quarta-feira, 28 de maio de 2025

Partido Socialista - uma pulsão de morte

Jean-Michel Basquiat, Riding with Dead, 1988

Se se quer uma prova de que a esquerda está habitada por uma pulsão suicidária, basta olhar para o processos em curso de substituição da liderança socialista. É verdade que, desde há muito, o Partido Socialista perdeu o carácter originário. A única coisa que lhe interessa é a ocupação do poder. Contudo, mesmo nessa óptica é estranho que depois de Pedro Nun Santos, um jovem turco mal preparado e sem qualquer capacidade de penetrar no eleitorado, se entregue nas mãos de José Luís Carneiro, um mestre-escola com o carisma de uma tartaruga moribunda. Perante a futura liderança socialista, os eleitores perguntar-se-ão: por que razão haveremos de votar num PS de Carneiro se já temos o PSD de Montenegro ou de outro que lhe venha a suceder? Não me ocorre nenhum razão substantiva.

O problema, porém, está muito longe de ser este. O Partido Socialista ao mudar de líder como muda de camisa, está apostado numa coisa: evitar a todo o custo discutir as razões que o levaram à queda. Não quer discutir as razões sociais que conduziram a um desencontro entre o partido e a sociedade. Não quer discutir as razões políticas da pesada derrota que sofreu. Fundamentalmente, não quer discutir a própria natureza do partido, da sua estrutura e das suas práticas, tudo coisas que têm levado os eleitores a olhar os socialistas com desconfiança. Este não querer enfrentar a própria realidade - sob o alibi de que isso poderia prejudicar o partido nas eleições autárquicas - é o sintoma de uma doença profunda que atinge os socialistas portugueses, à imagem do que acontece com outros partidos irmão na Europa. Os socialistas tinham escolhido um mau caminho com Pedro Nuno Santos e pagaram por isso. Agora vão mudar radicalmente para que tudo fica radicalmente como está.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Simulacros e simulações (73)

Lagoa Henriques, sem título, 1974 (Gulbenkian)
Há um momento em que, ao envelhecer, os homens iniciam uma lenta metamorfose. O corpo perde as fronteiras e vai-se transformando, sem pressa, numa árvore. Não em qualquer árvore, mas naquela que um dia se sonhou ser a autêntica árvore do paraíso.

sábado, 24 de maio de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (13)

José Sanléon, Cuadrado blanco, 1989
 

Pássaros brancos

de asas fluviais.

Aves vergadas

ao peso da tarde,

inclinadas

para a sombra.

Corvos calados

na cal do silêncio.

 

[1993]

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Beatitudes (80) Poente

William Gordon Shields, Sunset on New York Bay, 1915-20

Também no fim existe uma beleza inexplicável, como se o que acaba pertencesse a dois mundos: aquele de onde parte e aquele que o espera. Rasgada a passagem, a luz de um e de outro lado mistura-se e deixa cair um véu que vela o olhar para o abrir para o que até então era invisível.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Abandonados pelo voto popular

Camille Pissarro, Fiesta en la ermita, 1878

Um dos dados mais importantes das eleições de domingo foi o abandono da esquerda pelo voto popular. Os resultados são aterradores para os partidos tradicionais de esquerda. Não apenas porque, no conjunto, estão reduzidos no número de deputados – 68 em 230, mas porque o eleitorado que os abandonou muito dificilmente retornará. Parte substancial do eleitorado do Chega (isto já tinha acontecido nas eleições do ano passado) vem da esquerda. São pessoas que estão revoltadas com a sua situação social e cansaram-se tanto do reformismo socialista como da retórica revolucionária do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda.

Não querem saber de transformações colectivas, nem da luta dos trabalhadores ou das minorias. O centro do seu interesse político é a sua vida. Votaram no partido que imaginam dar corpo à sua revolta. É uma esperança do desespero. Imaginaram, durante muito tempo, que seria a política de esquerda que levaria o Estado a resolver os seus problemas. Como o Estado é impotente para o fazer, pois cada um depende de si mesmo, mudaram não o modo de pensar, mas o sentido de voto. Tornam a imaginar que um partido ou o seu líder lhes resolverá o problema. É uma ilusão que levará tempo a ser desfeita.

