![]() |
| Rafael Barradas, Paisaje de Hospitalet, 1926 |
A vila é uma virgem
monstruosa,
o grito de uma labareda
na luz da candeia.
Deserto de zinco
habitado pelo restolho:
a memória ferida
na crueldade da alcateia.
[1993]
![]() |
| Paul Gauguin, Trois Tahitiennes sur fond jaune, 1899 |
![]() |
| Isidre Nonell Monturiol, Noche de Navidad, 1909 |
![]() |
| Fernando Calhau, Sem Título #80, 2000 (Gulbenkian) |
O coração preso
nas ruas,
cacto erguido
contra a fuligem
matinal da areia.
A vila abre-se
ao orvalho
no ócio da manhã,
nos dedos aéreos
da aurora.
[1993]
Publicado em 1947, Porta de Minerva é o único romance
do escritor Branquinho da Fonseca. A obra inscreve-se nos parâmetros do
denominado segundo modernismo português, conhecido também como presencismo,
devido à importância, para o movimento, da revista Presença. As três
figuras centrais deste movimento são José Régio, João Gaspar Simões e o próprio
Branquinho da Fonseca. Esta contextualização fornece uma chave de leitura para Porta
de Minerva, um romance que, de certo modo, representa uma ruptura, em
Portugal, com o romance tradicional proveniente do romantismo, do realismo e do
naturalismo. Opõe-se, também de modo claro, ao neo-realismo que, na altura,
tinha um peso considerável nos meios literários. Se a obra pode ser exemplo de
um conflito estético-literário, esse conflito é, claramente, o que divide
presencistas e neo-realistas, fundamentalmente ao nível do sujeito da acção
narrada. Enquanto os neo-realistas privilegiavam um sujeito social, colectivo,
implicando uma visão politicamente comprometida da literatura, o romance de
Branquinho da Fonseca contém os traços característicos do movimento presencista:
individualismo, psicologismo e exploração da vida interior do eu.
A obra pode considerar-se um romance de formação (Bildungsroman),
ao acompanhar o percurso de Bernardo Cabral desde a sua chegada a Coimbra, para
cursar Direito, até à conclusão do curso. Esses anos de formação universitária
são, mais do que a preparação profissional de um futuro jurista, a formação da
própria subjectividade, que se afirma e conquista uma autonomia intelectual,
não apenas perante as posições daqueles com quem acamaradava na vida coimbrã,
mas também perante o próprio curso de Direito, onde descortinava não uma
preparação para a realização de um qualquer ideal de justiça, mas o exercício
retórico dos docentes, despido de qualquer capacidade de gerar emoção na
subjectividade dos alunos — ou, pelo menos, na do protagonista. Esta ausência
de emoção era a outra face da rigidez burocrática, tanto da Faculdade como da
própria instituição da Justiça. A formação conclui-se num processo de
libertação da própria vida académica, como sintetiza o parágrafo com que se
encerra o romance: «Mas Bernardo ia alheio às divagações do amigo. Atravessou o
jardim da Universidade; pela nobre Porta de Minerva, com o seu arco de pedra
coroado pela deusa antiga, desceu à rua estreita. E, como num regresso
simbólico à pureza primitiva, nu, debaixo da velha capa sacudida pelo vento,
sentia que era, enfim, um homem livre.»
O romance é marcado pelo conflito entre a subjectividade,
que se está a formar em direcção à liberdade, e a instituição, enquanto
representação de forças colectivas que, nela, se depuram e se tornam mais
perigosas para o indivíduo. Não são apenas as instituições Universidade,
Direito e Justiça que são visadas de modo crítico pelo protagonista. Também a
praxe académica, com o seu conjunto de humilhações, subserviências, hierarquias
irracionais e rituais de poder entre os estudantes, é objecto de um olhar crítico
e desconstrutivo. Não do ponto de vista de uma denúncia social ou política, mas
através da ironia e da atitude com que Bernardo Cabral enfrenta os praxistas,
tanto no plano físico como no ideológico. A praxe é pressentida como inimiga de
uma subjectividade que, na sua individualidade, se quer livre. É a negação da
individualidade e a humilhação da subjectividade; é a afirmação do poder da
massa sobre a pessoa. Se há um tema que torna Porta de Minerva, ainda
hoje, uma obra que merece ser lida, é precisamente o da praxe académica e o
conflito entre ela e a autonomia da pessoa.
