terça-feira, 2 de setembro de 2025

Ciência e democratização da opinião


Uma notícia do Público informava sobre as razões que levam a geração Z, mas não só, a rejeitar o protector solar. O movimento antiprotecção solar é idêntico ao movimento antivacinas ou ao terraplanismo. Para além da contestação da ciência – isto é, do conhecimento rigorosamente testado e avaliado –, estes movimentos partilham o meio de propagação: as redes sociais. Estas são uma forma de democratização. Qualquer um pode emitir a sua opinião sobre qualquer coisa, sem que tenha de provar o que afirma. Antigamente, também existiam opiniões estapafúrdias e idiotas. Contudo, a sua propagação era muito limitada. As redes sociais mudaram tudo. Elas são o lugar em que qualquer opinião pode competir para arregimentar seguidores.

Este democratismo das redes sociais, ao dar força a movimentos como os acima referidos, veio revelar o carácter aristocrático do conhecimento científico. Este é produzido e compreendido por uma elite, um clube seleccionado que, para entrar nele, exige longos anos de preparação e um conjunto não pequeno de provas ao longo do caminho. Isto significa que a maior parte de nós – quase todos – não está habilitado para trabalhar em ciência, e mesmo aqueles que estão, estão apenas num ramo muito específico. O que acontecia, antes das redes sociais invadirem o panorama da intercomunicação humana, era que havia um respeito tácito, veiculado pela comunicação social e pelos valores da sociedade, pelos esforços desses homens e mulheres que dedicavam uma vida ao conhecimento. Presumia-se – e com razão – que sendo especialistas, tinham uma autoridade real para falar sobre a sua área, fossem vacinas, cancro de pele, ou física nuclear.

O que se assiste é uma revolta da plebe – ou dos sans-culottes, caso se prefira a França da Revolução ao Império Romano – contra o patriciado ou a aristocracia do conhecimento científico. A revolta tem uma característica específica. Não apenas pretende ter voz sobre assuntos de natureza científica, como quer ter o poder da autoridade: as suas crenças, sem qualquer validação, são a verdade e a ciência, com o seu laborioso e controlado processo de produção de conhecimento, não passa de uma mistificação. Estamos a assistir a um teste terrível dos efeitos da liberdade de expressão. Até que ponto a ciência e o conhecimento racional podem sobreviver a estes ataques irracionais? Não é apenas ao nível político, com a erosão das democracias, que as redes sociais geram problemas. Também são um factor de turbulência para a ciência e para os benefícios que os seres humanos podem tirar dela. Já não é impossível pensar que uma nova Idade das Trevas esteja no horizonte.

domingo, 31 de agosto de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (21)

George Seurat, The Clearing, 1882

Secreta clareira,

respiração de luz,

dádiva aberta 

no perigo da terra.

Sob o teu olhar,

vibram violetas,

ervas de seda,

um véu negro

suspenso na hera.

 

[1993]


terça-feira, 26 de agosto de 2025

Uma mudança radical


Julgo que ainda não se compreendeu bem o significado das últimas eleições legislativas. Elas podem representar – ou representam, efectivamente – um corte com o 25 de Abril de 1974 e com os equilíbrios constitucionais que vigoraram nos últimos cinquenta anos. Esses equilíbrios fundavam-se numa aliança – por norma, tácita – entre o centro-esquerda, representado pelos socialistas, e o centro-direita, representado pelo PSD, com ou sem a muleta do CDS. Dentro desse equilíbrio coube tanto um CDS mais exaltado como uma esquerda menos reformista: o PCP e o BE. Ora, as últimas eleições puseram fim ao equilíbrio. A esquerda tornou-se, parlamentarmente, irrelevante. Nem sequer conta para uma eventual revisão da Constituição. E esta revisão é uma possibilidade real, mesmo que o PSD por enquanto a negue.