E enquanto a ilusão popular no salvífico messias se não desfizer, a esquerda fica confinada a um eleitorado da classe média, um eleitorado educado, elitista, mas que não é suficiente para a fazer retornar ao poder. Perder parte substancial do voto popular é uma derrota muito mais grave para a esquerda do que o miserável número de assentos parlamentares que obteve. Pode ser o sintoma de uma doença crónica muito grave, que se arrastará no tempo, mas que pode não encontrar solução.

domingo, 18 de maio de 2025

Falando de democracia


O filósofo norte-americano David Estlund, numa resposta à ideia de um regime epistocrático (um regime onde o governo estaria na mão dos sábios), argumenta que a participação colectiva produz, tendencialmente, melhores resultados do que uma governação de peritos isolados. Há em Estlund uma aposta razoável na competência da comunidade em fazer escolhas. Contudo, esta aposta tem um problema. Ela é, na verdade, baseada numa apreciação empírica das democracias. Não há uma relação necessária – e a priori – entre decisão colectiva e boa decisão. Podemos mesmo estar a entrar numa fase em que, devido à grande complexidade da vida social, as comunidades, movidas pelo sentimento, a emoção e o ressentimento, façam escolhas péssimas. Os primeiros tempos da nova administração Trump parecem dar argumentos a esta visão. Assiste-se, nos dias de hoje, a verdadeiros testes a essa sabedoria colectiva. E não é líquido que ela tenha nota positiva.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Um novo Papa


A eleição de um novo Papa é um acontecimento sempre marcante, apesar de se viver, na Europa, em sociedades cada vez mais estranhas ao cristianismo. Uma das grandes preocupações, antes, durante e após a eleição de Leão XIV, era se o sucessor de Francisco seria conservador ou progressista. Assiste-se já a um ataque da extrema-direita ao novo Papa por não ser um conservador, e, à esquerda, desconfia-se de que não será tão progressista quanto se esperaria. Há, em tudo isto, um equívoco. Termos como conservador e progressista são provenientes de uma ordem de coisas que não a religião e encerram neles a confissão de paixões políticas. Ora, se há uma paixão que deve guiar um Papa, é a Paixão de Cristo — e não as paixões políticas. Mesmo para um Papa, isso não é fácil.

O Sumo Pontífice não é apenas o sucessor de Pedro. Este, além de uma pessoa, é uma função. Por isso, qualquer Papa é, de novo, Pedro, a pedra sobre a qual o Cristo edifica a sua Igreja. Se olharmos para os textos evangélicos, encontramos dois episódios centrais para compreender esta função entregue a um ser humano. Em primeiro lugar, o reconhecimento. A função petrina é instaurada após a pergunta de Cristo: Quem dizeis vós que Eu sou? E Simão Pedro responde: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo. Contudo, a interpretação deste episódio não pode ser desligada da leitura de um outro: o da tripla negação de Cristo por Simão Pedro, na noite em que Jesus foi preso pelos poderes deste mundo e a sua Paixão era iminente. Qualquer Papa vive na tensão entre o reconhecimento de Cristo e a negação desse reconhecimento perante o perigo. Essa negação é, na verdade, a condescendência submissa aos poderes deste mundo.

As tentações conservadoras e progressistas dos Papas são as três negações de Pedro, no mundo moderno, perante a proximidade da Paixão do Mestre. São a cedência aos poderes do mundo, às suas paixões políticas e ao temor perante o significado da Paixão crística. Isto não torna os Papas heréticos. Mostra-os, à semelhança de Pedro, como homens frágeis perante um acontecimento que ultrapassa a compreensão humana. A função papal inclui, deste modo, o reconhecimento de Cristo como Filho de Deus, mas também a negação de que se pertence ao seu mundo. João Paulo II é louvado pela sua luta contra o comunismo; Francisco, pela sua denúncia da injustiça social. Ora, em ambos os casos, isso constitui a fraqueza perante a Paixão eterna do Filho de Deus. É a sua negação. Contudo, esta negação não ofusca o essencial: a resposta à pergunta Quem dizeis vós que Eu sou? Na economia da crença católica, o Papa é o que diz: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (12)

Sam Francis, Around the Blues, 1957-1962

Fulgura uma colmeia azul

na carne ferida pelas mãos,

a boca cansada de pólen.


