segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (31)

Rafael Barradas, Paisaje de Hospitalet, 1926

A vila é uma virgem

monstruosa,

o grito de uma labareda

na luz da candeia.

 

Deserto de zinco

habitado pelo restolho:

a memória ferida

na crueldade da  alcateia.


[1993]

 

sábado, 27 de dezembro de 2025

Simulacros e simulações (77)

Paul Gauguin, Trois Tahitiennes sur fond jaune, 1899

De súbito, as três mulheres taitianas já não são elas, mas uma simulação das três Graças. Olhamos e vemos o esplendor de Aglaia, o jJúbilo de Eufrósina, o florescimento de Tália. Não são um mero simulacro das divindades helénicas, a cópia de uma cópia, mas as reais filhas de Zeus e da ninfa Eurínome, que por razões esquecidas abandonaram a pátria e se refugiaram, para nossa desgraça, num mundo longínquo.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Beatitudes (85) Noite de Natal

Isidre Nonell Monturiol, Noche de Navidad, 1909

A noite de Natal é um tempo de beatitude. Não a noite que se vive, mas aquela que se imagina. A imaginação descondiciona a vida das suas limitações e abre a consciência para as possibilidades mais próprias que se desenham no fundo de cada um. E são essas possibilidades, que nunca se tornam actuais, que lançam sobre a pessoa o halo luminoso da beatitude.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

Em tempo de descristianização

Aquilo a que estamos a assistir no mundo ocidental, com a erosão das democracias liberais, a ascensão do populismo de extrema-direita, a fabricação, através dos algoritmos das redes sociais, de uma cultura de ódio, de conflitualidade e de negação do outro, tudo isso traz consigo a marca da descristianização que atingiu o Ocidente. É certo que uma parte dos políticos da extrema-direita já se afastou abertamente do cristianismo, tal como no século XX fascismo e nazismo eram, abertamente, anticristãos. Outra parte, contudo, continua a reivindicar-se como cristã, não hesitando em utilizar a religião como forma de propaganda política, enquanto defende abertamente posições que estão em confronto violento com os valores originais trazidos por Cristo. 

Vejamos – apenas como exemplo – o alvo preferencial da extrema-direita um pouco por todo o lado: o imigrante, o estrangeiro. Será que um cristão poderá subscrever as políticas que a América de Trump impõe, ou aquelas que os pequenos Trumps europeus pretendem impor? A resposta encontra-se no evangelho de Lucas, capítulo 10, versículos 25 a 37, a parábola do bom samaritano. A resposta de Jesus ao doutor da lei, do ponto de vista político, é interessante porque, podendo escolher como símbolo do amor ao próximo uma qualquer pessoa da comunidade judaica, escolheu um samaritano, visto pelos judeus como estrangeiro e particularmente desprezível. Jesus não mandou os samaritanos para a sua terra, mas escolheu um para simbolizar a conduta misericordiosa que todos devemos ter com o nosso próximo. 

Isto não significa, do ponto de vista político, que os países devem ter as portas escancaradas, mas que há um dever de não tratar mal aqueles que vêm fazer o que os ocidentais não querem ou não conseguem fazer. Só num clima de profunda descristianização é possível ver as políticas de Trump ou os cartazes que André Ventura espalhou pelo país. Só nesse clima se pode perceber o ódio que é destilado nas redes sociais por apoiantes da extrema-direita. Só perante uma completa perda de influência dos valores fundamentais do cristianismo se pode entender a derrocada civilizacional a que assistimos. Estamos em época natalícia, mas o Natal está afogado no consumo sem fim e é, a cada hora, negado pela intolerância de uma nova elite de políticos extremistas que, apesar de alguns dos seus líderes encherem a boca com Deus, não hesitaria em mandar crucificar aquele cujo nascimento o Natal pretende reviver. 