Dois sinais decisivos de que os equilíbrios provenientes do processo de democratização estão no fim são as iniciativas legislativas do governo sobre a imigração e o código do trabalho. São leis estruturais e a esquerda nada pode fazer para as alterar. A primeira chocou com o Tribunal Constitucional e à segunda pode acontecer o mesmo. Um cenário plausível é o de a grande coligação parlamentar de direita – PSD/CDS + IL + Chega –, através da contínua proposição de leis que chocam com a Constituição, encontrar uma desculpa que lhes permita fazer aquilo que, na verdade, todos os seus chefes desejam: alterar a actual Constituição, de modo a deixá-la irreconhecível, aniquilando os traços sociais específicos que a transição à democracia em 74 lhe deu.

Os grandes interesses que, de modo mais silencioso ou mais ruidoso, como o caso de O Observador, estão por detrás do Chega, da IL, do PSD de Montenegro (o mesmo de Passos Coelho) e do minguado CDS, não perdoarão à direita política que esta não aproveite a situação actual para refazer a Constituição. E é evidente que quem manda não é Montenegro ou Ventura. Eles são apenas representantes. Portanto, será um milagre que a Constituição se mantenha tal como está. Não se espere que a sua defesa venha do PSD. Não estamos em 1975, nem os dirigentes actuais têm alguma coisa que ver com os dirigentes do PPD (era assim que o PSD se chamava) daqueles tempos. Se se pode ter alguma pequena esperança de que a revisão não seja um retrocesso cívico monstruoso, essa esperança reside na União Europeia. É ela que paga as contas, e há um decoro mínimo que a nossa direita tem de ostentar, para que o dinheiro continue a vir. O país político mudou e mudou radicalmente.

domingo, 3 de agosto de 2025

Capitalismo e democracia


Numa newsletter do Público, João Pedro Pereira traz-nos um caso sobre o desenvolvimento do capitalismo. Trata-se da Anthropic, uma promissora start-up de Inteligência Artificial (IA), fundada pelos irmãos Dario e Daniela Amodei. Não há um ano, Dario Amodei, o CEO da empresa, publicou um ensaio afirmando que a IA pode transformar o mundo para melhor, defendendo as democracias e os Direitos do Homem. Agora, porém, “Amodei está em conversações para obter investimentos avultados por parte dos Emirados Árabes Unidos e do Qatar”, dois Estados que não se distinguem por serem democráticos ou entusiastas dos direitos humanos. Numa mensagem de Amodei aos funcionários, é dito: “Infelizmente, julgo que ‘Nenhuma pessoa má deve alguma vez beneficiar do nosso sucesso’ é um princípio sobre o qual é difícil gerir um negócio.”

O caso é interessante não tanto pela descoberta de que a relação entre moral e negócios é ténue, mas porque coloca em jogo o problema da relação entre capitalismo e democracia liberal. Pretendeu-se que havia um laço forte entre desenvolvimento do capitalismo e democracias liberais. Ora, existem demasiadas provas empíricas que contrariam essa crença. O Chile de Pinochet é um desses exemplos. Outro é a China comunista pós-Mao Tsé-Tung. Podia multiplicar os exemplos. O que é importante, porém, é perceber que não existe qualquer relação necessária entre desenvolvimento capitalista e democracia liberal. Apenas duas liberdades parecem necessárias para a economia capitalista: a da propriedade privada e a de concorrência, embora esta possa ser dispensada.

A relação entre capitalismo e democracia parece ser apenas conjuntural: o resultado, em primeiro lugar, da luta da burguesia contra a aristocracia e o privilégio político desta; em segundo, da luta contra a ameaça do comunismo, enquanto inimigo da propriedade privada. Derrotados aristocratas e comunistas, o capitalismo, para o seu desenvolvimento, pode dispensar regimes democráticos, o que está a fazer diante dos nossos olhos. A América de Donald Trump é um caso exemplar, onde a corrosão das instituições democráticas e liberais está a ser fomentada e financiada por grandes interesses capitalistas. Contudo, há um outro fenómeno inquietante que ainda não é visível, mas que se está a desenhar: a destruição, para além das democracias, da liberdade da concorrência. Grandes interesses económicos gravitam o Estado em busca de protecção e de destruição dos concorrentes. Talvez a destruição em curso não seja apenas a das instituições democráticas, mas também da própria economia de mercado.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