Fulgura um fogo de água

no voo cego de um anjo,

a quietação do anoitecer.

 

[1993]

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Simulacros e simulações (73)

Eduardo Anahory, sem título, 1983 (Gulbenkian)
Pensamos cidades tomadas pela pureza da geometria, como se fossem fruto de um excesso de racionalidade ou do mais improvável dos acasos. Depois, gera-se um mapa em que as ruas crescem como linhas rectas que se cruzam numa quadrícula. Espreitamos esse mundo, e nele não há homens, nem cães, nem pássaros; e as árvores ali plantadas inclinam-se para a morte tomadas pelo pavor da solidão.

sábado, 10 de maio de 2025

Prosa dos dias (32) Coroação

Hans Baumgartner, Der Milchmann. Zürich, 1938

Aquilo que há de prosaico nos dias é a sua dura submissão à necessidade. Os homens movem-se, impelidos por essa mola real, e seguem em diante, arrebatados pela deusa impiedosa. Não percebem, contudo, que, no texto obscuro das suas vidas, uma outra divindade — uma musa, dir-se-á — trabalha, discreta e silenciosa, para que a necessidade se torne cada vez menos necessária. Até ao dia em que se assiste à sua deposição e, no seu trono, é coroada, como rainha eterna e inevitável, a pura liberdade.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Um novo Papa

Hoje foi escolhido um novo Papa. Três sinais interessantes. Em primeiro lugar, a Europa está em perda dentro da Igreja Católica. Enquanto os europeus se vão afastando da Igreja, esta parece procurar âncoras noutros lados. Dois Papas vindos do Novo Mundo é mais do que um mero acaso. É uma orientação.

Em segundo lugar, a escolha do nome: Leão XIV. Se esta escolha pretende significar alguma coisa, e faz sentido que assim seja, isso significa o restabelecer de uma ligação com o Papa Leão XIII. A atenção que este deu à questão operária - em polémica tanto com o liberalismo como com o socialismo - é a sua imagem de marca. Leão XIV parece predisposto a dar atenção não já tanto à questão operária, mas à dos pobres e dos desfavorecidos. A questão social continua viva na Igreja.

Por fim, uma das frases emblemáticas das suas primeiras palavras. Para começar, escolheu a paz de Cristo, essa paz desarmada e desarmante, como disse. Isto mostra que continuará a haver, por parte da Igreja Católica, uma atenção muito especial aos problemas da paz e da guerra. Não uma atenção inscrita na política deste mundo, mas radicada na mensagem evangélica. Uma paz que não é a dos homens, numa política que não é deste mundo.

terça-feira, 6 de maio de 2025

Faça a sua enciclopédia


O primeiro livro da Metafísica de Aristóteles começa com a afirmação: todos os homens, por natureza, desejam saber. Mobiliza como prova o prazer que os sentidos – e, acima de todos, o da visão – nos proporcionam, independentemente da utilidade que têm. O desejo de saber faz parte da nossa natureza. É no século XVIII que surge uma primeira grande resposta ao desejo de ter qualquer conhecimento à mão, embora já tivessem surgido, há muito, outras tentativas, embora menos articuladas. Trata-se da Enciclopédia, de Diderot e d’Alembert. Estes autores tinham a pretensão de reunir e organizar todo o saber humano. A partir daí, cresceram as enciclopédias. Em Portugal, foram famosas a Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e a Enciclopédia Verbo

Com a chegada da internet, o mundo da enciclopédia modificou-se radicalmente. Houve algumas que desapareceram, outras que se adaptaram, como a inglesa Encyclopædia Britannica e a francesa Encyclopædia Universalis. Trocaram o papel pelo digital e tornaram-se acessíveis, sem perder qualidade, à generalidade das pessoas. Uma das revoluções no domínio enciclopédico foi o nascimento, em 2001, da Wikipedia: uma enciclopédia completamente digital, de acesso livre, construída colaborativamente e em actualização contínua. Como se sabe, enfrenta problemas de fidedignidade, mas tem sido um instrumento de grande utilidade para muitos milhões de pessoas em todo o mundo. A Wikipedia tem uma natureza mais comunitarista, proporcionada pelo estabelecimento de laços, através da rede, entre pessoas que jamais teriam, de outro modo, qualquer projecto comum.

