que ontem fizemos para esta noite.

- Ontem? Onde?

- Quando nos encontrámos no café.

- Ah, sim, encontrámo-nos no café é verdade.

- Esta iria ser a nossa primeira e grande noite de amor.

- Grande, mas ainda não percebeste?

- O quê?

- Esta é a noite mais pequena do ano, como pode ser uma grande noite de amor?

- ...

- Adeus, dorme bem.

domingo, 19 de outubro de 2025

Ensaio sobre a luz (132)

Albert de Rotschild, Am Hallstätter See, 1896

Como se a água fosse um mar de estrelas, um oceano de sóis, o lago reflecte a luz vinda dos céus, oferecendo o abraço da cintilação e a carícia do fulgor da manhã, para que o barco, nascido na terra, rasgue o silêncio das águas e leve a bom porto homem e mulher, que serão ali uma só carne e um só espírito.

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Autárquicas em Torres Novas


Trincão Marques. O PS perdeu 1533 votos (diminui 7,7%) e dois vereadores. Uma vitória risível, quase uma derrota de Trincão Marques? Pelo contrário. A candidatura socialista tinha contra si 3 factores importantes: 1. 32 anos de governação socialista cansam até o mais paciente dos munícipes; 2. Havia, no concelho, um descontentamento significativo com a governação da Câmara; 3. A crise nacional que atinge a esquerda, incluindo o Partido Socialista. Estava na hora dos eleitores trocarem de orientação. Trincão Marques conseguiu segurar parte suficiente do eleitorado para conquistar a Câmara e dar a si mesmo um futuro, que pode ser longo, na Presidência. Uma vitória maior do que parece. 

Tiago Ferreira. A coligação PSD/CDS ganhou 3312 votos (cresce 17,3%) e ganha dois vereadores. Uma derrota com sabor a vitória? Só em aparência. Foi uma derrota dolorosa por dois motivos: 1. Perdeu por 83 votos; 2. Perdeu o tempo oportuno: o fim do consulado de Pedro Ferreira e o cansaço dos eleitores era o momento ideal para trocar de cor na Presidência da Câmara. Pode ter hipotecado no domingo a sua possibilidade de chegar um dia a presidente. 

André Ventura. Ganha 1925 votos (cresce 10,4%). O seu objectivo era consolidar, no concelho, a sua imagem e a marca Chega. Parte dos eleitores torrejanos estiveram mais interessados nisso do que no destino do município. Ventura não irá, todavia, sentar-se nas reuniões da Câmara e ofereceu a Presidência ao PS. 

MPTNPerdeu 2023 votos (diminui 11,9%) e o vereador. O movimento estava e está escorado na figura de António Rodrigues. Sem o criador, a criatura definha sem glória. 

BE e CDU. Ambos perdem poucos votos e pouca percentagem, mas já tinham, em 2021, poucos votos e pouca percentagem. Têm um conflito com as aspirações do eleitorado. O seu discurso satisfaz muito os militantes, mas, a cada dia que passa, afasta os eleitores. Apesar de Helena Pinto ser politicamente muito competente, o partido onde está deixou de a ajudar. A realidade social do concelho mudou, mas BE e CDU mantêm-se firmes no passado. 

Munícipes. Foram os grandes vitoriosos das eleições. Livraram-se de um maioria absoluta e não caíram noutra. As maiorias absolutas  criam uma sobranceria nos eleitos, que a certa altura pensam ser os donos dos votos e do concelho. Trincão Marques tem uma dura tarefa pela frente, mas se for humilde, se se dispuser a negociar com seriedade com as oposições poderá ajudar o concelho a sair da madorra em que caiu. As oposições parecem compostas por pessoas com quem se pode dialogar, de modo frutuoso, para bem de todos. A humildade é fundamental, de todos os lados. Os munícipes agradecem.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (25)

Celestino Alves, Canal de Saint-Denis, 1962

Dormir no vento da tarde

um sono de ervas azuis

nos interstícios do soalho.

O sol deixa rastos de cal

na noite que se aproxima,

no coração adormecido

na fúlgida luz das trevas.