A jovem Europa

Em 1923, Joseph Roth, referindo-se ao protagonista do seu primeiro romance, escreveu: “Era o jovem europeu: nacionalista e egoísta, sem fé, sem lealdade, sedento de sangue e limitado. Era a jovem Europa.” Este jovem europeu era protofascista e, com o andar dos anos, tornou-se fascista. O resultado é conhecido: o fascismo italiano, o nazismo alemão, diversas cópias, mais ou menos fiéis, em países europeus, e, acima de tudo, a segunda guerra mundial e o genocídio judaico. Os jovens europeus, no pós-guerra, foram-se tornando outras coisas. Derivaram para a esquerda, tornaram-se antifascistas. Um pouco mais tarde, foram campeões do liberalismo: primeiro, de costumes; depois, de mercado. A certa altura do percurso, a juventude europeia, como outras, mergulhou na internet e nas redes sociais, uma vida sedentária, sombria, vivida no quarto.

Agora, começa a descobrir-se que os jovens europeus estão cansados da vida sedentária. Enquanto a velha Europa definha numa crise demográfica de grandes proporções, aquela jovem Europa – na designação irónica do escritor austríaco – está de volta, com os mesmos jovens limitados, nacionalistas, egoístas, sem fé nem lealdade, e, começa a perceber-se, sedentos de sangue. Uma crise de masculinidade terá atingido parte dos rapazes e, desconfiados da sua natureza, parecem ter uma necessidade de exibir, como uma condecoração, a mais rasteira misoginia e um culto da violência, que começa a passar das redes sociais para as ruas. A discussão sobre se as actuais extrema-direita e direita populista são ou não fascistas é irrelevante. O importante é a pulsão que conduz muitos jovens – principalmente, do sexo masculino. E esta pulsão é violenta, nacionalista e, em potência, violenta.

A situação social e política em que vivemos é, do ponto de vista económico, social e político, muito diferente da que se vivia na Europa do fim da primeira guerra mundial. Contudo, há um ponto em comum: a proliferação do ressentimento. Foi o ressentimento de largas camadas da população que deu combustível ao fascismo e ao nazismo. Ora, apesar de as pessoas, mesmo as mais pobres, viverem muito melhor do que nessa altura, o ressentimento multiplica-se. Seja devido à presença de estrangeiros ou à comparação com as elites, a massa dos ressentidos, na qual a presença de jovens rapazes é significativa, cresce e está a tornar-se um problema para as democracias liberais. Nos anos vinte e trinta do século passado, os políticos democráticos foram impotentes para lidar com essa “jovem Europa”. Resta saber se, passado um século, aprenderam alguma coisa.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (20)

Darío de Regoyos y Valdés, Plaza de un pueblo

Rumores ferviam

na sombra da vila.

A vinda do calor,

ervas calcinadas,

o vinho do rancor

na luz do Verão.

 

[1993]

segunda-feira, 28 de julho de 2025

O caminho das sombras (1) Thomas Bernhard e a Coisa Originária

Juan José Aquerreta, Ácida Tristeza, 1991

O primeiro volume das obras autobiográficas de Thomas Bernhard tem por título Die Ursache - Eine Andeutung. Uma tradução literal pode ser: A Causa - Uma Insinuação. O livro trata dos primeiros anos de vida do escritor. Tem dois capítulos e, em cada um, existe apenas um parágrafo. Traduzir Die Ursache por A Causa perde o sentido fundamental da palavra alemã, onde o prefixo Ur- significa originário, primordial, fundamental. Por seu lado, Sache significa coisa, assunto, questão. Poder-se-ia traduzir Die Ursache por A Coisa Originária. É ao universo da infância e da adolescência que o autor vai buscar a imensa energia negativa que alimenta a beleza escura das suas obras e o fôlego da sua escrita. Mais do que uma causa, no sentido mecânico das relações determinísticas de causa e efeito, o que é mostrado é a Coisa Originária ou, para ser mais preciso, a origem da coisa: do estilo, do conteúdo, das opções estéticas, da visão do mundo. Estão ali os materiais primordiais - a matéria-prima - de um universo literário que o tempo mostrou ser de grande fulgor, um incêndio que é também uma extinção, precisamente o título de uma das suas grandes obras.