Apesar de tudo, um Bom Natal e um Feliz Ano Novo. Há sempre um princípio de esperança que nos deve orientar, mesmo na noite mais escura.

sábado, 20 de dezembro de 2025

Greve vitoriosa, esquerda derrotada


Não foram os sindicatos, tanto os da UGT como os da CGTP, acusados, pelo governo, de estarem, com a greve-geral de dia 11, a fazer o jogo dos partidos de esquerda? E não foram os sindicatos os vencedores, pela forma como tornaram visível o perigo para os trabalhadores que as propostas do governo representavam? Foram. Não são esses sindicatos, maioritariamente, influenciados pelos partidos de esquerda? São. Como é possível, então, afirmar que a esquerda sai derrotada, apesar de uma greve vitoriosa? É preciso distinguir dois tipos de conflito. O conflito laboral e o conflito político. No conflito laboral, a esquerda teve uma vitória, pois não só tornou visível as pretensões do governo, gravosas para os trabalhadores, como tornou a posição do mesmo governo muito difícil. 

Do ponto de vista do conflito político, porém, a esquerda parece ter pouca capacidade de capitalizar a vitória obtida no conflito social. O mais plausível é que o grande vitorioso da greve-geral seja André Ventura. Claro que Ventura nada vê de errado nas intenções do governo. Percebeu, contudo, que se as apoiasse ia atingir grande parte do seu eleitorado. A greve-geral funcionou como uma iluminação para a extrema-direita. André Ventura apressou-se a apresentar-se como o grande defensor dos trabalhadores portugueses, afirmando que votará contra a lei, caso algumas medidas não sejam retiradas. Por que motivo André Ventura que, com esta posição, fez mais uma cambalhota, sai vitoriosos da greve-geral? Por um motivo político e outro simbólico.

Politicamente, se a proposta governamental for derrotada no parlamento, um caso ainda para ver, Ventura dirá que isso se deve à oposição do Chega, o que será verdade. Reforçará a ideia de que representa, politicamente, as classes trabalhadoras. Do ponto de vista simbólico, muitos trabalhadores deixaram de se reconhecer nos programas e visões sociais da esquerda. Muitos trabalhadores, apesar de o serem e de terem poucas ou nenhumas hipóteses de trocar a sua situação por outra melhor, não se imaginam como aquilo que são, mas como o que desejam ser. E aquilo que simboliza esse seu desejo utópico é a retórica de Ventura, que denuncia tudo o que imaginariamente impede as pessoas de serem o que desejam. É uma ilusão, mas olhemos para José Luís Carneiro, Rui Tavares, Paulo Raimundo e José Manuel Pureza. Quantos eleitores que transferiram seu o voto da esquerda para a extrema-direita sentem nessas figuras o salvador de que andam à procura? Poucos ou nenhuns. Na política, símbolos e imaginários contam. E muito.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (30)

Fernando Calhau, Sem Título #80, 2000 (Gulbenkian)

O coração preso

nas ruas,

cacto erguido

contra a fuligem

matinal da areia.

 

A vila abre-se

ao orvalho

no ócio da manhã,

nos dedos aéreos

da aurora.


[1993]

segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Branquinho da Fonseca, Porta de Minerva

Publicado em 1947, Porta de Minerva é o único romance do escritor Branquinho da Fonseca. A obra inscreve-se nos parâmetros do denominado segundo modernismo português, conhecido também como presencismo, devido à importância, para o movimento, da revista Presença. As três figuras centrais deste movimento são José Régio, João Gaspar Simões e o próprio Branquinho da Fonseca. Esta contextualização fornece uma chave de leitura para Porta de Minerva, um romance que, de certo modo, representa uma ruptura, em Portugal, com o romance tradicional proveniente do romantismo, do realismo e do naturalismo. Opõe-se, também de modo claro, ao neo-realismo que, na altura, tinha um peso considerável nos meios literários. Se a obra pode ser exemplo de um conflito estético-literário, esse conflito é, claramente, o que divide presencistas e neo-realistas, fundamentalmente ao nível do sujeito da acção narrada. Enquanto os neo-realistas privilegiavam um sujeito social, colectivo, implicando uma visão politicamente comprometida da literatura, o romance de Branquinho da Fonseca contém os traços característicos do movimento presencista: individualismo, psicologismo e exploração da vida interior do eu.