[1993]

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Nocturnos 132

Artur Bual, Hoje VI, 1965 (Gulbenkian)
É um trabalho demorado aquele onde a noite se gera. Envolta em nuvens de poeira, germina como um planta, com demora e presa nos interstícios do casulo onde se guarda. Depois, eclode e derrama o leite negro sobre o mundo, tingindo cidades e campos com a floração das trevas.

sábado, 11 de outubro de 2025

Meditações melancólicas (96) Dissonância

Charles J. Martin, Storm Landscape with Railroad Tracks, 1929-1930
Uma paisagem tempestuosa, por crua e rude que seja, é sempre motivo de contemplação desinteressada. O espírito entrega-se a um jogo livre, embalado pelo temor do terrível e pela admiração do sublime. Descobre-se, então, numa meditação sobre as forças que irrompem do mundo natural, como elas lhe surgem ao espírito como benfazejas ou encarnações de um mal nebuloso, mas inescapável. O enlevo oferecido pelos jogos naturais termina quando descobre uma dissonância que destrói a paisagem, a presença de um aparato técnico humano, cuja finalidade lhe parecer ser, naquela hora, apenas a de suspender o terrível e destruir o sublime. 

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Prosa dos dias (34) Os grandes acontecimentos

Thomas Hoepker, Celebrating the German reunification in Berlin. Waving the German flag at Berlin’s Brandenburg Gate. Berlin, Germany, October 3, 1990
Todos os grandes acontecimentos políticos, aqueles que inauguram uma era ou um regime, são uma espécie de Big Bang. Têm em si o combustível do entusiasmo, que torna o acontecimento denso e de alta temperatura. À explosão inicial, segue-se uma lenta perda de energia, e o entusiasmo inicial vai-se transformando, paulatinamente, em desilusão. Esta não nascerá directamente do novo regime ou da nova era, mas do desfazer das ilusões daqueles que viveram o momento inicial. Pensa-se sempre que pode conter mais felicidade do que na verdade contém. As pessoas vivem o momento inaugural de modo poético, mas a vida de cada um é mera prosa, que nenhum acontecimento político tem o poder de transformar em poesia.

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Perfis 19. O leitor

David Turnley, Man Reading Paper Through Magnifier, 1975

Em todo o autêntico leitor existe uma avidez pelo texto, um desejo de saber o que está escrito, como se no registo de um discurso estivesse inscrita uma verdade decisiva. Se o tempo desgasta os olhos, e estes, no cansaço trazido por tanta leitura, não se dispõem a revelar o segredo, então o intrépido leitor recorre à imaginação e encontra nela o dispositivo que lhe permite retomar o velho hábito. A lente amplia o texto e aquele que com avidez se entrega à leitura nem desconfia que com o crescimento das letras, também o conteúdo do texto pode sofrer inflação, e a verdade que ali residia tornar-se numa hipérbole que sacia o desejo, mas que a transforma em inconfessável falsificação.

domingo, 5 de outubro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (24)

George Seurat, The River Banks, 1883-1884

O tempo espreita

no ardor das ameias.

Vê o rolar da fortuna

no dédalo dos seixos,

o vagar dos campos

nos telhados do casario,

a terra escalavrada,

carcomida pelo Verão,

a linha de um rio,

água esmagada

pelo peso das margens.

 

[1993]

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Terramotos, tsunamis e incêndios


Corre como se fosse uma maldição chinesa, mas é duvidosa a origem. Diz o seguinte: “Que vivas tempos interessantes!”. Ora, não apenas os tempos são interessantes, como muitos de nós os vivem como uma maldição. De onde vem o interesse e de onde chega a maldição? Os tempos são interessantes porque toda uma configuração de valores e modos de viver está a cair, como se um grande terramoto a arrastasse para terra, transformando-a em pó. E a maldição?  Como em muitos terramotos, o problema não é apenas o desabar das construções feitas pelo homem sob o impacto das ondas sísmicas, mas também o que vem depois, o tsunami e os incêndios, tal como aconteceu em Lisboa. E aquilo que estamos a assistir, ao nível dos valores e dos modos de viver, é, ao mesmo tampo, um maremoto e um sem número de incêndios.  

O que aconteceu? Três grandes terramotos. Em primeiro lugar, as revoltas estudantis na Europa e nos Estados Unidos, simbolizadas no Maio de 68. Puseram em causa a ordem moral existente e representaram uma libertação dos indivíduos da tradição que os constrangia. Afirmação de um forte individualismo em matéria de costumes. Um segundo momento, é a vitória política do neoliberalismo, nos anos 80, com Margareth Thatcher e Ronald Reagan. Vitória de um individualismo económico que destruiu o consenso social do pós-guerra e arrastou as classes médias para a estagnação, se não para a pobreza. Por fim, mas como complemento da vitória do neoliberalismo, a Queda do Muro de Berlim e a morte política do comunismo, cuja ameaça, no âmbito da Guerra-Fria, levava os políticos ocidentais a cuidarem das suas populações. 