Hoje, porém, numa perspectiva liberal, cada um de nós pode fazer a sua enciclopédia. Os chatbots, como o ChatGPT (OpenAI) e o Gemini (Google), oferecem um modelo denominado pesquisa profunda: fazem investigações altamente estruturadas e orientadas pelos pedidos que lhes são feitos, devolvendo um relatório articulado sobre o assunto solicitado. Têm uma grande elasticidade. Basta que o utilizador peça uma nova investigação do mesmo assunto, a partir de outro ponto de vista, e, em poucos minutos, tê-la-á. Cada um pode ir construindo a sua enciclopédia, conforme o seu desejo de saber. Estas enciclopédias pessoais – com o aumento contínuo da informação disponível online e com o desenvolvimento da capacidade de detectar erros por parte dos chatbots – estão em incessante melhoria, tornam-se organismos vivos. Isto é uma revolução. Traz consigo tanto o perigo de uma hiperindividualização do conhecimento, com a diluição de critérios comuns, como a virtude da democratização do acesso ao saber. Para quem não deixou morrer em si o desejo natural de saber, é uma grande tentação.

domingo, 4 de maio de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (11)

Victor Vasarely, 166 Sirs-Kek, 1953

Deslizam palavras pelas ruas,

sílabas na poeira do coração.

Iremos tão longe na terra.

Iremos à casa do silêncio.

Iremos ao som esboçado

no velho rio da gramática,

na crina da névoa ao arder.

 

[1993]


sexta-feira, 2 de maio de 2025

Educação e Inteligência Artificial


 A democratização do uso da inteligência artificial (IA) é o maior desafio dos últimos 2 600 anos — época em que emergiu a filosofia — colocado aos processos formais de educação das novas gerações. Como deve evoluir o ensino num mundo em que a IA pode fornecer sistematizações rápidas e profundas de informação? Corremos um risco: o recurso passivo à IA pode impedir que as novas gerações desenvolvam um conjunto de competências intelectuais importantes e que isso traga uma paradoxal diminuição da inteligência na espécie. Como deve evoluir o ensino para que a espécie se adapte ao novo ambiente? Que lugar devem ter os tradicionais exercícios de memorização e de sistematização? Que lugar deve ter o desenvolvimento, desde muito cedo, das capacidades de interrogação crítica, avaliação reflexiva e redescrição criativa da informação?

Qual é o solo a partir do qual pode florescer a inteligência crítica, qual é a terra que é preciso não descurar na educação, para que a planta se desenvolva e floresça? Esse solo são as velhas competências da memória e da sistematização da informação (a sua classificação e organização). Se esse solo não for cuidado, toda a semente lançada nele morrerá. Isto não significa que métodos arcaicos de ensino sejam a solução. Significa outra coisa: é necessário que os responsáveis pela educação e os professores encontrem a melhor maneira de trabalhar o desenvolvimento dessas competências básicas. O importante não é se a metodologia é nova ou tradicional, mas que funcione, que conduza os alunos a fortalecer os processos ligados à memória e à sistematização.