sábado, 26 de julho de 2025

Perfis 18. O professor de aldeia

August Sander, Village Schoolteacher, 1921
O modesto professor de aldeia pousa para o futuro, para que a sua imagem não se desvaneça com o passar dos anos; não sabe, porém, que tudo nele já pertence ao passado. O fato lembra a farda militar, e toda a sua autoridade repousa na encenação de uma marcialidade que, com o passar dos anos, a sociedade vai recusar. A confiança que exibe repousa na ignorância, na certeza de que tudo permanecerá como é. Ao dar-se à objectiva do fotógrafo, exibe a crença na imobilidade do tempo, como se o momento que a fotografia solidifica para a eternidade pudesse contaminar o fotografado e o seu ambiente. Sem esta crença, talvez lhe fosse impossível entrar numa sala de aula, enfrentar as crianças e ensinar-lhes a ler, escrever e contar, imaginando assim que também elas, pelo seu ensino, entrarão na grande barcaça da eternidade, quando, na verdade, estão a mergulhar no rio encapelado do tempo.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Diálogos aporéticos (10) - Linha do horizonte

George Hoyningen-Huene, Divers, Paris, 1930

- O que está a ver?

- Nada.

- Ah. Está tão concentrado no horizonte.

- O horizonte fascina-me.

- Alguma razão específica para tanto fascínio.

- Sim. O simples facto de ser uma linha.

- A linha do horizonte.

- Claro, a linha do horizonte.

- E o que tem ela de tão fascinante?

- Não sei.

- Não sabe?

- Não. Não consigo ver mais do que a linha.

- E isso é fascinante?

- Nem por isso.

- Não percebo.

- Falta de treino. Talvez falta de imaginação.

- Tornei-me sua inimiga, para me acusar de não saber fantasiar?

- Não se trata de inimizade.

- Então?

- Apenas a constatação de que os seus limites morrem na linha do horizonte.

- E os seus?

- Os meus vão bem para lá dela.

- E o que vê?

- A linha do horizonte.

- Pensava que via para além dela.

- Gostava de ver, mas a linha cega-me.

- Sim, eu já sabia que estava cego.

- Porquê?

- Porque nem a mim me vê.

 

terça-feira, 22 de julho de 2025

Joseph Roth, A Teia de Aranha (Das Spinnennetz)


No fim do capítulo XVIII, o autor dá-nos a chave do romance: Era o jovem europeu: nacionalista e egoísta, sem fé, sem lealdade, sedento de sangue e limitado. Era a jovem Europa. O romance – o primeiro de Joseph Roth – foi publicado em folhetins no jornal vienense Arbeiter-Zeitung. Durante décadas passou despercebido na obra do escritor austríaco. Só foi editado em livro em 1967. A redescoberta do romance acabou por se inserir num momento em que alemães e austríacos se interrogavam sobre a cumplicidade dos pais com o nazismo, o que confere à obra um curioso estatuto. Aquando da sua primeira publicação em folhetins, podia ser vista como uma profecia dos tempos a vir. Nos anos sessenta, porém, ela era uma obra de arqueologia, onde se podia descobrir, com uma precisão impensável, os processos de formação da personalidade nazi-fascista. Nos dias que correm, ela pode ter ainda uma outra função: a de aviso. De certo modo, estão a voltar os tais jovens europeus: nacionalistas, egoístas, sem fé, sem lealdade, sedentos de sangue e limitados.