Os últimos quarenta anos representam o tsunami e os incêndios, isto é, o processo de decomposição, tanto moral, como económico e político, dos valores herdados no Ocidente pela vitória aliada sobre o nazismo e o combate, posterior, ao comunismo. Aquilo que se está a assistir – e a ser vivido por muitos como uma maldição – é, por um lado, a emergência de valores, em nome das virtudes do conservadorismo e da tradição, que põem em causa as liberdades individuais. Por outro, uma paradoxal forma de comunitarismo que, ao mesmo tempo, prega os valores políticos da superioridade da comunidade e das suas tradições míticas sobre o indivíduo, enquanto fomenta o individualismo económico e intensifica as desigualdades sociais. Não sabemos se haverá para o mundo ocidental, algum Marquês de Pombal que reconstrua um novo mundo, mais amplo e luminoso. Nós somos aqueles que sofreram os terramotos e vivem ainda dentro ou do tsunami ou dos incêndios. Vivemos a maldição e somos cegos para o futuro.

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

A mulher como problema político

Não é ainda muito claro na Europa, mas já o é bastante nos Estados Unidos. O principal problema político que assola o mundo ocidental e que fornece o combustível para a progressão da direita radical e da extrema-direita é a mulher. Melhor: é o papel da mulher na sociedade. A imigração tem surgido como um factor de arregimentação desses quadrantes políticos. Contudo, para um observador mais atento são os direitos das mulheres que estão a mobilizar muitos votos masculinos – em especial nos eleitores jovens, mas não só – para soluções políticas radicais. Na Europa – talvez com a excepção de Espanha – o problema é mais dissimulado, mas aquilo que está a acontecer nos EUA chegará, mais tarde ou mais cedo, a este lado do Atlântico. A retórica extremista usa a bandeira da luta contra o feminismo, mostrando este como uma deriva radical. O que está, porém, em causa, o que mobiliza tantos homens para a extrema-direita?

Em primeiro lugar, a autonomia sexual das mulheres. Não tenhamos qualquer ilusão sobre o assunto. O facto de os homens não poderem, no campo da sexualidade, dominar e impor a sua vontade às mulheres é um factor perturbante para parte significativa do campo masculino. Um outro factor é a escolarização. As mulheres, actualmente, têm uma mais alta escolarização do que os homens. A importância da formação académica, nas sociedades actuais, é de tal modo grande que está a gerar uma nova clivagem de classe entre pessoas com formação superior – na sua maioria, mulheres – e pessoas sem essa formação. Este é também um factor de ressentimento com muito peso no eleitorado masculino. Por fim, o desaparecimento de empregos, relativamente bem remunerados, que solicitem competências vistas como masculinas, baseadas na força física, criando um problema aos homens que apostaram pouco nos estudos.

Estes três factores – todos eles presentes nas sociedades ocidentais – estão a gerar uma radicalização política de parte dos homens, cuja finalidade é limitar os direitos das mulheres, tentando fazê-las retornar a um estado de dependência, limitando drasticamente a autonomia sexual, profissional e, plausivelmente, académica das mulheres. E isto pode mesmo acontecer, caso as mulheres e as forças democráticas não se mobilizem para enfrentar o problema. Esta deriva antifeminina é um sintoma da decadência do Ocidente. Os eleitores estão mais preocupados em voltar ao século XIX – sonhando com fadas do lar – do que enfrentar os grandes desafios que a revolução tecnológica e a afirmação de potências industriais, políticas e militares extra-ocidentais colocam. Uma fantasia, mas fantasias têm colocado ditadores no poder.

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Comentários (32)

Anónimo Romano, Escena de gineceo (Villa Imperial. Pompeya)

Os antigos eram jovens, e nós,
disse Bacon num lúcido momento,
somos velhos, embrulhados em
constante movimento. (...)
António Franco Alexandre

Talvez os antigos não tivessem pressa de sair da sua juventude ou não encontrassem um modo para libertar o corpo das amarras com que a natureza os prendia à terra. A lucidez de Bacon, todavia, não é tanta quanto o poeta supõe. Sim, estamos embrulhados em constante movimento. Não conseguimos estar onde estamos, pois qualquer lugar se tornou uma fornalha que queima os incautos que pretendam repousar-se. Vivemos sob o signo do fogo, submetidos à dádiva de Prometeu, que nos condenou a um movimento perpétuo. Onde Bacon se engana é na nossa velhice. Não somos mais velhos que os antigos. Pelo contrário, somos, ao pé deles, crianças irrequietas a brincar com o lume. É o nosso estado infantil que nos embrulha nesse movimento constante e nos impede de descansar, por instantes, na frescura da noite.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