Se a informação sistematizada pela IA se encontra à distância de um prompt (a questão posta ou tarefa pedida à IA), as novas gerações necessitam de desenvolver, para além das competências tradicionais, outras bem mais complexas. Precisam de aprender a interrogar a IA, de cultivar competências lógico-matemáticas e de avaliação crítica da informação gerada, bem como de fomentar a capacidade de articular dados para resolver problemas práticos ou cognitivos. Precisam de ser activos na relação com a IA e não receptores passivos — caminho certo para a estupidificação. O novo ambiente gerado pela IA não vem substituir o esforço dos alunos. Vem exigir mais esforço no desenvolvimento das competências básicas e no das mais elevadas. Ambas têm de ser mais sólidas. O caminho será compatibilizar o desenvolvimento das competências básicas da memória e da sistematização com as mais exigentes do pensamento crítico e reflexivo. A IA não veio trazer o descanso, mas um esforço mais complexo e profundo na aprendizagem. Só sobreviverá quem se tornar mais inteligente, não menos.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Cadernos do esquecimento 56 Gramática

Fred Kradolfer, sem título, 1930 (Gulbenkian)

Há uma gramática da memória que, como todas as gramáticas, articula a fonética, a morfologia e a sintaxe daquilo que se recorda e do que é entregue ao esquecimento. A fonética memorial observa a sonoridade da recordação, enquanto a morfologia medita sobre a formação das unidades mnemónicas e o modo como, partindo de unidades mínimas, se estruturam noutras mais amplas. Por fim, a sintaxe ocupa-se dos exercícios combinatórios dessas unidades, estruturando paisagens, como grandes textos que nos trazem o que estava oculto. Sobre tudo isso reina o esquecimento — não como uma ameaça, mas como o campo de possibilidade de onde emerge o que escapa ao olvido.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Marlen Haushofer, A Parede


Publicado em 1963, A Parede é o romance mais conhecido de Marlen Haushofer (1920–1970), escritora austríaca cuja obra explora a solidão, o isolamento e a condição humana perante a fragilidade da existência. A obra é a experimentação literária de um cenário hipotético, uma experiência de pensamento para explorar a condição humana. A protagonista – sem nome na história – está de visita a uma casa de campo de uns primos. À noite, eles saem para ir à aldeia. Quando ela de manhã acorda, depara-se com um cenário inesperado: uma parede transparente e inexpugnável tinha aparecido, separando-a do resto do mundo. Fica isolada, apenas na companhia do cão da família e de alguns animais. Compreende que qualquer coisa se passou do outro lado da parede, de onde a vida terá desaparecido.

Um dos testes que o romance faz está relacionado com a natureza social do homem. Somos seres em relação, diz-se. O romance questiona: e se ficarmos isolados? Se toda a sociabilidade humana desaparecer porque sou apenas um? A parede é uma metáfora para pensar o processo de hiperindividualização por que passava já, nos anos sessenta do século passado, a sociedade ocidental. Essa hiperindividualização significa, na prática, um corte com os outros, mesmo que com eles se conviva socialmente ou até na vida amorosa. O indivíduo, na sua afirmação radical, transporta a parede que o isola de todos os outros, os quais deixam de ter para ele uma existência real. O romance hiperboliza a experiência social de isolamento e torna visível aquilo que o hábito e a vida quotidiana ocultam. A estranha parede que separa a protagonista é o símbolo da parede que torna estranhos, para cada um de nós, qualquer outro ser humano.

A alteração no espaço, a limitação da liberdade de ir para além da parede, devolve, paradoxalmente, à protagonista uma liberdade radical. Toda a convenção social, toda a regra moral, toda a lei jurídica, tudo o que resulta do processo de regulação social, cuja finalidade é limitar as liberdades individuais naquilo que têm de danoso para os outros, desapareceu. Apenas a lei da natureza a limita. Essa experiência de uma liberdade absoluta tem o condão de, ao ver-se livre das regras sociais, a colocar perante os seus limites animais. Ela precisa de sobreviver, de organizar a vida não para e com os outros, mas para si e apenas consigo. Quando se elimina a convenção – que diminui e, por vezes, sufoca a nossa liberdade – o que descobrimos é a pura necessidade. Ela vai ter de aprender a trabalhar a terra, de cuidar da vaca que encontrou, do cão que herdou ou da gata que, na sua independência, usa a sua hospitalidade. O efeito paradoxal do romance é mostrar, sem nunca o afirmar, que a liberdade só existe em sociedade – nessa mesmo que nos coage e nos limita; fora dela, só encontramos a necessidade animal.