A obra pode considerar-se um romance de formação (Bildungsroman), ao acompanhar o percurso de Bernardo Cabral desde a sua chegada a Coimbra, para cursar Direito, até à conclusão do curso. Esses anos de formação universitária são, mais do que a preparação profissional de um futuro jurista, a formação da própria subjectividade, que se afirma e conquista uma autonomia intelectual, não apenas perante as posições daqueles com quem acamaradava na vida coimbrã, mas também perante o próprio curso de Direito, onde descortinava não uma preparação para a realização de um qualquer ideal de justiça, mas o exercício retórico dos docentes, despido de qualquer capacidade de gerar emoção na subjectividade dos alunos — ou, pelo menos, na do protagonista. Esta ausência de emoção era a outra face da rigidez burocrática, tanto da Faculdade como da própria instituição da Justiça. A formação conclui-se num processo de libertação da própria vida académica, como sintetiza o parágrafo com que se encerra o romance: «Mas Bernardo ia alheio às divagações do amigo. Atravessou o jardim da Universidade; pela nobre Porta de Minerva, com o seu arco de pedra coroado pela deusa antiga, desceu à rua estreita. E, como num regresso simbólico à pureza primitiva, nu, debaixo da velha capa sacudida pelo vento, sentia que era, enfim, um homem livre.»

O romance é marcado pelo conflito entre a subjectividade, que se está a formar em direcção à liberdade, e a instituição, enquanto representação de forças colectivas que, nela, se depuram e se tornam mais perigosas para o indivíduo. Não são apenas as instituições Universidade, Direito e Justiça que são visadas de modo crítico pelo protagonista. Também a praxe académica, com o seu conjunto de humilhações, subserviências, hierarquias irracionais e rituais de poder entre os estudantes, é objecto de um olhar crítico e desconstrutivo. Não do ponto de vista de uma denúncia social ou política, mas através da ironia e da atitude com que Bernardo Cabral enfrenta os praxistas, tanto no plano físico como no ideológico. A praxe é pressentida como inimiga de uma subjectividade que, na sua individualidade, se quer livre. É a negação da individualidade e a humilhação da subjectividade; é a afirmação do poder da massa sobre a pessoa. Se há um tema que torna Porta de Minerva, ainda hoje, uma obra que merece ser lida, é precisamente o da praxe académica e o conflito entre ela e a autonomia da pessoa.

É também no âmbito da formação da subjectividade que emerge a relação de Bernardo Cabral com as mulheres. De certo modo, cada uma delas representa um arquétipo e, ao mesmo tempo, uma ameaça. Elizabeth, idealização da estrangeira; Kate, a sensualidade madura; Maria Teresa, a amiga de infância e a possível mulher, na expectativa familiar; e Palmira, a tricana, amante do seu amigo, mas que se lhe oferece. Todas elas representam oportunidades — mais eróticas ou mais sociais —, mas que arrastam perigo: pôr em causa a lealdade devida a um amigo ou conduzir a situações sociais susceptíveis de fazer perigar a liberdade que Bernardo pretende conquistar com a saída pela Porta de Minerva. Aqui, o período de formação não se resolve com uma decisão no campo amoroso, mas pela abertura de possibilidades que o romance deliberadamente não fecha.

É plausível pensar que a obra, no contexto social e cultural português dos anos quarenta do século passado, tenha parecido, apesar de os grandes romances modernistas europeus já serem coisa do passado, um romance menor — não pela sua temática, mas pela construção narrativa. Não existe aquilo a que se chama plot; não há uma intriga. A obra parece ser composta por fragmentos ou quadros da vida de Bernardo Cabral, os quais não obedecem à estrutura tradicional do romance. Contudo, é precisamente essa fragmentação da narrativa, essa aparência de uma colecção de episódios descosidos entre si, que torna, do ponto de vista formal, a obra interessante. O romance é um exercício da memória. Do ponto de vista do narrador, constitui uma extensa analepse da sua experiência em Coimbra e na vida académica. A memória é fragmentária, tal como a corrente de consciência e as próprias auto-análises.