Não se pense, todavia, que o interesse do romance reside nas suas implicações políticas. Estas são um meio para atingir um fim: a análise do papel do ressentimento na subjectividade moderna. A obra é uma exploração da consciência de Theodor Lohse, um tenente desmobilizado do exército alemão, a análise da tensão entre os desejos que acalenta e a realidade que é a sua. O espaço que existe entre ambos é o solo onde o ressentimento vai crescer. A limitação que o caracteriza não lhe permite confrontar-se consigo mesmo, perceber quais são, no âmbito de uma moralidade saudável, as suas forças e as suas possibilidades. É ela – a limitação – que o conduz a odiar os judeus, os socialistas, os movimentos operários. São, para Theodor Lohse, os culpados da sua situação. O outro não o interpela no sentido do respeito, mas é aquele que o impede de ser aquilo que deseja ser. O ressentimento nasce, assim, para utilizar uma expressão do campo da psicanálise, de uma ferida narcísica.

Esse narcisismo dilacerado, turbilhonado pelo ressentimento, transforma-se num duplo egoísmo: o pessoal e o nacional. O protagonista principal é um nacionalista, pois a sua ferida narcísica é também a de uma Alemanha ressentida, derrotada na Grande Guerra de 1914-1918, submetida ao jugo do Tratado de Versalhes pelas potências vitoriosas. O romance permite perceber que o nacionalismo é um narcisismo colectivo. Imerso nesse ambiente, Lohse, na ânsia de encontrar uma autonomia – isto é, poder e dinheiro –, põe em acção todas as características que marcam o jovem europeu de então. Não apenas o egoísmo e o nacionalismo, mas também a falta de fé, a ausência de lealdades e a sede de sangue. Para subir, não hesita em assassinar os que estão acima de si na hierarquia. O ressentimento é o combustível para as maiores degradações morais.

O título A Teia de Aranha (Das Spinnennetz) é uma imagem tanto da situação em que a Alemanha vivia durante a República de Weimar, como das pretensões do protagonista. A derrota alemã e o fim da Monarquia tinham atirado o país para uma enorme teia de contradições, de interesses, de agitações políticas, de frustrações sociais, onde elites corruptas vicejavam e tentavam controlar, em seu favor, a situação. Também o protagonista se imaginava a aranha que tece a sua teia, onde os incautos vão caindo, enquanto ele se fortalece ao devorá-los. No entanto, a sua limitação não lhe permite perceber que ele próprio é uma mosca em teias que outros tecem, como o espião judeu Benjamin Lenz e a própria mulher Elsa von Schlieffen. Lenz é um niilista e odeia tudo: a Europa, o Cristianismo, os judeus, os monarquias, as repúblicas, a Filosofia, os partidos, os ideais, as nações. É superiormente dotado e manipula tudo e todos. Espia para Lohse, espia para os comunistas, espia para a polícia. O dinheiro que ganha com isso nem é para ele, envia-o para a família. O seu prazer é, parecendo irrelevante, ser o manobrado central. É ele que promove Theodor Lohse, que lhe apresenta as pessoas certas, que o faz ter o nome nos jornais, que lhe apresenta a mulher, uma jovem aristocrata já sem dinheiro, mas com ambições e saber manipulatório suficiente para, obedecendo em aparência ao carácter autoritário do marido, o conduzir na ascensão social e política.

Beneficiando, da sua experiência de jornalista de grande talento, Joseph Roth retrata, com profundidade, a situação social da Alemanha. Fá-lo, adoptando as orientações estéticas da nova objectividade que tinha surgido em conflito com o expressionismo, como superação de uma visão hiperbólica da dimensão sentimental. Theodor Lohse, Benjamin Lenz e Elsa von Schlieffen são, ao mesmo tempo, personagens credíveis na sua singularidade e arquétipos ideais. Theodor Lohse encarna o autoritário protofascista. Benjamin Lenz, o judeu desenraizado. Elsa von Schlieffen, a aristocrata derrotada pelo empobrecimento da família e o fim da Monarquia, mas ambiciosa por retornar ao centro do poder. Se há, porém, um traço que os une é o niilismo. Este alimenta-se de uma enorme gama de inclinações: o ressentimento, o narcisismo, a ambição, o desejo de manipular, a vontade de poder. E é isso que Roth mostra, não sem uma funda ironia narrativa, numa Berlim à deriva, num mundo onde ordem e desordem se confundem.

domingo, 20 de julho de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (19)

Joseph Beuys, Horse, 1957

Trémulo e trágico,

o cavalo ergue-se

sobre a escuridão:

desejo de vento,

onda exaltada,

o fogo lapidado

no vidro do mundo.