Se no romance o espaço se limitou, o tempo sofreu uma metamorfose. Ficar naquela situação e ter de sobreviver significa sair do tempo histórico e entrar num tempo cíclico, o tempo da natureza. O tempo histórico é linear: uma linha que vem do passado em direcção ao futuro, que é preenchida pelos acontecimentos da vida social da humanidade. É essa linearidade que conduz, por necessidade da própria razão humana, a colocar nesse passado um tempo mítico originário e, no futuro, uma qualquer ideia de fim da história. Tudo isso é agora evacuado pelos ritmos da natureza, com as suas épocas de sementeiras e de colheitas, com a sua dinâmica de um eterno retorno das mesmas tarefas. Não há história sem comunidade humana, sem o trágico da acção, sem a disputa interminável entre homens e comunidades.

Esta saída da história e a perda de sentido do calendário põem à protagonista um problema de referenciação temporal. Como se orientará, nesse seu novo mundo, no tempo? Há uma dupla estratégia de referenciação. A primeira é a da já referida ciclicidade da natureza, com os trabalhos necessários para assegurar a sobrevivência, segundo o ritmo das estações. A segunda é a escrita do diário como modalidade de consolidação da memória e de referenciação temporal. O romance é o diário da protagonista, o registo da sua existência enquanto exemplar único de uma espécie que parece ter-se extinguido. Pode pensar-se, na interpretação do romance, a escrita do diário de dois pontos de vista. Por um lado, como um acto de resistência ao desaparecimento da humanidade. Por outro, como o registo dos momentos finais dessa mesma humanidade. O mais plausível é pensar essa escrita dirigida a si mesma como um acto de resistência e um registo de apagamento, uma espécie de objecto que se poderá tornar um monumento, embora não exista ninguém para o ler. Um guia na temporalidade até à hora em que já não haverá qualquer ser que tenha consciência dessa temporalidade.

Mais do que o desaparecimento da sociabilidade humana e o confronto com a necessidade estrita da sobrevivência, numa situação em que os processos de cooperação desapareceram, o romance acaba por reforçar – na experiência do isolamento mais radical – a natureza social dos seres humanos. A protagonista cria uma comunidade com os animais à sua volta. O cão Lince, a vaca Bella, com o seu filho, a gata e as suas ninhadas. A comunidade – o viver com os outros – revela-se assim como inescapável. Desaparecidos os seres humanos, há que encontrar uma nova comunidade, para que a vida continue a ser possível. E é aqui que se revela uma das ideias centrais do livro. Essa comunidade assenta não na utilidade, mas no cuidado. A protagonista cuida dos seus animais não porque lhe sejam úteis, mas para os proteger. Isto permite repensar todo o romance como uma metáfora sobre a necessidade de substituir, nas relações humanas, o ethos da relação utilitária, que isola e coisifica as pessoas, por um ethos do cuidado, por um dever de atenção ao outro, mesmo que esse outro não tenha o rosto que esperamos.

sábado, 26 de abril de 2025

Liberdade e democracia

Ana Hatherly, Ruas de Lisboa, 1977 (Gulbenkian)

Ontem, julgo que numa iniciativa do Banco de Portugal, Pacheco Pereira afirmou que a liberdade chegou na tarde de 25 de Abril de 1974, mas que a democracia ficou claramente instaurada apenas na revisão constitucional de 1982. A distinção entre liberdade e democracia nem sempre é compreendida. Podemos ter liberdade – pelo menos em tese – sem termos um regime democrático. Podemos ter uma democracia sem termos liberdade. Aliás, são duas realidades que não raras vezes entram em choque. Essa era já uma preocupação do pensador político francês do século XIX, Alexis de Tocqueville.

É possível conceber uma sociedade onde não há um método de escolha dos governantes, mas na qual não existe censura, nem polícia política, nem perseguição por motivos ideológicos ou políticos. As pessoas são livres de fazer o que entenderem das suas vidas, inclusive são livres de criticar os detentores do poder, mas não têm o direito de escolher quem as deverá governar ou de participar nessa governação. É estranho para os nossos hábitos mentais, mas no conceito de liberdade individual não se inclui necessariamente o direito de escolher a governação.