Uma das leituras feitas sustenta que Branquinho da Fonseca é, fundamentalmente, um contista, e que o romance Porta de Minerva não consegue libertar-se dessa idiossincrasia do autor. No fundo, não passaria de um conjunto de contos, com a característica de terem todos o mesmo protagonista e de se situarem no mesmo universo social. Esta avaliação, porém, não tem em consideração que o modo como a narrativa lida com a temporalidade é plural, e que a linearidade e a existência de uma intriga não são condições necessárias para a existência da obra romanesca. A experiência vivida — um dos temas centrais do presencismo —, filtrada pela subjectividade fragmentária da memória, é mais importante do que a imposição de um esquema narrativo construído a priori.

A Porta de Minerva não é, assim, apenas a porta por onde se entra num processo de formação pessoal e por onde se sai para a liberdade dos projectos individuais, ancorados no juízo de uma subjectividade que se foi tornando lúcida; é também a porta por onde se entra em modos narrativos menos marcados pela instituição literária e pela tradição dessa instituição. O talento de Branquinho da Fonseca reside nessa capacidade de sintetizar uma opção estética e uma visão existencial, o que, paradoxalmente, unifica o romance, recontextualizando os fragmentos no âmbito de um projecto estético-literário que emerge, desse modo, como uma totalidade — não a totalidade tradicional da narrativa, mas uma nova totalidade, em que a opção estética e a visão existencial, ancoradas numa longa anamnese, se tornam um todo que interpela o leitor.

sábado, 13 de dezembro de 2025

Beatitudes (84) Solidão e mar

Harry Tolley, On the Lonely Shore, 1894

As horas em que um homem se afasta dos caminhos da turba e procura a solidão perante o silencioso rumorejar do oceano, essas horas são tão belas quanto o florir de uma rosa. No contemplar do mistério das águas, o pensamento floresce, guardando-se do vício das coisas sem importância e dos hábitos cravados na memória. Por instantes, sente-se a vertigem de uma beatitude que não pertence a este mundo.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Perfis 20. O alfaiate

Francesc Català-Roca - Sastreria Carrer Hospital, circa 1950
Compõe o manequim como, diante do espelho, se compõe a si. O alfaiate não faz fatos, mas gere composições, orquestra aparências, abre e fecha destinos com o labor das mãos, o apurado sentido da visão. Dele, depende a vaidade de quem com os seus fatos se veste, não para ser o que é, mas para se esconder de si mesmo, com temor de ser outra coisa que não o que o seu desejo lhe traça como horizonte. E em tudo isso pensa o alfaiate ao ver no manequim o cliente que vai chegar e aquele que partiu, pois todos eles - os seus dedicados clientes - são uma emanação da sua fantasia, uma transfiguração móbil de um manequim hirto, que ninguém, nem ele, o mais perfeito dos mestres, conseguirá insuflar a inquietação de um espírito, a sombra de uma alma, a luz da vida.

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Cadernos do esquecimento 57 No crepúsculo

Edmond Sacré, Crépuscule D’Hiver, 1903

Em todos os crepúsculos há um momento de revelação, a epifania de qualquer coisa que ultrapassa a medida comum, mas que o transcorrer do dia esconde. Só nessa hora de incerteza, quando a luz hesita entre a claridade e as trevas, o que estava oculto dança perante os olhos do espectador. A dança, porém, ao mostrar o que se oculta, estende um novo véu não sobre o olhar, mas sobre a razão. Os olhos vêem, mas o entendimento não compreende. A vontade trabalha, impele a consciência para a descoberta, mas a escuridão já caiu e tudo se perde nessa batalha do logos contra o mythos, da razão contra a imaginação. Se a noite é de Inverno, a lareira acolhe aquele que esteve prestes a compreender e dá-lhe, na inquietação das labaredas, um caminho para que a imaginação possa figurar, aquilo que, no crepúsculo, a visão observou, mas a inteligência não conseguiu aprisionar com as correntes do seu labor.

domingo, 7 de dezembro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (29)

António Areal. sem título, 1962 (Gulbenkian)

Uma terra de tufo,

cascatas de erva,

poeiras,

armazém de solidão.