[1993]

 

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Crimes: aparências e realidade


Um estudo, proveniente do Observatório de Segurança e Defesa da SEDES, mostra que a criminalidade desceu em Portugal nos últimos 25 anos. Contudo, a percepção de insegurança cresceu bastante. Um dos factores que desencadeia essa falsa percepção é a atenção mediática dada ao fenómeno do crime. A forma como jornais, rádios e televisões tratam do assunto é cada vez mais intensa, criando no público uma sensação contrária à realidade. Sabemos que, durante o regime de Salazar e Caetano, a censura era muito grande em relação à criminalidade. O regime protegia-se, ocultando tudo o que pudesse mostrar como falsa a visão de um país sereno e de brandos costumes. Em democracia, uma parte, cada vez maior, dos órgãos de comunicação encontrou no crime um espaço noticioso preferencial.

Existem duas grandes motivações por detrás deste interesse pela criminalidade. Uma estará ligada à lógica de mercado: o crime dá audiências na televisão e tiragens na imprensa. É o mercado a funcionar. As pessoas interessam-se por esses acontecimentos e o mercado satisfaz-lhes os desejos. A segunda motivação é de natureza política. Assim como os dirigentes do Estado Novo temiam que a criminalidade do país estragasse a imagem do regime, também os inimigos da democracia liberal utilizam a percepção da criminalidade como estratégia para desgastar as instituições democráticas. Fomentam um enorme alarido social em torno da segurança, quando o país é um dos mais seguros do mundo. Mesmo para um observador arguto, nem sempre é fácil distinguir, na exploração dos crimes, entre a motivação económica e a política.

Durante muito tempo, foi vital para as democracias liberais a existência de uma esfera informativa livre, onde a concorrência de ideias, para alimentar o debate em torno do bem comum, se podia expressar sem censura. Essa esfera tornou-se, agora, num dos elementos centrais da guerra contra a democracia. A criação de falsas percepções no público tem um efeito arrasador das instituições e está a alimentar o progresso eleitoral da extrema-direita. Isto não significa que não existam órgãos da comunicação social que tentam fazer um trabalho responsável. Existem. Contudo, a cultura instalada por parte significativa dos media está a tornar os cidadãos pouco permeáveis à verdade, preferindo as aparências à realidade. Salazar dizia que, em política, o que parece é. Os seus admiradores não esqueceram a lição: criam a aparência de um país à beira do caos, para as pessoas crerem que assim é e se entregarem nas mãos do salvador de serviço.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Meditações melancólicas (95) Fim do dia

Julius Strakosch, Fin du Jour, 1895

O crepúsculo que antecede o fim do dia é um palco magnífico para a grande representação da melancolia. Esse dia que acaba gera no espectador uma tristeza profunda. Talvez todo o fim esteja desenhado para deixar esse rasto melancólico em quem o vê aproximar-se. Contudo, o cair da noite tem em si um poder mais persistente e verrumante. O coração vê a luz, aquela que por algumas horas iluminou o espírito, ceder o seu império às trevas. O horizonte que se oferecia ao labor dos olhos torna-se numa cortina negra, de onde o prazer de olhar cede o lugar ao temor do que a noite pode trazer.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Ensaio sobre a luz (130)

Pere Ysern Alié, Cisne en el Bois de Boulogne, 1921

Como um cântico na solidez das trevas, a luz irrompe por entre o folhedo do bosque, incendeia as águas de promessas e desejos; solidifica-se na brancura dos cisnes, que deslizam nas águas como se viajassem no tempo ou se entregassem à doce contemplação de uma deusa pagã.

