sexta-feira, 28 de março de 2025

Comentários (28)

Frederick Sommer, Colorado River landscape, 1942

Ruído de cascalho logo pela manhã:
ecoando pelas ruas, ecoando
pelos pátios traseiros do sonho.
Durs Grünbein

Por vezes, o inferno irrompe no paraíso da manhã, naquele momento em que os sonhos cavalgam na semiobscuridade do sono e abrem uma porta para que a consciência espreite para as estranhas paisagens que se escondem nessa pátria longínqua que existe em nós e que, por comodidade da linguagem ou por preguiça da denominação, chamamos inconsciente. Então, a ordem burocrática da cidade faz-se ouvir e, ainda a aurora está presa no horizonte, e já o matraquear do zelo pelo mundo espalha o cascalho incendiado do ruído pelas ruas. Perfura o betão impotente das paredes, para ressoar na cabeça de quem sonha e, num primeiro instante, julga ter caído no precipício de um pesadelo.

quarta-feira, 26 de março de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (7)

Fernando Calhau, sem título, #774, 1967 (Gulbenkian)

Uma palavra de enxofre e sal,

o sonho trôpego que caminha.

Um touro de olhos azuis,

brancos na escuridão da colina.

 

O horizonte abre-se, é um lago.

Solfejam na rouquidão vozes:

mulheres em assombro

sonham o súlfur da partida.

 

[1993]

segunda-feira, 24 de março de 2025

Beatitudes (78) Noite

Charles Job, Abend an der Arun, 1907
O suave enlanguescer da noite permeia a terra, o ar e a água. Tudo se suspende, uma doce melancolia ergue-se para penetrar a couraça do tempo e, atravessando desertos e abismos, chegar aos dias de hoje. Promessa de felicidade que o passado envia, uma reminiscência que, de súbito, irrompe na memória e arrasta aquele que medita para a vida que não viveu, para a experiência de uma paisagem que nunca viu.

sábado, 22 de março de 2025

Uma passagem do Evangelho de João

 

Agora que nos estamos a aproximar, no calendário católico, da Páscoa, talvez valha a pena meditar nos versículos 36, 37 e 38, do Capítulo 18, do Evangelho de João. Depois de entregue a Pôncio Pilatos, Jesus respondeu à pergunta deste: Que fizeste? Dito de outro modo: de que és culpado? Ora, a resposta de Jesus é surpreendente: «O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas teriam lutado para que eu não fosse entregue aos judeus. Agora: o meu reino não é daqui.» Quando Pilatos pergunta: «Então tu és rei?», a resposta continua a ser surpreendente: «Tu dizes que sou rei. Eu nasci para isto e para isto vim ao mundo, para dar testemunho da verdade.» Esta passagem do Evangelho de João não deve ser vista como o anúncio de uma utopia, mas como o ideal regulador de toda a política.

São dois os elementos centrais: a violência e a verdade. Jesus consente na afirmação de que é rei, mas é um soberano que não tem um corpo de guardas que lute por ele. Abdica da violência legítima para fazer vingar a sua soberania. Esta centra-se na verdade. A verdade deve ser entendida não apenas como um acordo entre aquilo que se diz e os factos, mas como uma vida verdadeira, onde se inclui o bem e a justiça. Não é a violência, mesmo que legítima, que deve suportar a governação, mas o exercício dessa verdade. As palavras de Cristo, na sua radicalidade, causam a mais profunda perplexidade nos homens políticos. Essa perplexidade está resumida na resposta de Pilatos às palavras de Jesus: «O que é a verdade?» Pôncio Pilatos – como qualquer autoridade política – conhece bem a violência como forma de exercer a soberania, mas desconhece a verdade.

