Frederick Sommer, Colorado River landscape, 1942 |
Kyrie Eleison
sexta-feira, 28 de março de 2025
Comentários (28)
quarta-feira, 26 de março de 2025
O Silêncio da Terra Sombria (7)
Fernando Calhau, sem título, #774, 1967 (Gulbenkian) |
Uma palavra de enxofre e sal,
o sonho trôpego que caminha.
Um touro de olhos azuis,
brancos na escuridão da colina.
O horizonte abre-se, é um lago.
Solfejam na rouquidão vozes:
mulheres em assombro
sonham o súlfur da partida.
segunda-feira, 24 de março de 2025
Beatitudes (78) Noite
Charles Job, Abend an der Arun, 1907 |
sábado, 22 de março de 2025
Uma passagem do Evangelho de João
Agora que nos estamos a
aproximar, no calendário católico, da Páscoa, talvez valha a pena meditar nos
versículos 36, 37 e 38, do Capítulo 18, do Evangelho de João. Depois de
entregue a Pôncio Pilatos, Jesus respondeu à pergunta deste: Que fizeste?
Dito de outro modo: de que és culpado? Ora, a resposta de Jesus é
surpreendente: «O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste
mundo, os meus guardas teriam lutado para que eu não fosse entregue aos judeus.
Agora: o meu reino não é daqui.» Quando Pilatos pergunta: «Então tu és
rei?», a resposta continua a ser surpreendente: «Tu dizes que sou rei.
Eu nasci para isto e para isto vim ao mundo, para dar testemunho da verdade.»
Esta passagem do Evangelho de João não deve ser vista como o anúncio de uma
utopia, mas como o ideal regulador de toda a política.
São dois os elementos centrais: a
violência e a verdade. Jesus consente na afirmação de que é rei, mas é um
soberano que não tem um corpo de guardas que lute por ele. Abdica da violência
legítima para fazer vingar a sua soberania. Esta centra-se na verdade. A
verdade deve ser entendida não apenas como um acordo entre aquilo que se diz e
os factos, mas como uma vida verdadeira, onde se inclui o bem e a justiça. Não
é a violência, mesmo que legítima, que deve suportar a governação, mas o
exercício dessa verdade. As palavras de Cristo, na sua radicalidade, causam a
mais profunda perplexidade nos homens políticos. Essa perplexidade está
resumida na resposta de Pilatos às palavras de Jesus: «O que é a verdade?»
Pôncio Pilatos – como qualquer autoridade política – conhece bem a violência
como forma de exercer a soberania, mas desconhece a verdade.
Como o idealismo platónico, o
texto evangélico fornece, ainda que de modo diferente, um padrão pelo qual
podemos medir a bondade das governações humanas. Quanto menor for a violência a
que recorrem e quanto mais preocupadas estiverem com a verdade, o bem e a
justiça, melhor serão. Quanto mais violência usarem e menos preocupadas estiverem
com a verdade, o bem e a justiça, mais detestáveis serão. Um reino cujo rei não
usa a violência e se conduz apenas pela verdade não é daqui e de agora, não é
deste mundo. Contudo, esse rei é o padrão pelo qual, no fundo dos corações, os
homens medem os seus soberanos. E sempre que os homens se revoltam contra as
governações é porque estas se afastaram da verdade, do bem e da justiça e no
seu lugar colocaram a violência. Eis três versículos terríveis para aqueles que
têm nas mãos o poder sobre os outros.