 

No vapor das margens,

a lenta figura

do passado

abre-se em soluços:

cólera de carvão,

vírus da vida.

 

[1993]

 

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Presidenciais, o grau de ressentimento


As próximas eleições presidenciais vão medir o grau de ressentimento político dos portugueses. Em teoria, há quatro candidatos que podem aspirar a passar à segunda volta. Para usar uma classificação de um amigo, temos duas rainhas de Inglaterra (Marques Mendes e António José Seguro) e dois caudilhos (Gouveia e Melo e André Ventura). A métrica seria a seguinte: Se passarem à segunda volta as duas rainhas de Inglaterra, o ressentimento político dos portugueses, apesar de existir, ainda não atingiu níveis preocupantes. Caso passem uma rainha de Inglaterra e um caudilho, o ressentimento social terá atingido níveis preocupantes, mas não catastróficos. Porém, se passarem à segunda volta os dois caudilhos, o ressentimento político dos portugueses atingiu o nível da catástrofe para as instituições e a democracia liberal. 

As rainhas de Inglaterra pretendem o normal funcionamento das instituições, um jogo político dentro das regras habituais. Tenderão a evitar convulsões políticas e estarão interessadas em baixar o grau de crispação política existente. Para estes objectivos, a melhor rainha seria António José Seguro, mais sensato, menos dado a explosões e menos marcado partidariamente, embora Marques Mendes também será uma rainha dentro do espírito constitucional. Seja como for, nenhum deles quererá destruir o regime, nem fazer de Belém o centro da governação. E isso, para quem quer viver num país pacificado e em liberdade, é uma excelente notícia. 

Os caudilhos não representam qualquer segurança relativamente ao normal funcionamento das instituições. André Ventura não morre de amores pelo regime democrático-liberal. A sua finalidade – intitulada Quarta República – é estilhaçar as instituições (veja-se o comportamento do seu partido na Assembleia da República) e tentar transformar o país num presidencialismo iliberal, ainda que de fachada democrática. A Presidência é um óptimo lugar para a guerrilha destruidora das instituições. Quanto a Gouveia e Melo – um Sidónio do século XXI? – o problema é o seguinte: o que pretende um homem de acção ao candidatar-se a um cargo que permite pouca acção? Não será apenas um exercício de vaidade, mas também um sonho de um chefe militar de pôr na ordem a política e os políticos. Coisa que, como se sabe, nunca dá bons resultados. Os dois caudilhos têm ambos potencialidades para desestabilizar o regime democrático e desestruturar as instituições. 

A saúde das nossas instituições políticas depende, nos dias que correm, do grau de ressentimento político dos portugueses: vão escolher entre a vida normal sob a égide de uma rainha de Inglaterra ou o conflito sob o comando de um caudilho.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Ensaio sobre a luz (133)

José Pedro Croft, Et sic in infinitum (Gulbenkian)

O terrível magnetismo da luz rouba o espaço da escuridão. Rompe as densas muralhas onde as trevas se protegem e maquinam os seus planos inomináveis, conspirações feitas com o alcatrão da noite e o pez da desvergonha. Tudo, então, se alumia, os rostos minados de medo, os cantos escuros das ruas, os nomes que a memória esqueceu na cave mais negra do inconsciente.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Presidência da República e instabilidade política


O nosso regime político semipresidencial nasceu de um duplo medo. Por um lado, o medo de um parlamentarismo como o da primeira República, com toda a instabilidade política que existiu. Por outro, o medo de um presidencialismo que fosse uma porta aberta para um novo regime autoritário. Destes dois medos, gerou-se, na Constituição de 1976 e revisões subsequentes, o perfil das actuais instituições políticas. A decisão dos constituintes, na época em que foi tomada, talvez tenha sido a mais prudente. Pouca cultura democrática e experiências traumáticas com os dois regimes anteriores, conduziu à criação de um regime político onde o parlamento, origem do governo, está sob tutela paternalista do Presidente da República.