Como o idealismo platónico, o texto evangélico fornece, ainda que de modo diferente, um padrão pelo qual podemos medir a bondade das governações humanas. Quanto menor for a violência a que recorrem e quanto mais preocupadas estiverem com a verdade, o bem e a justiça, melhor serão. Quanto mais violência usarem e menos preocupadas estiverem com a verdade, o bem e a justiça, mais detestáveis serão. Um reino cujo rei não usa a violência e se conduz apenas pela verdade não é daqui e de agora, não é deste mundo. Contudo, esse rei é o padrão pelo qual, no fundo dos corações, os homens medem os seus soberanos. E sempre que os homens se revoltam contra as governações é porque estas se afastaram da verdade, do bem e da justiça e no seu lugar colocaram a violência. Eis três versículos terríveis para aqueles que têm nas mãos o poder sobre os outros.

quinta-feira, 20 de março de 2025

Como morrem as democracias (1)

Edvard Munch, Junto ao leito de morte, 1895

A história do apelo do presidente norte-americano ao Congresso para depor o juiz que decretou a suspensão da deportação de cidadãos estrangeiros à luz de uma lei do século XVIII, O Alien Enemies Act, não é apenas mais uma bizarra ideia de Donald Trump. É um ataque em forma contra um dos fundamentos das democracias modernas, a independência do sistema judicial. O ataque é de tal modo grave que importantes juristas norte-americanos afirmaram que o país caiu numa grave crise constitucional. Por outro lado, o juiz conservador John Roberts, presidente do Supremo Tribunal, veio sublinhar que a deposição do juiz não é a resposta para um desacordo sobre uma decisão judicial, mas sim o recurso para uma instância superior. O assalto às democracias tem no ataque ao poder judicial uma das suas mais poderosas estratégias. Nos EUA a guerra pelo controlo da justiça está em marcha. Veremos como irá resistir o poder judicial e a própria sociedade norte-americana.

terça-feira, 18 de março de 2025

Descrições fenomenológicas 72. Tempestade

Mark Tobey, À Cheval la Nuit, 1958
Um, dois, talvez um terceiro, mais ao longe. Arranha-céus rompem o firmamento, enquanto a noite desliza sobre a cidade e a tempestade se faz ouvir no ribombar dos trovões. De súbito, tudo se ilumina, mas logo as trevas vencem a luz, para que, de novo, a realidade cintile vibrante, enquanto os céus ressoam, os vidros das janelas tremem e os homens, temerosos, se escondem nas casas fustigadas pela chuva. Despidas, as árvores entregam-se ao tumulto: os ramos, nus; o tronco, encharcado. Presságios obscuros lêem-se nas suas formas. Vaticínios desprendem-se da esquadria do parque, onde um bosque se ordena como uma companhia perfilada na parada, à espera de ordens para marchar para a frente de combate. São árvores sem nome, perdidas na sua identidade, soldados hirtos como estátuas cravadas na terra. O trânsito da noite foi sugado pela intempérie. Os carros, fantasmas alinhados junto aos passeios, são peças de mobiliário de uma época desaparecida há muito. Nas ruas, formam-se lagos: uma água suja, onde flutua o lixo do dia. Uma mulher caminha sob um guarda-chuva inútil. Segue-a um homem. Mas tudo isso dura o instante de um relâmpago. Quando um novo clarão ilumina a rua, homem e mulher desapareceram, esquecidos na noite, tragados por uma encruzilhada. Os arranha-céus permanecem silenciosos, fendendo os céus, desvairados na negrura da noite, mergulhados no fogo líquido da tempestade invernosa.

domingo, 16 de março de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (6)

Urgell Inglada, La fiesta mayor, procesión

Dias de procissão rasgam

o rosmaninho das ruas.

Anjos de pó e sujidade,

o santo preso no andor,

as virgens vazias,

remendadas de escamas,

cansadas de esperar

a mudez da madrugada.