quinta-feira, 20 de março de 2025
Como morrem as democracias (1)
Edvard Munch, Junto ao leito de morte, 1895 |
terça-feira, 18 de março de 2025
Descrições fenomenológicas 72. Tempestade
Mark Tobey, À Cheval la Nuit, 1958 |
domingo, 16 de março de 2025
O Silêncio da Terra Sombria (6)
sexta-feira, 14 de março de 2025
Rapazes perdidos
Norman Percevel Rockwell, Boys |
Numa espécie de post-scriptum
– com o título de Livro de Recitações – à sua coluna de sexta-feira no Público,
António Guerreiro refere um artigo de Sonia Sodha, no The Guardian, sobre
a condição masculina. O título do artigo é revelador: Sem emprego, isolados,
alimentados com pornografia misógina... onde está o amor pelos rapazes perdidos
da Grã-Bretanha? (aqui)
O artigo tem por fundamento um relatório do Centre for Social Justice, e
tem o título Lost Boys. Em linhas gerais, o relatório mostra que os
rapazes – em especial dos meios mais pobres – estão em dificuldade para
acompanhar o ritmo das raparigas. Um dos sinais, mas longe de ser o único, é a
percentagem de rapazes e raparigas a frequentar a universidade. Elas
representam 60% do universo de estudantes universitários.
Tudo isto, porém, numa sociedade
patriarcal, onde o poder dominante dos homens continua e a igualdade está longe
de ser uma realidade. Uma das coisas que se pode pensar é a forma muito
diferente como rapazes e raparigas das classes baixas e médias-baixas se
relacionam com a educação. Genericamente, elas vêem nesse bem uma oportunidade
de se emanciparem de situações opressivas. Os rapazes, todavia, sentem a escolaridade
como a própria opressão. Daí o seu baixo desempenho, daí serem, geralmente,
eles os agentes de perturbação das aulas. As raparigas viram na regra escolar
uma alavanca existencial. Os rapazes vêem na mesma regra uma coacção que lhes
elimina a liberdade que, muito provavelmente, gozam em famílias com pouca capacidade
para regular comportamentos.
Isto não é apenas um problema dos
indivíduos. É um problema social com grande impacto na vida democrática. Estes
jovens sem escolaridade, sem emprego, isolados, alimentados com pornografia
misógina são um reservatório para recrutamento das organizações de extrema-direita
e de direita radical. O seu ressentimento abre-os para aquele tipo de discurso.
A cultura misógina em que se afundam leva-os a contestar um mundo onde as
mulheres se afirmam, apesar das dificuldade que enfrentam. Isto não se passa
apenas em Inglaterra. Veja-se o eleitorado de Trump. Observe-se como parte dos
jovens rapazes portugueses sentem uma atracção por Ventura.
Sociedades complexas como as
ocidentais exigem pessoas com grande formação e amplitude intelectual para
lidar com processos de transformação muito rápidos e exigentes. Parte
significativa dos rapazes, devido à resistência que opõem à disciplina escolar,
está a tornar-se incapaz de lidar com o mundo em que vivemos. O isolamento
detectado pelo estudo é a confirmação de uma impotência. Os rapazes que
abandonam o sistema escolar são mais que o dobro das raparigas. António
Guerreiro, a fechar o seu post-scriptum ironiza: Começa a ser urgente
dedicar-lhes um dia internacional. A verdade é que estamos confrontados com
um grande desafio. Esse passa pela escolarização. Como é que esses rapazes
perdidos podem encontrar, na escola, um sentido para a sua vida e como
podem fazer da regra e da disciplina escolares uma alavanca para um vida
realizada? A resposta não é clara e, muito provavelmente, os sistemas educativos,
por si mesmos, são incapazes de resolver um problema cuja raiz está a montante
deles, está nas famílias, mesmo que os governos democráticos se recusem a
aceitar o facto.
quarta-feira, 12 de março de 2025
Prosa dos dias (31) O império da chuva
Toni Schneiders, Nachts auf der Ginzon, Tokyo, s/d |
segunda-feira, 10 de março de 2025
Ensaio sobre a luz (127)
Paul Signac, Above Saint-Tropez, the Customs House Pathway, 1905 |
sábado, 8 de março de 2025
Uma situação política espantosa
É surpreendente como políticos
experimentados não antecipam o que lhes pode acontecer caso haja algo de
nebuloso na sua vida. Isso aplica-se ao actual primeiro-ministro. A
nebulosidade, neste caso, resulta de um eventual – ainda não se percebeu se
real – conflito de interesses entre o cargo que ocupa e a empresa que fundou, depois
nas mãos da mulher e dos filhos e, agora, só nas destes. Pensaria ele que
estava acima do escrutínio? É verdade que a comunicação social tem sido mais
dócil para o seu governo do que foi para os governos do PS, mas essa docilidade
não significa compadrio total. Há uma lógica comunicacional que, ainda que a
contragosto, acaba por funcionar.