sábado, 12 de julho de 2025

Comentários (31)

Almada Negreiros, Porta da harmonia, 1957

Escuta só a voz
que traz a harmonia
Fernando Guimarães

Nem só de harmonia viverá o homem. Talvez seja mesmo impossível uma vida harmónica. A cada momento, a realidade conspira para fazer do dia uma fonte de conflitos. Umas vezes, com a natureza. Outras, com aqueles que vivem com ele. Quase sempre, consigo mesmo. A vida é milícia e onde a milícia está presente a tranquila paz, mãe da harmonia, é impossível. A injunção do poeta é a expressão de um desejo, mais do que um imperativo. Ora, onde o desejo se manifesta, aí mesmo a desordem campeia, a desarmonia rasga o horizonte e traz com ela a linha indecifrável do caos.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (18)

Jim Dine, Animal, 1990

Animal sem luz

grita no fogo

o rubor da noite,

o mar do medo.

 

Animal sem voz

escreve na água

letras de terra,

o sal do desejo.

 

[1993]

terça-feira, 8 de julho de 2025

Nocturnos 130

Peter von Hess, Nächtliche Rast in einem Kirchdorf (Städel Museum, Frankfurt am Main)
A noite acolhe os viajantes e oferece-lhes um lugar para esquecerem os tormentos que lhes invadem as almas, as fantasias que a imaginação nunca esquece de atear, como uma fogueira que incendeia a razão, os perigos que se escondem nas trevas do coração de cada um. 

domingo, 6 de julho de 2025

Comentários (30)

Wassily Kandinsky, Street in Murnau with Women, 1908

 
«Vem por aqui» - dizem-me alguns com os olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
José Régio

Em mundos onde não cessam de gritar "vem por aqui", o melhor é cultivar a surdez. E neste mundo que nos calhou em sorte não se cessa, de manhã à noite, de ouvir a injunção "vem por aqui". Um estranho que chegasse agora, vindo de outro universo, ficaria espantado com a quantidade de guias existentes no mercado, como se os seres humanos andassem perdidos e sem saber onde encontrar, em si mesmos, um mapa ou uma bússola que os pudessem orientar. Se a oferta é assim tanta, temos de supor que a procura é desmedida. Talvez a realidade seja mais prosaica. Mais do que uma orientação no caminho,  as pessoas procurem braços que se estendam para elas, para que se sintam acolhidas e fazendo parte de alguma coisa, mesmo que essa coisa seja obscura ou de frequência duvidosa. Cultivar a sanidade exige, por isso, um disciplina rigorosa da surdez. Tornar-se surdo como caminho para sobreviver num mundo onde os orientadores não sabem o que é a proveitosa disciplina da mudez.

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Direita e Esquerda, uma questão de sabores morais


Em 2012, o psicólogo social Jonathan Haidt publicou a obra A Mente Justa: Porque as Pessoas Boas não se Entendem sobre Política e Religião. Esta obra é fundamental porque nos ajuda a compreender um dos dramas que assolam os países ocidentais, cujas democracias se estruturam, ainda hoje, pela dicotomia esquerda–direita. Haidt defende que as opções pela esquerda e pela direita não se devem a decisões de carácter racional, mas são o resultado de intuições morais profundas, que depois são racionalizadas, isto é, justificadas por argumentos. De forma mais simples: ninguém é de esquerda ou de direita por ter escolhido sê-lo após um processo racional de deliberação. Primeiro é-se de direita ou de esquerda, e depois arranjam-se justificações argumentativas.