É também no âmbito da formação da subjectividade que emerge
a relação de Bernardo Cabral com as mulheres. De certo modo, cada uma delas
representa um arquétipo e, ao mesmo tempo, uma ameaça. Elizabeth, idealização
da estrangeira; Kate, a sensualidade madura; Maria Teresa, a amiga de infância
e a possível mulher, na expectativa familiar; e Palmira, a tricana, amante do
seu amigo, mas que se lhe oferece. Todas elas representam oportunidades — mais
eróticas ou mais sociais —, mas que arrastam perigo: pôr em causa a lealdade
devida a um amigo ou conduzir a situações sociais susceptíveis de fazer perigar
a liberdade que Bernardo pretende conquistar com a saída pela Porta de Minerva.
Aqui, o período de formação não se resolve com uma decisão no campo amoroso, mas
pela abertura de possibilidades que o romance deliberadamente não fecha.
É plausível pensar que a obra, no contexto social e cultural
português dos anos quarenta do século passado, tenha parecido, apesar de os
grandes romances modernistas europeus já serem coisa do passado, um romance
menor — não pela sua temática, mas pela construção narrativa. Não existe aquilo
a que se chama plot; não há uma intriga. A obra parece ser composta por
fragmentos ou quadros da vida de Bernardo Cabral, os quais não obedecem à
estrutura tradicional do romance. Contudo, é precisamente essa fragmentação da
narrativa, essa aparência de uma colecção de episódios descosidos entre si, que
torna, do ponto de vista formal, a obra interessante. O romance é um exercício
da memória. Do ponto de vista do narrador, constitui uma extensa analepse da
sua experiência em Coimbra e na vida académica. A memória é fragmentária, tal
como a corrente de consciência e as próprias auto-análises.
Uma das leituras feitas sustenta que Branquinho da Fonseca
é, fundamentalmente, um contista, e que o romance Porta de Minerva não
consegue libertar-se dessa idiossincrasia do autor. No fundo, não passaria de
um conjunto de contos, com a característica de terem todos o mesmo protagonista
e de se situarem no mesmo universo social. Esta avaliação, porém, não tem em
consideração que o modo como a narrativa lida com a temporalidade é plural, e
que a linearidade e a existência de uma intriga não são condições necessárias
para a existência da obra romanesca. A experiência vivida — um dos temas
centrais do presencismo —, filtrada pela subjectividade fragmentária da
memória, é mais importante do que a imposição de um esquema narrativo
construído a priori.
A Porta de Minerva não é, assim, apenas a porta por onde se entra num processo de formação pessoal e por onde se sai para a liberdade dos projectos individuais, ancorados no juízo de uma subjectividade que se foi tornando lúcida; é também a porta por onde se entra em modos narrativos menos marcados pela instituição literária e pela tradição dessa instituição. O talento de Branquinho da Fonseca reside nessa capacidade de sintetizar uma opção estética e uma visão existencial, o que, paradoxalmente, unifica o romance, recontextualizando os fragmentos no âmbito de um projecto estético-literário que emerge, desse modo, como uma totalidade — não a totalidade tradicional da narrativa, mas uma nova totalidade, em que a opção estética e a visão existencial, ancoradas numa longa anamnese, se tornam um todo que interpela o leitor.