 

[1993]

sexta-feira, 14 de março de 2025

Rapazes perdidos

Norman Percevel Rockwell, Boys


Numa espécie de post-scriptum – com o título de Livro de Recitações – à sua coluna de sexta-feira no Público, António Guerreiro refere um artigo de Sonia Sodha, no The Guardian, sobre a condição masculina. O título do artigo é revelador: Sem emprego, isolados, alimentados com pornografia misógina... onde está o amor pelos rapazes perdidos da Grã-Bretanha? (aqui) O artigo tem por fundamento um relatório do Centre for Social Justice, e tem o título Lost Boys. Em linhas gerais, o relatório mostra que os rapazes – em especial dos meios mais pobres – estão em dificuldade para acompanhar o ritmo das raparigas. Um dos sinais, mas longe de ser o único, é a percentagem de rapazes e raparigas a frequentar a universidade. Elas representam 60% do universo de estudantes universitários.

Tudo isto, porém, numa sociedade patriarcal, onde o poder dominante dos homens continua e a igualdade está longe de ser uma realidade. Uma das coisas que se pode pensar é a forma muito diferente como rapazes e raparigas das classes baixas e médias-baixas se relacionam com a educação. Genericamente, elas vêem nesse bem uma oportunidade de se emanciparem de situações opressivas. Os rapazes, todavia, sentem a escolaridade como a própria opressão. Daí o seu baixo desempenho, daí serem, geralmente, eles os agentes de perturbação das aulas. As raparigas viram na regra escolar uma alavanca existencial. Os rapazes vêem na mesma regra uma coacção que lhes elimina a liberdade que, muito provavelmente, gozam em famílias com pouca capacidade para regular comportamentos.

Isto não é apenas um problema dos indivíduos. É um problema social com grande impacto na vida democrática. Estes jovens sem escolaridade, sem emprego, isolados, alimentados com pornografia misógina são um reservatório para recrutamento das organizações de extrema-direita e de direita radical. O seu ressentimento abre-os para aquele tipo de discurso. A cultura misógina em que se afundam leva-os a contestar um mundo onde as mulheres se afirmam, apesar das dificuldade que enfrentam. Isto não se passa apenas em Inglaterra. Veja-se o eleitorado de Trump. Observe-se como parte dos jovens rapazes portugueses sentem uma atracção por Ventura.

Sociedades complexas como as ocidentais exigem pessoas com grande formação e amplitude intelectual para lidar com processos de transformação muito rápidos e exigentes. Parte significativa dos rapazes, devido à resistência que opõem à disciplina escolar, está a tornar-se incapaz de lidar com o mundo em que vivemos. O isolamento detectado pelo estudo é a confirmação de uma impotência. Os rapazes que abandonam o sistema escolar são mais que o dobro das raparigas. António Guerreiro, a fechar o seu post-scriptum ironiza: Começa a ser urgente dedicar-lhes um dia internacional. A verdade é que estamos confrontados com um grande desafio. Esse passa pela escolarização. Como é que esses rapazes perdidos podem encontrar, na escola, um sentido para a sua vida e como podem fazer da regra e da disciplina escolares uma alavanca para um vida realizada? A resposta não é clara e, muito provavelmente, os sistemas educativos, por si mesmos, são incapazes de resolver um problema cuja raiz está a montante deles, está nas famílias, mesmo que os governos democráticos se recusem a aceitar o facto.

quarta-feira, 12 de março de 2025

Prosa dos dias (31) O império da chuva

Toni Schneiders, Nachts auf der Ginzon, Tokyo, s/d
Se a tarde desliza sob o império da chuva, os transeuntes inscrevem, na paisagem toldada de cinza e água, um jardim sombrio de guarda-chuvas, transportados em mãos hesitantes, presos em corpos vergados aos desconforto descido dos céus. Nos rostos, transparece a frágil energia da tristeza. Nos passos apressados, o desejo de chegar a um destino, qualquer que seja, um lugar onde a intempérie se suspenda e as árvores toldadas pela invernia sejam esquecidas na sua nudez e desabrigo. Em certos dias, a vida parece habitada por monstros diáfanos, por quimeras que rosnam no silêncio dos corações. A prosa rude da intempérie troveja e a noite ao chegar traz apenas a escuridão que deambula pelo universo.