Por outro lado, podemos conceber um regime democrático, onde existe o direito de participar na escolha dos governantes, mas em que a liberdade é restringida. A democracia pode ser uma ditadura da maioria, onde esta, legitimada pelo voto, diminui as liberdades da minoria ou certas liberdades individuais. É isso que se passa nas denominadas democracias iliberais: são formalmente democracias, mas as liberdades estão condicionadas.

Dizer que uma democracia é liberal não é o mesmo que dizer que é uma democracia representativa. Esta pode, através de representantes eleitos, limitar ou negar as liberdades individuais. Dizer que uma democracia é liberal significa que é democrática – depende do voto da maioria na escolha dos governantes –, mas que, em momento algum, as maiorias têm a capacidade de eliminar os direitos das minorias ou dos indivíduos.

O 25 de Abril, de facto, trouxe de imediato as liberdades; a democracia liberal foi uma lenta construção, que teve alguns percalços no caminho, em que os portugueses aprenderam a compatibilizar o voto maioritário com o respeito pelos direitos individuais e das minorias derrotadas nas urnas. É muito importante defender a democracia, mas não qualquer democracia. É importante defender um regime que seja capaz de compatibilizar a escolha por maioria popular dos governantes com a defesa dos direitos individuais, mesmo que estes não agradem, circunstancialmente, à maioria vencedora.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (10)

Ben Shahn, The Red Stairway, 1944

Mundo sem sombra nem sol,

dedilhado sobre a noite,

imperfeito como um pretérito,

o passado aceso ao meio-dia.

 

Abrem-se ali rugas no calcário

e escaras no portão descaído,

uma rosa no vestido rasgado,

e fresco, o hálito da invernia.

 

Vou por uma rua esburacada,

iluminada de malmequeres,

seixos, a caliça nas paredes.

 

Lugar sem frutos, a poalha

entre campos, as mãos caídas,

caídas ao zunir da varejeira.

 

[1993]

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Como morrem as democracias (3)


Nos quatro países que representam o núcleo duro da cultura europeia – Itália, França, Alemanha e Inglaterra –, os partidos de extrema-direita e de direita radical/populista têm agora mais intenções de voto, medidas em diversas sondagens, do que qualquer partido democrático.

No caso de Itália, esses partidos estão no governo. Em França, a distância entre o partido da senhora Le Pen e o do presidente Macron é demasiado significativa. Em Inglaterra e na Alemanha, o Reform UK e o AfD estão a começar a ultrapassar os grandes partidos tradicionais – isto, para não falar de países como a Holanda, a Áustria, a Eslováquia, a Hungria ou a República Checa.

O que impressiona em tudo isto é a impotência com que as forças democráticas assistem ao crescimento das intenções de voto naqueles que não prezam particularmente as democracias liberais. Nem o confrangedor exemplo vindo dos EUA, com a eleição de um amigo dessas forças, demove os eleitores de, paulatinamente, se entregarem nos braços de aventureiros.

A erosão das democracias liberais vem de trás; pode ser um processo relativamente longo, mas, a continuar assim, parece ser inevitável. Às forças demo-liberais parece faltar duas coisas: imaginação para repensar o modo de acção e, acima de tudo, vontade política para enfrentar os problemas que estão a conduzir os eleitores para fora da democracia liberal.

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Beatitudes (79) O espelho de água

Henry G. Peabody, Wing and Wing, 1889 
Ao reflectirem-se nas águas cintilantes, os pequenos barcos à vela tornam-se pássaros aquáticos. Voam ao deslizar pelo lago sonolento. Cantam velhas canções de marinheiros, palavras perdidas nos arcanos da memória, no poço mercurial de cada dia. A água é um espelho onde todas as metamorfoses são possíveis. Ao olhá-la, o viandante participa na secreta beatitude que a natureza esconde no alabastro da sua pele e no âmbar dos seus desejos.