sexta-feira, 2 de maio de 2025

Educação e Inteligência Artificial


 A democratização do uso da inteligência artificial (IA) é o maior desafio dos últimos 2 600 anos — época em que emergiu a filosofia — colocado aos processos formais de educação das novas gerações. Como deve evoluir o ensino num mundo em que a IA pode fornecer sistematizações rápidas e profundas de informação? Corremos um risco: o recurso passivo à IA pode impedir que as novas gerações desenvolvam um conjunto de competências intelectuais importantes e que isso traga uma paradoxal diminuição da inteligência na espécie. Como deve evoluir o ensino para que a espécie se adapte ao novo ambiente? Que lugar devem ter os tradicionais exercícios de memorização e de sistematização? Que lugar deve ter o desenvolvimento, desde muito cedo, das capacidades de interrogação crítica, avaliação reflexiva e redescrição criativa da informação?

Qual é o solo a partir do qual pode florescer a inteligência crítica, qual é a terra que é preciso não descurar na educação, para que a planta se desenvolva e floresça? Esse solo são as velhas competências da memória e da sistematização da informação (a sua classificação e organização). Se esse solo não for cuidado, toda a semente lançada nele morrerá. Isto não significa que métodos arcaicos de ensino sejam a solução. Significa outra coisa: é necessário que os responsáveis pela educação e os professores encontrem a melhor maneira de trabalhar o desenvolvimento dessas competências básicas. O importante não é se a metodologia é nova ou tradicional, mas que funcione, que conduza os alunos a fortalecer os processos ligados à memória e à sistematização.

Se a informação sistematizada pela IA se encontra à distância de um prompt (a questão posta ou tarefa pedida à IA), as novas gerações necessitam de desenvolver, para além das competências tradicionais, outras bem mais complexas. Precisam de aprender a interrogar a IA, de cultivar competências lógico-matemáticas e de avaliação crítica da informação gerada, bem como de fomentar a capacidade de articular dados para resolver problemas práticos ou cognitivos. Precisam de ser activos na relação com a IA e não receptores passivos — caminho certo para a estupidificação. O novo ambiente gerado pela IA não vem substituir o esforço dos alunos. Vem exigir mais esforço no desenvolvimento das competências básicas e no das mais elevadas. Ambas têm de ser mais sólidas. O caminho será compatibilizar o desenvolvimento das competências básicas da memória e da sistematização com as mais exigentes do pensamento crítico e reflexivo. A IA não veio trazer o descanso, mas um esforço mais complexo e profundo na aprendizagem. Só sobreviverá quem se tornar mais inteligente, não menos.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Cadernos do esquecimento 56 Gramática

Fred Kradolfer, sem título, 1930 (Gulbenkian)

Há uma gramática da memória que, como todas as gramáticas, articula a fonética, a morfologia e a sintaxe daquilo que se recorda e do que é entregue ao esquecimento. A fonética memorial observa a sonoridade da recordação, enquanto a morfologia medita sobre a formação das unidades mnemónicas e o modo como, partindo de unidades mínimas, se estruturam noutras mais amplas. Por fim, a sintaxe ocupa-se dos exercícios combinatórios dessas unidades, estruturando paisagens, como grandes textos que nos trazem o que estava oculto. Sobre tudo isso reina o esquecimento — não como uma ameaça, mas como o campo de possibilidade de onde emerge o que escapa ao olvido.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Marlen Haushofer, A Parede


Publicado em 1963, A Parede é o romance mais conhecido de Marlen Haushofer (1920–1970), escritora austríaca cuja obra explora a solidão, o isolamento e a condição humana perante a fragilidade da existência. A obra é a experimentação literária de um cenário hipotético, uma experiência de pensamento para explorar a condição humana. A protagonista – sem nome na história – está de visita a uma casa de campo de uns primos. À noite, eles saem para ir à aldeia. Quando ela de manhã acorda, depara-se com um cenário inesperado: uma parede transparente e inexpugnável tinha aparecido, separando-a do resto do mundo. Fica isolada, apenas na companhia do cão da família e de alguns animais. Compreende que qualquer coisa se passou do outro lado da parede, de onde a vida terá desaparecido.

Um dos testes que o romance faz está relacionado com a natureza social do homem. Somos seres em relação, diz-se. O romance questiona: e se ficarmos isolados? Se toda a sociabilidade humana desaparecer porque sou apenas um? A parede é uma metáfora para pensar o processo de hiperindividualização por que passava já, nos anos sessenta do século passado, a sociedade ocidental. Essa hiperindividualização significa, na prática, um corte com os outros, mesmo que com eles se conviva socialmente ou até na vida amorosa. O indivíduo, na sua afirmação radical, transporta a parede que o isola de todos os outros, os quais deixam de ter para ele uma existência real. O romance hiperboliza a experiência social de isolamento e torna visível aquilo que o hábito e a vida quotidiana ocultam. A estranha parede que separa a protagonista é o símbolo da parede que torna estranhos, para cada um de nós, qualquer outro ser humano.