![]() |
| Harry Tolley, On the Lonely Shore, 1894 |
![]() |
| Francesc Català-Roca - Sastreria Carrer Hospital, circa 1950 |
![]() |
| Edmond Sacré, Crépuscule D’Hiver, 1903 |
![]() |
| António Areal. sem título, 1962 (Gulbenkian) |
Uma terra de tufo,
cascatas de erva,
poeiras,
armazém de solidão.
No vapor das margens,
a lenta figura
do passado
abre-se em soluços:
cólera de carvão,
vírus da vida.
[1993]
![]() |
| José Pedro Croft, Et sic in infinitum (Gulbenkian) |
![]() |
| Fernando Calhau, The Island of the Dead segundo Arnold Böcklin, 1993 |
![]() |
| José Manuel Espiga Pinto, Terra Marcada Nº 2, 1971 (Gulbenkian) |
Assim escurecida,
a terra é um
rumor errante,
mácula
de sol e sombra,
uma pedra
no silêncio
das estrelas,
na poeira do luar.
[1993]
![]() |
| Carlo Carra, Gentiluomo Ubriaco, 1916 |
![]() |
| Marcelino Vespeira, Óleo 131, 1960 (Gulbenkian) |
Como em todas as literaturas, também na portuguesa existe um
cânone. No romance, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Agustina Bessa-Luís
ou José Saramago pertencem, de forma permanente, ao cânone. Outras entrarão e
sairão dele em conformidade com os humores do dia. E há aqueles que parecem
excluídos para sempre desse cânone. Como o escritor alentejano Manuel Ribeiro.
Contudo, é uma personagem muito interessante e um escritor com qualidade
literária. Muito lido nos anos vinte e trinta, a morte trouxe-lhe, como a
muitos outros, o esquecimento do público.
Filho de um sapateiro de Albernoa, chegou a cursar medicina,
tendo desistido por falta de recursos. Teve um percurso singular. Durante a
República interessou-se pelo sindicalismo, foi director do jornal
revolucionário A Bandeira Vermelha. Tornou-se anarquista, colaborando
com o jornal A Batalha, e, para completar o percurso revolucionário, foi
um dos fundadores do Partido Comunista Português, onde foi eleito para a
comissão geral de educação e propaganda e para a Junta Nacional. Em 1921, foi
enviado como delegado da secção portuguesa da Internacional Comunista ao III
Congresso do Comintern. Contudo, o percurso de Manuel Ribeiro não termina aqui.
O revolucionário anarco-comunista converteu-se ao catolicismo, onde encontra a
espiritualidade que as doutrinas revolucionárias tinham escondido sob os
problemas do estômago.
Entre os nove romances que publicou, destacam-se duas
trilogias. A Trilogia Social (A Catedral (1920); O Deserto (1922);
A Ressurreição (1923) e a Trilogia Nacional (A Colina Sagrada
(1925); A Planície Heróica (1927); Os Vínculos Eternos (1929). Na
primeira, acompanha-se o percurso de um arquitecto, Luciano, no seu processo de
conversão ao catolicismo. De certa maneira, podemos ver na personagem uma
projecção do autor. O curioso é que o processo de conversão estava já em
andamento, enquanto Manuel Ribeiro era preso como revolucionário ou quando foi
um dos fundadores do Partido Comunista. A Trilogia Nacional trata, em primeiro
lugar, dos tempos finais da República, depois da tensão, no Alentejo, entre a
terra e a fé e, por fim, do conflito entre moral e ciência, um tema actual.
Vale a pena voltar a ler Manuel Ribeiro? Sim, embora não
seja fácil para leitores que não tenham disponibilidade para uma linguagem
rica, erudita e complexa, nem para a descrição que suspende a acção, para dar
ao leitor a possibilidade de contemplar através das palavras aquilo que o autor
contemplou. Manuel Ribeiro, como outros escritores portugueses, não merece o
esquecimento em que caiu.
![]() |
| Léonard Misonne, Hiver, 1904 |