Também foi notável a comunicação
que Montenegro fez ao país, rodeado pelos seus ministros. O episódio espanta
por dois motivos. O primeiro é a própria comunicação: um exercício assente num
contínuo apelo à piedade – um caso prático da falácia argumentativa do apelo à
misericórdia –, com esclarecimentos irrelevantes e omissões onde se impunham
respostas claras. O segundo é vermos um governo transformado num rebanho,
alinhando numa leitura política de um caso pessoal com repercussões
institucionais. Não estão em causa as políticas do governo, mas a posição de
Luís Montenegro.
Inusitado, ainda, é o silêncio do
prolixo Presidente da República. Sempre tão disponível para emitir opiniões
sobre tudo e sobre nada, sempre tão diligente em comentar as peripécias dos
governos do PS, parece agora subitamente reservado. O que mais o terá
preocupado – a ponto de amuar – foi o facto de o primeiro-ministro não lhe ter
ligado antes de falar ao país. A sua tagarelice habitual e a dissolução da
Assembleia por duas vezes, sem razões substantivas, dão agora lugar a uma mudez
ansiosa, não vá ter de enfrentar uma crise devido às eventuais
incompatibilidades de Montenegro.
Que tenha sido o PCP a salvar o
governo com a sua moção de censura também é espantoso, mas apenas para quem
anda distraído ou não se interessa pela vida política. Neste momento, os
comunistas temem – e não são os únicos – um novo acto eleitoral. A moção de
censura não visa a queda do governo, mas a contenção de danos: evita eleições,
onde o risco de uma nova perda de votos é grande. Salvam o governo para
salvarem a própria pele e, ao mesmo tempo, projectam a ilusão de que é o PS que
impede a sua queda. O PS quer ver o governo cair, mas por iniciativa do próprio
executivo. Para o PCP, um desastre, pois abriria caminho ao voto útil à
esquerda, com o reforço do PS. O pior dos mundos possíveis, para os comunistas.
P.S. O último parágrafo do texto ficou desactualizado com a apresentação da moção de confiança por parte do governo, que não se previa aquando da escrita desta crónica. O governo julgou que a melhor forma de lidar com um problema desagradável, causado pelo primeiro-ministro, é fazer-se de vítima.
quinta-feira, 6 de março de 2025
O Silêncio da Terra Sombria (5)
terça-feira, 4 de março de 2025
O calvário da esquerda moderada
Em França, os socialistas dão
alguns sinais de vida, mas a velocidade da sua recuperação é muito lenta, não
os tornando uma solução. O mesmo se pode dizer dos socialistas gregos. Na
Áustria, têm ainda alguma força, mas longe daquela que os fez o pilar fundamental
da governação. Mesmo em Espanha, onde ocupam o poder, as últimas sondagens
trazem-lhes más notícias. Em Portugal, a situação não é radiosa. Apesar da
governação — muitas vezes incipiente — de Montenegro, os socialistas
portugueses não descolam, nas sondagens, do PSD. Apenas nos países nórdicos, o
centro-esquerda continua a ser uma força pujante e claramente determinante. Um
dos factores do enfraquecimento da esquerda democrática estará associado à
polarização política trazida pelo crescimento da extrema-direita e da direita
radical.