A persistência da memória (32)

Dr. Konrad Biesalski e Dr. Krüger, Schmied Am Ambos, 1899

Do antigo trabalho sobre o ferro - desse exercício de submeter a vontade do metal e de lhe impor, por mãos humanas, um imperativo estranho à sua natureza, um mandamento nascido da necessidade humana - persiste a memória do fogo. Já na antiguidade, celebrada em Hefestos e no roubo de Prometeu, era um rememoração tão arcaica quanto decisiva. Não simbolizava apenas a possibilidade de sobrevivência, mas a de um projecto de domesticar o mundo selvagem, obrigá-lo a curvar-se ao desejo dos homens, atormentá-lo com a inconstância das labaredas, se se resistisse à decisão do homem.

sábado, 20 de setembro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (23)

Camille Pissarro, Escarcha, 1973

A seca humidade da terra,

doença irisada

na maturação dos frutos.

 

Um mundo de água desaba

na celeste

arquitectura dos campos.

 

Pássaros de cobalto voam

presos no horizonte,

livres na soberania da tarde.

 

[1993]

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Linguagem comum


As democracias vivem do desacordo e do conflito entre perspectivas e interesses políticos divergentes. Contudo, esses desacordos e conflitos estão enraizados numa linguagem comum que permite que os projectos políticos sejam julgados pelo voto popular, sem isso representar um problema para quem defende projectos derrotados, nem dar um acréscimo de poder e de legitimidade – para além do que está na lei – a quem vence. O que surgiu, com a chegada em força da direita radical e extrema-direita, foi uma nova linguagem que não se inscreve na linguagem comum, mas que pretende aniquilar essa linguagem e impor uma outra completamente diferente, na qual os projectos políticos democráticos não tenham cabimento. 

Quando não há uma linguagem comum, o que surge não é apenas a incomunicabilidade entre as partes, mas a violência. Não se trata de derrotar os outros nas urnas, mas de utilizar eventuais vitórias nas urnas para aniquilar os outros, pervertendo o jogo democrático e, se isso não bastar, usar a perseguição política e a violência física. Basta observar o que se passa nos EUA. A Europa não é diferente dos Estados Unidos. Os eleitores – tal como aconteceu nos EUA – estão, cada vez mais, a escolher soluções radicais, políticas extremistas e a enfeitiçar-se com uma linguagem que traz violência verbal e aniquilação do outro. O espectro que assola o mundo ocidental já não é o do comunismo, mas o da guerra civil, cuja finalidade é liquidar a democracia liberal. É para uma guerra civil larvar que estes movimentos orientam a sua política, a sua comunicação e a sua formatação do eleitorado. 

Uma guerra civil pode ser fria ou quente. Uma ditadura é um guerra civil fria, em que uma parte – a que está no poder – tem as armas e a outra está desarmada. É quente quando os dois lados têm armas. Ainda é possível – pelo menos, na Europa – evitar a catástrofe, embora as notícias que vêm de França, da Alemanha e de Inglaterra não sejam animadoras. As forças democráticas parecem de mãos atadas. A destruição da linguagem comum e a consequente radicalização são processos políticos que, a partir de certa altura, fogem ao controlo dos feiticeiros que os lançaram, tornando-se uma bola de neve que ninguém controla e que arrasta tudo no seu caminho. Estamos a chegar a esse ponto. Se a democracia perder a linguagem comum que a sustenta, o que resta não é política, mas violência. A responsabilidade das forças democráticas é dupla: travar a deriva extremista e reconstruir a comunicação com os cidadãos. Sem isso, o risco não é o de perder umas eleições, mas a própria democracia e a vida decente que só ela permite.

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Simulacros e simulações (75)

Lucio Muñoz, 8-86, 1986

Primeiro como simulacro, depois como simulação. Por fim, como realidade. Assim chegam, sobre a Terra, as paisagens nascidas no inferno. Não interessa se no inferno da religião ou se naquele que os homens trazem dentro de si, pois este é a simulação do outro.

domingo, 14 de setembro de 2025

Beatitudes (82) Jogo

John Dumont, The Dice Players, 1891
Não é na vitória que reside a beatitude que abre o coração e alivia o espírito dos trabalhos de cada dia, mas na expectativa com que se aguarda aquilo que a sorte ou o acaso ditarão. Esse momento de suspensão, em que os dados lançados ainda não encontraram o seu lugar, inebria o jogador e é, mesmo que ele não o saiba, a razão da sua vida.