A solução escolhida tem funcionado razoavelmente. Contudo, se olharmos para a história dos últimos 50 anos, não é difícil perceber que os Presidentes da República têm sido – todos eles – os principais factores de instabilidade política. Desde Eanes, que patrocinou um partido político ainda como Presidente, até Marcelo Rebelo de Sousa que coleccionou dissoluções da Assembleia da República só porque o seu poder discricionário lhe permitiam inventar regras. O problema surge porque há duas legitimidades populares. Tanto a Assembleia da República como o Presidente são eleitos pelo voto popular. Ora, quando não coincidem politicamente, os Presidentes manobram continuamente para fazer chegar os seus ao poder, interrompendo mandatos que em países de regime parlamentar chegariam tranquilamente ao fim.

Vamos para uma nova eleição presidencial. A lista de candidatos não augura que essas práticas desestabilizadoras vindas da Presidência desapareçam. Pelo contrário, pois entre os candidatos mais fortes há dois – Marques Mendes e António José Seguro – que se inscrevem na tradição presidencial inaugurada por Eanes, mas marcada decisivamente por Mário Soares, e outros dois – Gouveia e Melo e André Ventura – que são, por motivos diferentes (um porque pode ser tentado a interferir na decisão política, um pouco à imagem de Eanes, e o outro porque aspira a um presidencialismo que lhe dê poderes próximos do autoritarismo), uma ameaça para o papel das Assembleia da República. Portugal tem já maturidade democrática suficiente para reequacionar a transição para um regime parlamentar puro, mesmo numa altura em que a geometria partidária se tornou mais complexa. Um dos factores de instabilidade política, a Presidência da República com os poderes que tem, desapareceria, substituída por uma Presidência próxima, digamos assim, da função dos Reis nas monarquias constitucionais. O único juiz dos governos seria o povo e não, como actualmente, o povo e um Presidente que finge ser árbitro, mas que é, na verdade, um jogador.

sábado, 29 de novembro de 2025

Nocturnos 133

Fernando Calhau, The Island of the Dead segundo Arnold Böcklin, 1993

Não há crepúsculos ao cair da noite, nem a anunciação da aurora, pois, na ilha dos mortos, a própria luz está morta. Trevas eternas são a casa onde os que deixaram a vida habitam. Caminham nelas em silêncio, mas sem o azedume do ressentimento nem a ira da revolta. Quando estão cansados de caminhar e se sentam perante o mar negro, pensam na luz e interrogam-se sobre se um dia ela voltar à ilha não os tornará mais cegos que a escuridão. Depois, levantam-se e elevam um cântico à noite eterna que a tudo envolve.

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (28)

José Manuel Espiga Pinto, Terra Marcada Nº 2, 1971 (Gulbenkian)

Assim escurecida,

a terra é um

rumor errante,

mácula

de sol e sombra,

uma pedra

no silêncio

das estrelas,

na poeira do luar.


[1993]


terça-feira, 25 de novembro de 2025

Meditações melancólicas (97) Uma eleição

Carlo Carra, Gentiluomo Ubriaco, 1916
Não tarda, e temos de ir escolher o próximo Presidente da República. A eleição presidencial tornou-se, se não numa coisa dolorosa, pelo menos num acontecimento melancólico. Talvez se tenha imaginado que o cargo só deveria ser ocupado por um grande, mulher ou homem, que tivesse adquirido esse estatuto na vida política. E essa tem sido a regra, embora o actual Presidente já tenha sido eleito com pé e meio fora dessa regra. Contudo, ao olharmos os candidatos, entre altos e baixos, não se vislumbra um que, pela sua acção política, tenha meio pé dentro do círculo dos grandes deste país. São umas eleições tristonhas, com candidatos comprados nos saldos, em que não se vislumbra um em que apeteça votar. Muitos deles são esforçados, mas a quem falta pedigree, não aquele herdado por via da genética - isto não é uma Monarquia -, mas adquirido pelo combate pelo bem comum. Uma eleição entre valetes e arrivistas, em pleno e melancólico Inverno. O Inverno do nosso descontentamento. 