O que leva as pessoas, segundo o autor, a ser de direita ou de esquerda são intuições morais. A moralidade terá, no mínimo, seis fundamentos diferentes, que se organizam em pares de opostos: cuidado/dano, justiça/engano, lealdade/traição, autoridade/subversão, santidade/degradação e liberdade/opressão. São estes aspectos que, intuitivamente, as pessoas usam para fazerem juízos morais e para codificarem a sua posição política. As pessoas de esquerda baseiam a sua moralidade, fundamentalmente, nas ideias de Cuidado e de Justiça. As pessoas de direita apresentam um espectro moral mais alargado, onde a Lealdade, a Autoridade e a Santidade (certas coisas são consideradas sagradas e intocáveis) têm um papel preponderante. Pessoas de esquerda e de direita valorizam a Justiça e a Liberdade, mas interpretam-nas de modo diferente. As pessoas discordam politicamente porque preferem inconscientemente sabores morais diferentes.

As ideias de Haidt são úteis para pensar como devem agir as lideranças políticas. Uma possibilidade é concentrarem-se apenas nos fundamentos morais da sua tribo política: a esquerda valoriza o cuidado e a justiça igualitária; a direita, a lealdade ao grupo, a autoridade e a sacralidade de certas instituições. Este caminho conduz à polarização, a guerras culturais – que são, afinal, conflitos morais. Líderes responsáveis, de ambos os lados, devem procurar estabelecer pontes com quem tem gostos morais diferentes. Ser político é mais do que ser de esquerda ou de direita. É, sem negar a sua preferência de sabores morais, procurar laços com os outros, porque a política visa o bem comum. A democracia não é a vitória total de um lado e a derrota do outro, mas a alternância de sabores e o respeito por quem tem gostos diferentes. Ora sabe mais a sal, ora mais a pimenta. O essencial é a qualidade do alimento: a governação de uma comunidade que se pretende unida na diversidade.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Militares e a doença da democracia


O prelúdio das eleições presidenciais é um sintoma da doença da democracia. Não bastava a existência de um candidato militar, com possibilidades de vitória. Surge a possibilidade de, ao lado da candidatura de um almirante, haver a de um major-general. Portugal está cheio de saudades dos tempos do PREC, quando os candidatos mais fortes à Presidência da República eram militares. No início dos anos oitenta, uma revisão constitucional acabou com o Conselho da Revolução e tornou o regime português numa democracia plena, civil e civilizada. Durante quarenta anos, a política era coisa de políticos, enquanto os militares tratavam dos assuntos militares.

Qualquer cidadão – incluindo os militares, desde que não estejam no activo – tem o pleno direito de se candidatar. Gouveia e Melo, o almirante candidato, e Isidro Morais Pereira, o major-general putativo candidato, estão no pleno direito, enquanto cidadãos, de serem candidatos à Presidência da República. O problema é que não se conhece, em nenhum deles, qualquer competência política. Têm uma completa virgindade política, uma inocência completa perante os dilemas que a gestão política coloca a quem ocupa a Presidência. São conhecidos do público: um, o almirante, pela boa gestão da distribuição e aplicação dos stocks de vacinas; o outro, pelo comentário militar na televisão. Podem ter currículos militares brilhantes, podem ser bons gestores de armazéns ou analistas militares, mas nada disso nos diz seja o que for sobre como vão lidar com um mundo em que o Presidente da República tem menos poderes que um almirante ou um general no seu ramo das Forças Armadas.

Se a candidatura de um ou dois militares, sem preparação política, é já um sintoma forte da doença da democracia portuguesa, aquilo que torna apetecíveis as suas candidaturas é decisivo para um diagnóstico dessa doença. A sua real vantagem eleitoral é não serem políticos, nada saberem daquilo a que se candidatam. Parte dos portugueses tem um problema com os políticos. As pessoas pensam que não vivem tão bem quanto desejam por culpa dos políticos. Os fracassos sociais e existenciais de cada um não são sua culpa, mas dos políticos, transformados em bodes expiatórios. A solução é escolher não políticos para os cargos que exigem políticos preparados. Isto é uma doença porquê? Por dois motivos: em primeiro lugar, porque as pessoas continuam a acreditar que têm de ser os outros – os políticos – a tratar da sua vida; em segundo, porque essa crença leva a escolhas pouco razoáveis de pessoas sem qualquer preparação para cargos altamente exigentes.