O problema, porém, pode ser mais
profundo: uma desadequação entre os programas e as práticas políticas do
centro-esquerda e as expectativas dos cidadãos. Por outro lado, toda a esquerda
parece incapaz de perceber as mudanças que se vivem — tanto na área tecnológica
como na área geopolítica. As redes sociais e a democratização do uso da
inteligência artificial têm sido um calvário para a esquerda, incapaz de
adequar a sua retórica, os seus valores e as suas práticas ao novo ambiente
onde decorre a disputa política. Além disso, as mudanças geopolíticas — em que
a eleição de Trump representa uma revolução — são pouco propícias às posições
do socialismo democrático e da social-democracia. Se o centro-esquerda pretende
ainda ter um futuro na Europa, deverá, em primeiro lugar, olhar para as reais
expectativas dos eleitores. Em segundo, fazer uma profunda reflexão sobre os
seus desaires e o mundo em que se vive. Por fim, observar as razões da pujança
do centro-esquerda nos países nórdicos. As democracias liberais precisam de uma
esquerda moderada forte e não moribunda.
domingo, 2 de março de 2025
Nocturnos 127
Joseph Vernet, La nuit; un port de mer au clair de lune, 1771 |
A noite é um vício rasgado nas águas do mar, a intolerável abundância da escuridão dilacerada pela cornucópia lunar, uma borboleta rutilante a crescer no arquipélago, onde pequenos deuses se confundem com homens e mulheres sem rosto. A noite é um harém abandonado, uma floração que secou antes do raiar azul do âmbar da aurora.
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025
Ingerências eleitorais e decadência europeia
Francisco Arjona, ¡Adelante con la duda!, 1985 |
A Europa – refiro-me à União Europeia – está rodeada de problemas: problemas com as opções geoestratégicas da Rússia, problemas com os fluxos migratórios, problemas com o terrorismo islâmico e, agora, problemas com os EUA, versão Donald Trump e Elon Musk. Contudo, talvez o maior problema resida na própria União. Konstatin von Notz, do partido Os Verdes, presidente do comité de supervisão dos serviços secretos alemães, apela ao novo governo para que reconheça o impacto da ingerência russa nas últimas eleições e no resultado do partido de extrema-direita AfD (aqui). Ora, pelo menos desde o referendo inglês, que levou ao Brexit, em 2016, que se fala abertamente dessa ingerência. São quase nove anos, e a situação não se alterou. Melhor: a situação alterou-se para pior.
Mais, agora não há a temer apenas a ingerência russa, mas também a do novo poder norte-americano. Ora, isto é apenas o sintoma de uma impotência europeia que parece estrutural. Se o Brexit não foi aviso suficiente para se tomarem medidas draconianas de defesa dos processos eleitorais dos países membros, o que será necessário acontecer? A continuar assim, em poucos anos, os inimigos da União Europeia farão eleger, sem grandes dificuldades, governos que terão por finalidade destruí-la. Este problema não é apenas de cada país onde essas ingerências acontecem, mas de toda a União, e é esta que, em estreita cooperação com cada um dos seus membros, deve tomar as medidas necessárias para salvaguardar a autenticidade dos processos eleitorais.
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025
Comentários (27)
Maria Helena Vieira da Silva, La Bibliothèque en Feu, 1974 (Gulbenkian) |
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025
O Silêncio da Terra Sombria (4)
Mário Cesariny, Pintura lacerada II, 1970 (Gulbenkian) |
Os ramos frios, as letras ardentes,
a luz onde poiso, se cai a maresia.
Um som brame na esquina da rua,
semeia bolor no centro do peito.
Nos dias de sol, a voz das aves,
presa na mudez, desce do céu,
canta o segredo do silêncio,
o fulgor da tarde, a chuva a cair.
Parda de granizo, a ave de rapina
plana, suspensa da plumagem:
espreita a lua, espera a morte.
O destino vem na maresia do voo,
na cintilação da água sobre a terra:
o grito do animal na fuligem do fogo.
[1993]
sábado, 22 de fevereiro de 2025
Simulacros e simulações (71)
Manuel Botelho, 155. est-mr (da série «confidencial/desclassificado: estado-maior»), 2012 |
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025
Uma ameaça existencial
Julgo que, depois do telefonema
entre Trump e Putin e da intervenção do vice-presidente dos EUA, J. D. Vance,
em Munique, os líderes europeus terão percebido o grande sarilho em que estamos
metidos. Na prática, a actual liderança americana entregou parte da Ucrânia, ou
talvez toda, à Rússia. Mas não foi apenas a Ucrânia que foi entregue aos
russos; toda a Europa parece agora aos seu alcance. A NATO, neste momento, não
é mais do que uma sigla que ecoa um passado recente, um incómodo para o
movimento MAGA, que suporta Donald Trump e que parece a caminho do fim. E, sem
a NATO – ou mesmo com a NATO, mas sem compromisso militar norte-americano –, a
Europa fica indefesa perante uma superpotência nuclear como a Rússia.