domingo, 23 de novembro de 2025

Simulacros e simulações (76)

Marcelino Vespeira, Óleo 131, 1960 (Gulbenkian)

Talvez sejam braços em busca da potência mecânica do movimento. Talvez sejam hélices em rotação à procura do sossego e do silêncio depois de um voo atribulado. Talvez sejam os olhos que levam a imaginação a supor mundos onde não existem. Talvez seja o desejo que, vergado à carência, não pára de simular fantasias e quimeras.

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Manuel Ribeiro (1878-1941)


[Um pedido de desculpas aos leitores: o texto do post tem estado truncado, foi agora reposto correctamente]

Como em todas as literaturas, também na portuguesa existe um cânone. No romance, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Agustina Bessa-Luís ou José Saramago pertencem, de forma permanente, ao cânone. Outras entrarão e sairão dele em conformidade com os humores do dia. E há aqueles que parecem excluídos para sempre desse cânone. Como o escritor alentejano Manuel Ribeiro. Contudo, é uma personagem muito interessante e um escritor com qualidade literária. Muito lido nos anos vinte e trinta, a morte trouxe-lhe, como a muitos outros, o esquecimento do público.

Filho de um sapateiro de Albernoa, chegou a cursar medicina, tendo desistido por falta de recursos. Teve um percurso singular. Durante a República interessou-se pelo sindicalismo, foi director do jornal revolucionário A Bandeira Vermelha. Tornou-se anarquista, colaborando com o jornal A Batalha, e, para completar o percurso revolucionário, foi um dos fundadores do Partido Comunista Português, onde foi eleito para a comissão geral de educação e propaganda e para a Junta Nacional. Em 1921, foi enviado como delegado da secção portuguesa da Internacional Comunista ao III Congresso do Comintern. Contudo, o percurso de Manuel Ribeiro não termina aqui. O revolucionário anarco-comunista converteu-se ao catolicismo, onde encontra a espiritualidade que as doutrinas revolucionárias tinham escondido sob os problemas do estômago.

Entre os nove romances que publicou, destacam-se duas trilogias. A Trilogia Social (A Catedral (1920); O Deserto (1922); A Ressurreição (1923) e a Trilogia Nacional (A Colina Sagrada (1925); A Planície Heróica (1927); Os Vínculos Eternos (1929). Na primeira, acompanha-se o percurso de um arquitecto, Luciano, no seu processo de conversão ao catolicismo. De certa maneira, podemos ver na personagem uma projecção do autor. O curioso é que o processo de conversão estava já em andamento, enquanto Manuel Ribeiro era preso como revolucionário ou quando foi um dos fundadores do Partido Comunista. A Trilogia Nacional trata, em primeiro lugar, dos tempos finais da República, depois da tensão, no Alentejo, entre a terra e a fé e, por fim, do conflito entre moral e ciência, um tema actual.

Vale a pena voltar a ler Manuel Ribeiro? Sim, embora não seja fácil para leitores que não tenham disponibilidade para uma linguagem rica, erudita e complexa, nem para a descrição que suspende a acção, para dar ao leitor a possibilidade de contemplar através das palavras aquilo que o autor contemplou. Manuel Ribeiro, como outros escritores portugueses, não merece o esquecimento em que caiu.

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Beatitudes (83) Inverno

Léonard Misonne, Hiver, 1904
A rudeza do Inverno, com o seu pacto entre o frio, a parca luz  e os dias pequenos, não é um motivo de dor ou ocasião de trenódia. Há nessa mistura de sombras um secreto júbilo, onde a rememoração dos dias luminosos se junta à esperança do que virá. O Inverno é, também, ele, o linho com que se pode tecer a vida feliz.