segunda-feira, 10 de março de 2025

Ensaio sobre a luz (127)

Paul Signac, Above Saint-Tropez, the Customs House Pathway, 1905
Eis a luz desprendida da loucura do sangue, da raiz incandescente da Terra, das sombrias revoluções lunares. Entrega-se ao olhar, ébria de metamorfoses, e onde, por instantes, o vermelho incendiou a paisagem, o ardor esbateu-se em cores suaves - tons anunciadores da melancolia da bonança, após o deambular errático das horas de tempestade.

sábado, 8 de março de 2025

Uma situação política espantosa

É surpreendente como políticos experimentados não antecipam o que lhes pode acontecer caso haja algo de nebuloso na sua vida. Isso aplica-se ao actual primeiro-ministro. A nebulosidade, neste caso, resulta de um eventual – ainda não se percebeu se real – conflito de interesses entre o cargo que ocupa e a empresa que fundou, depois nas mãos da mulher e dos filhos e, agora, só nas destes. Pensaria ele que estava acima do escrutínio? É verdade que a comunicação social tem sido mais dócil para o seu governo do que foi para os governos do PS, mas essa docilidade não significa compadrio total. Há uma lógica comunicacional que, ainda que a contragosto, acaba por funcionar.

Também foi notável a comunicação que Montenegro fez ao país, rodeado pelos seus ministros. O episódio espanta por dois motivos. O primeiro é a própria comunicação: um exercício assente num contínuo apelo à piedade – um caso prático da falácia argumentativa do apelo à misericórdia –, com esclarecimentos irrelevantes e omissões onde se impunham respostas claras. O segundo é vermos um governo transformado num rebanho, alinhando numa leitura política de um caso pessoal com repercussões institucionais. Não estão em causa as políticas do governo, mas a posição de Luís Montenegro.

Inusitado, ainda, é o silêncio do prolixo Presidente da República. Sempre tão disponível para emitir opiniões sobre tudo e sobre nada, sempre tão diligente em comentar as peripécias dos governos do PS, parece agora subitamente reservado. O que mais o terá preocupado – a ponto de amuar – foi o facto de o primeiro-ministro não lhe ter ligado antes de falar ao país. A sua tagarelice habitual e a dissolução da Assembleia por duas vezes, sem razões substantivas, dão agora lugar a uma mudez ansiosa, não vá ter de enfrentar uma crise devido às eventuais incompatibilidades de Montenegro.

Que tenha sido o PCP a salvar o governo com a sua moção de censura também é espantoso, mas apenas para quem anda distraído ou não se interessa pela vida política. Neste momento, os comunistas temem – e não são os únicos – um novo acto eleitoral. A moção de censura não visa a queda do governo, mas a contenção de danos: evita eleições, onde o risco de uma nova perda de votos é grande. Salvam o governo para salvarem a própria pele e, ao mesmo tempo, projectam a ilusão de que é o PS que impede a sua queda. O PS quer ver o governo cair, mas por iniciativa do próprio executivo. Para o PCP, um desastre, pois abriria caminho ao voto útil à esquerda, com o reforço do PS. O pior dos mundos possíveis, para os comunistas.

P.S. O último parágrafo do texto ficou desactualizado com a apresentação da moção de confiança por parte do governo, que não se previa aquando da escrita desta crónica. O governo julgou que a melhor forma de lidar com um problema desagradável, causado pelo primeiro-ministro, é fazer-se de vítima.

quinta-feira, 6 de março de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (5)

James Gleeson, Lapsed Shadows Recycled to a Capable Coast, 1988

Olhava para o mundo devastado

e cantava com voz límpida

o cardume de cardos entre dedos,

o louvor dos dias perdidos no oblívio:

o silêncio do enfarte, tanta a sufocação.

