Publicado em dois volumes, no ano de 1938, O Conde de Villamediana
é um romance histórico, que combina factos históricos e ficcionais. Representa
uma prova de que a sombra do romantismo se prolongou, na literatura portuguesa,
bem dentro do século XX. De certo modo, Almeida Garrett, com o Arco de
Santana, e Alexandre Herculano, com Eurico, o Presbítero e O
Monge de Cister, tiveram uma prolongada descendência, que nem o advento do
Realismo e do Naturalismo, nem a chegada dos Modernismos, conseguiram pôr em
causa, mesmo que a crítica e a universidade pouca atenção dêem a esse contínuo
fluir, desde o século XIX, da narrativa histórica. O romance histórico nunca
deixou de atrair escritores e leitores. É o caso de Eduardo de Noronha e das
suas obras romanescas.
O Conde de Villamediana é uma figura histórica. Trata-se de Juan de Tassis
y Peralta, segundo conde de Villamediana, que nasceu em Lisboa em 1582 (os pais
acompanharam Filipe II (primeiro de Portugal) na viagem para Lisboa, quando
assume a coroa de Portugal e permanece algum tempo no país. Morreu, assassinado, em 1622, em Madrid. Foi
um poeta do Barroco espanhol, ligado ao culteranismo, uma subcorrente do conceptismo,
que interpretou de maneira bastante pessoal. Foi uma personalidade polémica,
tanto pela sua inclinação para D. Juan como pela sua ousada sátira das elites
castelhanas, as quais eram retratadas impiedosamente nos seus poemas. Isso
valeu-lhe três exílios ainda no tempo de Filipe III (segundo de Portugal) e uma
situação conflituosa com a nobreza espanhola no tempo de Filipe IV (terceiro de
Portugal). As razões do seu assassinato nunca foram clarificadas e vão desde a
vingança de nobres poderosos cansados da sua pena ou com as suas conquistas
amorosas, do próprio rei, agastado com um eventual caso entre a rainha e o
conde, até ao facto de estar implicado num processo de sodomia, no qual vários homens
acabaram na fogueira, a que ele escapara. A figura deu origem a várias obras
literárias em Espanha, tanto no século XIX como no XX.
Apesar da ligação do conde a Portugal ser fortuita, o nascimento devido a
um acaso histórico e uma ou outra amante de origem portuguesa, Eduardo de
Noronha utiliza-o para fazer um retrato da corte espanhola no tempo do último
dos Filipes que governaram Portugal. A corte era um espaço de grande fausto e
um lugar de ostentação, mas também o lugar de intriga política, de corrupção e
de fomento da injustiça. Esta caracterização de um poder absoluto é o espaço
ideal para fazer emergir um herói, sendo ele próprio um nobre e um dos grandes
de Espanha, que desafia os poderes instituídos e as práticas políticas e
sociais que giravam em torno desse poder. Um herói que é benevolente com os
humilhados e intrépido perante os poderes instituídos. A narrativa é, assim, um
exercício de denúncia de um poder político que oprimia a nação portuguesa,
explorando eventuais contradições no seio da própria elite castelhana.
Outro elemento estrutural do romance de Eduardo de Noronha é a oposição,
de inspiração romântica, entre o indivíduo e a colectividade, neste caso a
aristocracia espanhola. Villamediana é uma excepção no meio de um grupo social,
ou, para se ser mais preciso, uma casta. Mais do que um nobre, Juan de Tassis y
Peralt é um indivíduo. Esta individualidade é sublinhada pela excepcionalidade,
seja na poesia, seja no confronto, seja na sedução. A sua excepcionalidade
manifesta-se também por não integrar o grupo de bajuladores nem pretender ao
estatuto de protegido real. Afronta o poder não por uma causa social, mas por
uma estética pessoal. Ora, é essa subjectividade radical que se torna perigosa
para o Absolutismo, pois não representa um confronto, mas uma ameaça de
dissolução. O absolutismo é possível onde os indivíduos estão subjugados aos imperativos
da casta a que pertencem, seja à nobreza, ao clero ou ao terceiro-estado.
Villamediana, tal como é concebido por Eduardo de Noronha, é uma anunciação do
triunfo da subjectividade sobre a tradição e a cultura comum. É a afirmação do
valor central da liberdade individual perante a ordem social marcada pela
sujeição e subordinação. As aventuras e peripécias do conde são uma ruptura com
a servidão voluntária com que os indivíduos se submetem ao estatuto do corpo
social a que pertencem e ao arbítrio absoluto do supremo magistrado. De certo
modo, Eduardo de Noronha transforma Villamediana num anunciador dos novos
tempos.
Contudo, o autor não resiste em capturar o próprio herói numa das
categorias mais tradicionais e conservadoras, a que está ligada à oposição
entre o desejo carnal e um amor casto, de natureza platónica. O romance começa com
o resgate por Villamediana de Lavínia, uma mulher pertencente às camadas
populares, mas de grande beleza, das mãos do marido, que, continuamente, a
maltratava. Entre o conde e a mulher resgatada nasce uma relação que se tornará
arquetípica no decorrer da narrativa. Villamediana deseja-a, mas ela, amando-o,
recusa qualquer tipo de comércio sexual. O seu amor é puro e contemplativo e é
este amor idealizado que se torna o critério de avaliação das relações que o
herói entretece com outras mulheres e, eventualmente, com a rainha. O desejo do
corpo e a entrega erótica surgem como uma sombra perante a luminosidade de um intenso
amor espiritualizado e casto, que é ao mesmo tempo uma fonte de frustração do
desejo do amante. O romance é assim percorrido por uma dupla tensão. A primeira,
a que opõe a indivíduo ao organismo social. A segunda, a que opõe eros e ágape,
a paixão erótica e o amor espiritual.
A obra está concebida, apesar de não poucas vezes estar estruturada segundo
o cânone de romance de aventuras, como uma tragédia. Juan de Tassis y Peralta é
um herói trágico que caminha para a sua perda com a cegueira de todos os heróis
das tragédias clássicas. De onde vem essa cegueira? O que lhe oculta o destino
que espera por ele? Nos heróis gregos, a perda acontece devido à húbris, à
desmedida. Tomado pela húbris, o herói ultrapassa a sua medida, o que se
manifesta na presunção e arrogância perante os deuses. Ora, Villamediana
desafia os deuses terrestres e eles conluiam-se para a sua perda. Onde se
manifestam presunção e arrogância em Juan de Tassis y Peralta? Tanto na
afirmação da individualidade contra o senso comum e o conformismo social, como
no desregramento erótico. A morte do herói acaba por lançar um véu conservador
naquilo que foi mostrado como redentor e socialmente inovador. A afirmação do self
e o culto de Eros têm um preço e esse preço é a morte.