Há uma convergência estratégica e
de interesses entre a liderança russa e a nova liderança norte-americana, e
essa convergência pode passar pela dominação territorial ou, pelo menos, pela
submissão de países livres à esfera de influência das duas grandes
superpotências nucleares. No pior dos cenários, teríamos uma “operação
especial” russa para dominar militarmente toda a Europa e, do outro lado, a
“transformação” do Canadá no 51.º estado dos EUA e a ocupação da Gronelândia.
Num cenário menos dramático, teríamos a submissão dos países europeus à Rússia
através de processos eleitorais, onde a extrema-direita pode ter um papel
importante, bem como a cedência das lideranças nacionais europeias aos
interesses russos, numa espécie de servidão voluntária; enquanto, no outro lado
do Atlântico, os EUA sufocariam economicamente o Canadá e desestabilizariam a
Gronelândia.
Neste momento, a União Europeia e a Europa Ocidental não integrada na União enfrentam um problema existencial. O que está em jogo já não é salvar as democracias e evitar o retorno a regimes autoritários, mas assegurar a independência e a capacidade dos países europeus de decidirem o seu destino. E este é o principal problema. Esta capacidade era débil, pois assentava na dependência do amigo americano. Agora que o amigo americano está a caminho de se tornar inimigo, essa fragilidade tornou-se dolorosamente clara. Resta saber se as lideranças europeias – onde a inglesa deve ser incluída – estão dispostas a enfrentar os perigos que se perfilam no horizonte e se os povos europeus estão dispostos a defender a sua liberdade e os seus valores ou se, adormecidos por oitenta anos de paz e liberdade, preferem entregar-se nas mãos de quem os queira dominar. Se há coisa que me alegraria, nesta parte final da vida, seria que tudo isto não passasse de uma fantasia de um velho esclerosado. Duvido, porém, que o seja.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2025
A doença do Bloco de Esquerda
Ana Hatherly, Doenças, 1971 (Gulbenkian) |
Uma notícia do Jornal Económico dá conta de que, no distrito de Portalegre, 73 militantes, num universo de "mais de duas centenas", abandonaram o Bloco de Esquerda (aqui). A notícia é interessante a vários títulos.
Em primeiro lugar, porque é mais um sinal de que esta força de esquerda está em desagregação. Para além de maus resultados eleitorais, de práticas laborais em contradição com as crenças dos militantes do partido e de quezílias internas, os próprios militantes, outrora tão empenhados, parecem estar a desistir paulatinamente do partido.
Em segundo lugar, porque uma excelente deputada, Mariana Mortágua, não tem necessariamente de dar uma excelente líder de partido. Hoje, para o observador externo, parece claro que Mariana Mortágua segue um processo inverso ao de Catarina Martins. Esta, no início, parecia bastante frágil em comparação com Francisco Louçã. Essa fragilidade tinha fundamento. Contudo, Catarina Martins excedeu-se: lentamente, tornou-se uma líder com capacidade de afirmação e cumpriu a sua função com honra. Mariana Mortágua, pelo contrário, parecia uma líder forte, mas o tempo tem revelado a sua fragilidade.
Por fim, esta crise no Bloco de Esquerda é mais um episódio de uma crise estrutural da esquerda, que não compreende o mundo em que nos encontramos e está presa a arquétipos ideológicos que perderam sentido ou foram derrotados. Um exemplo disso é a tentativa de estruturar a identidade política em identitarismos particulares e conflitos de ordem cultural. A debandada dos militantes de Portalegre é muito mais do que um episódio paroquial: é o sintoma de uma grave doença do Bloco de Esquerda e da esquerda em geral.