 

[1993]


terça-feira, 4 de março de 2025

O calvário da esquerda moderada


Assiste-se a um declínio do centro-esquerda, que foi, juntamente com o centro-direita, um dos pilares dos sistemas políticos europeus. Nas últimas eleições alemãs, o SPD (Partido Social-Democrata, equivalente ao Partido Socialista) teve a votação mais baixa desde o final da Segunda Guerra Mundial. Isto ocorreu após ter vencido as eleições anteriores e formado um governo de coligação que não chegou ao fim. Em Inglaterra, nas últimas eleições, em 2024, o Partido Trabalhista (também um partido irmão dos socialistas) obteve uma vitória retumbante em termos de lugares no Parlamento — quase dois terços dos deputados são trabalhistas. Menos de um ano depois, as sondagens mostram uma queda acentuada das intenções de voto nos trabalhistas.

Em França, os socialistas dão alguns sinais de vida, mas a velocidade da sua recuperação é muito lenta, não os tornando uma solução. O mesmo se pode dizer dos socialistas gregos. Na Áustria, têm ainda alguma força, mas longe daquela que os fez o pilar fundamental da governação. Mesmo em Espanha, onde ocupam o poder, as últimas sondagens trazem-lhes más notícias. Em Portugal, a situação não é radiosa. Apesar da governação — muitas vezes incipiente — de Montenegro, os socialistas portugueses não descolam, nas sondagens, do PSD. Apenas nos países nórdicos, o centro-esquerda continua a ser uma força pujante e claramente determinante. Um dos factores do enfraquecimento da esquerda democrática estará associado à polarização política trazida pelo crescimento da extrema-direita e da direita radical.

O problema, porém, pode ser mais profundo: uma desadequação entre os programas e as práticas políticas do centro-esquerda e as expectativas dos cidadãos. Por outro lado, toda a esquerda parece incapaz de perceber as mudanças que se vivem — tanto na área tecnológica como na área geopolítica. As redes sociais e a democratização do uso da inteligência artificial têm sido um calvário para a esquerda, incapaz de adequar a sua retórica, os seus valores e as suas práticas ao novo ambiente onde decorre a disputa política. Além disso, as mudanças geopolíticas — em que a eleição de Trump representa uma revolução — são pouco propícias às posições do socialismo democrático e da social-democracia. Se o centro-esquerda pretende ainda ter um futuro na Europa, deverá, em primeiro lugar, olhar para as reais expectativas dos eleitores. Em segundo, fazer uma profunda reflexão sobre os seus desaires e o mundo em que se vive. Por fim, observar as razões da pujança do centro-esquerda nos países nórdicos. As democracias liberais precisam de uma esquerda moderada forte e não moribunda.

domingo, 2 de março de 2025

Nocturnos 127

Joseph Vernet, La nuit; un port de mer au clair de lune, 1771

A noite é um vício rasgado nas águas do mar, a intolerável abundância da escuridão dilacerada pela cornucópia lunar, uma borboleta rutilante a crescer no arquipélago, onde pequenos deuses se confundem com homens e mulheres sem rosto. A noite é um harém abandonado, uma floração que secou antes do raiar azul do âmbar da aurora.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Ingerências eleitorais e decadência europeia

Francisco Arjona, ¡Adelante con la duda!, 1985

A Europa – refiro-me à União Europeia – está rodeada de problemas: problemas com as opções geoestratégicas da Rússia, problemas com os fluxos migratórios, problemas com o terrorismo islâmico e, agora, problemas com os EUA, versão Donald Trump e Elon Musk. Contudo, talvez o maior problema resida na própria União. Konstatin von Notz, do partido Os Verdes, presidente do comité de supervisão dos serviços secretos alemães, apela ao novo governo para que reconheça o impacto da ingerência russa nas últimas eleições e no resultado do partido de extrema-direita AfD (aqui). Ora, pelo menos desde o referendo inglês, que levou ao Brexit, em 2016, que se fala abertamente dessa ingerência. São quase nove anos, e a situação não se alterou. Melhor: a situação alterou-se para pior.

Mais, agora não há a temer apenas a ingerência russa, mas também a do novo poder norte-americano. Ora, isto é apenas o sintoma de uma impotência europeia que parece estrutural. Se o Brexit não foi aviso suficiente para se tomarem medidas draconianas de defesa dos processos eleitorais dos países membros, o que será necessário acontecer? A continuar assim, em poucos anos, os inimigos da União Europeia farão eleger, sem grandes dificuldades, governos que terão por finalidade destruí-la. Este problema não é apenas de cada país onde essas ingerências acontecem, mas de toda a União, e é esta que, em estreita cooperação com cada um dos seus membros, deve tomar as medidas necessárias para salvaguardar a autenticidade dos processos eleitorais.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Comentários (27)

Maria Helena Vieira da Silva, La Bibliothèque en Feu, 1974 (Gulbenkian)

Não há nada mais próximo da ruindade
do que uma exígua biblioteca de província
desabando ao sol das cinco e meia da tarde.
Frederico Pedreira

Também das bibliotecas o destino é perecer, pois a fixidez que habita o discurso de cada um dos livros não é antídoto ou amuleto suficiente para as raptar à transitoriedade que o tempo sobre tudo faz cair. Umas desabam ao sol das cinco e meia da tarde. São pequenas bibliotecas esculpidas na lentidão da província. Outras, as grandes bibliotecas metropolitanas, entregam-se ao fogo, como é hábito acontecer quando um rebanho humano já não consegue suportar o peso excessivo da verdade que nelas se esconde. Nem a piedade filial, nem o amor dos devotos, nem o silêncio que as habita são escudo suficiente para parar o tempo e suster a derrocada ou a cintilação do incêndio; a ruindade dos homens será sempre a agência que Cronos precisa para fazer cumprir os seus éditos.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (4)

Mário Cesariny, Pintura lacerada II, 1970 (Gulbenkian)

Os ramos frios, as letras ardentes,

a luz onde poiso, se cai a maresia.

Um som brame na esquina da rua,

semeia bolor no centro do peito.

 

Nos dias de sol, a voz das aves,

presa na mudez, desce do céu,

canta o segredo do silêncio,

o fulgor da tarde, a chuva a cair.

 

Parda de granizo, a ave de rapina

plana, suspensa da plumagem:

espreita a lua, espera a morte.

 

O destino vem na maresia do voo,

na cintilação da água sobre a terra:

o grito do animal na fuligem do fogo.

 

[1993]


sábado, 22 de fevereiro de 2025

Simulacros e simulações (71)

Manuel Botelho, 155. est-mr (da série «confidencial/desclassificado: estado-maior»), 2012

Num mapa, simula-se um mundo, para que a vida se torne um simulacro de si mesma. Segue-se então as rotas assinaladas, evita-se os obstáculos e pondera-se a influência da hidrografia sobre a beleza do território. Talvez seja possível uma floresta ali, uma estrada acolá, uma cidade no centro, para que nela tudo convirja e se perca no rumor do trânsito nocturno.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Uma ameaça existencial

 

Julgo que, depois do telefonema entre Trump e Putin e da intervenção do vice-presidente dos EUA, J. D. Vance, em Munique, os líderes europeus terão percebido o grande sarilho em que estamos metidos. Na prática, a actual liderança americana entregou parte da Ucrânia, ou talvez toda, à Rússia. Mas não foi apenas a Ucrânia que foi entregue aos russos; toda a Europa parece agora aos seu alcance. A NATO, neste momento, não é mais do que uma sigla que ecoa um passado recente, um incómodo para o movimento MAGA, que suporta Donald Trump e que parece a caminho do fim. E, sem a NATO – ou mesmo com a NATO, mas sem compromisso militar norte-americano –, a Europa fica indefesa perante uma superpotência nuclear como a Rússia.

Há uma convergência estratégica e de interesses entre a liderança russa e a nova liderança norte-americana, e essa convergência pode passar pela dominação territorial ou, pelo menos, pela submissão de países livres à esfera de influência das duas grandes superpotências nucleares. No pior dos cenários, teríamos uma “operação especial” russa para dominar militarmente toda a Europa e, do outro lado, a “transformação” do Canadá no 51.º estado dos EUA e a ocupação da Gronelândia. Num cenário menos dramático, teríamos a submissão dos países europeus à Rússia através de processos eleitorais, onde a extrema-direita pode ter um papel importante, bem como a cedência das lideranças nacionais europeias aos interesses russos, numa espécie de servidão voluntária; enquanto, no outro lado do Atlântico, os EUA sufocariam economicamente o Canadá e desestabilizariam a Gronelândia.

Neste momento, a União Europeia e a Europa Ocidental não integrada na União enfrentam um problema existencial. O que está em jogo já não é salvar as democracias e evitar o retorno a regimes autoritários, mas assegurar a independência e a capacidade dos países europeus de decidirem o seu destino. E este é o principal problema. Esta capacidade era débil, pois assentava na dependência do amigo americano. Agora que o amigo americano está a caminho de se tornar inimigo, essa fragilidade tornou-se dolorosamente clara. Resta saber se as lideranças europeias – onde a inglesa deve ser incluída – estão dispostas a enfrentar os perigos que se perfilam no horizonte e se os povos europeus estão dispostos a defender a sua liberdade e os seus valores ou se, adormecidos por oitenta anos de paz e liberdade, preferem entregar-se nas mãos de quem os queira dominar. Se há coisa que me alegraria, nesta parte final da vida, seria que tudo isto não passasse de uma fantasia de um velho esclerosado. Duvido, porém, que o seja.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

A doença do Bloco de Esquerda

Ana Hatherly, Doenças, 1971 (Gulbenkian)

Uma notícia do Jornal Económico dá conta de que, no distrito de Portalegre, 73 militantes, num universo de "mais de duas centenas", abandonaram o Bloco de Esquerda (aqui). A notícia é interessante a vários títulos.

Em primeiro lugar, porque é mais um sinal de que esta força de esquerda está em desagregação. Para além de maus resultados eleitorais, de práticas laborais em contradição com as crenças dos militantes do partido e de quezílias internas, os próprios militantes, outrora tão empenhados, parecem estar a desistir paulatinamente do partido.

Em segundo lugar, porque uma excelente deputada, Mariana Mortágua, não tem necessariamente de dar uma excelente líder de partido. Hoje, para o observador externo, parece claro que Mariana Mortágua segue um processo inverso ao de Catarina Martins. Esta, no início, parecia bastante frágil em comparação com Francisco Louçã. Essa fragilidade tinha fundamento. Contudo, Catarina Martins excedeu-se: lentamente, tornou-se uma líder com capacidade de afirmação e cumpriu a sua função com honra. Mariana Mortágua, pelo contrário, parecia uma líder forte, mas o tempo tem revelado a sua fragilidade.

Por fim, esta crise no Bloco de Esquerda é mais um episódio de uma crise estrutural da esquerda, que não compreende o mundo em que nos encontramos e está presa a arquétipos ideológicos que perderam sentido ou foram derrotados. Um exemplo disso é a tentativa de estruturar a identidade política em identitarismos particulares e conflitos de ordem cultural. A debandada dos militantes de Portalegre é muito mais do que um episódio paroquial: é o sintoma de uma grave doença do Bloco de Esquerda e da esquerda em geral.