A alteração no espaço, a limitação da liberdade de ir para além da parede, devolve, paradoxalmente, à protagonista uma liberdade radical. Toda a convenção social, toda a regra moral, toda a lei jurídica, tudo o que resulta do processo de regulação social, cuja finalidade é limitar as liberdades individuais naquilo que têm de danoso para os outros, desapareceu. Apenas a lei da natureza a limita. Essa experiência de uma liberdade absoluta tem o condão de, ao ver-se livre das regras sociais, a colocar perante os seus limites animais. Ela precisa de sobreviver, de organizar a vida não para e com os outros, mas para si e apenas consigo. Quando se elimina a convenção – que diminui e, por vezes, sufoca a nossa liberdade – o que descobrimos é a pura necessidade. Ela vai ter de aprender a trabalhar a terra, de cuidar da vaca que encontrou, do cão que herdou ou da gata que, na sua independência, usa a sua hospitalidade. O efeito paradoxal do romance é mostrar, sem nunca o afirmar, que a liberdade só existe em sociedade – nessa mesmo que nos coage e nos limita; fora dela, só encontramos a necessidade animal.

Se no romance o espaço se limitou, o tempo sofreu uma metamorfose. Ficar naquela situação e ter de sobreviver significa sair do tempo histórico e entrar num tempo cíclico, o tempo da natureza. O tempo histórico é linear: uma linha que vem do passado em direcção ao futuro, que é preenchida pelos acontecimentos da vida social da humanidade. É essa linearidade que conduz, por necessidade da própria razão humana, a colocar nesse passado um tempo mítico originário e, no futuro, uma qualquer ideia de fim da história. Tudo isso é agora evacuado pelos ritmos da natureza, com as suas épocas de sementeiras e de colheitas, com a sua dinâmica de um eterno retorno das mesmas tarefas. Não há história sem comunidade humana, sem o trágico da acção, sem a disputa interminável entre homens e comunidades.

Esta saída da história e a perda de sentido do calendário põem à protagonista um problema de referenciação temporal. Como se orientará, nesse seu novo mundo, no tempo? Há uma dupla estratégia de referenciação. A primeira é a da já referida ciclicidade da natureza, com os trabalhos necessários para assegurar a sobrevivência, segundo o ritmo das estações. A segunda é a escrita do diário como modalidade de consolidação da memória e de referenciação temporal. O romance é o diário da protagonista, o registo da sua existência enquanto exemplar único de uma espécie que parece ter-se extinguido. Pode pensar-se, na interpretação do romance, a escrita do diário de dois pontos de vista. Por um lado, como um acto de resistência ao desaparecimento da humanidade. Por outro, como o registo dos momentos finais dessa mesma humanidade. O mais plausível é pensar essa escrita dirigida a si mesma como um acto de resistência e um registo de apagamento, uma espécie de objecto que se poderá tornar um monumento, embora não exista ninguém para o ler. Um guia na temporalidade até à hora em que já não haverá qualquer ser que tenha consciência dessa temporalidade.

Mais do que o desaparecimento da sociabilidade humana e o confronto com a necessidade estrita da sobrevivência, numa situação em que os processos de cooperação desapareceram, o romance acaba por reforçar – na experiência do isolamento mais radical – a natureza social dos seres humanos. A protagonista cria uma comunidade com os animais à sua volta. O cão Lince, a vaca Bella, com o seu filho, a gata e as suas ninhadas. A comunidade – o viver com os outros – revela-se assim como inescapável. Desaparecidos os seres humanos, há que encontrar uma nova comunidade, para que a vida continue a ser possível. E é aqui que se revela uma das ideias centrais do livro. Essa comunidade assenta não na utilidade, mas no cuidado. A protagonista cuida dos seus animais não porque lhe sejam úteis, mas para os proteger. Isto permite repensar todo o romance como uma metáfora sobre a necessidade de substituir, nas relações humanas, o ethos da relação utilitária, que isola e coisifica as pessoas, por um ethos do cuidado, por um dever de atenção ao outro, mesmo que esse outro não tenha o rosto que esperamos.

sábado, 26 de abril de 2025

Liberdade e democracia

Ana Hatherly, Ruas de Lisboa, 1977 (Gulbenkian)

Ontem, julgo que numa iniciativa do Banco de Portugal, Pacheco Pereira afirmou que a liberdade chegou na tarde de 25 de Abril de 1974, mas que a democracia ficou claramente instaurada apenas na revisão constitucional de 1982. A distinção entre liberdade e democracia nem sempre é compreendida. Podemos ter liberdade – pelo menos em tese – sem termos um regime democrático. Podemos ter uma democracia sem termos liberdade. Aliás, são duas realidades que não raras vezes entram em choque. Essa era já uma preocupação do pensador político francês do século XIX, Alexis de Tocqueville.

É possível conceber uma sociedade onde não há um método de escolha dos governantes, mas na qual não existe censura, nem polícia política, nem perseguição por motivos ideológicos ou políticos. As pessoas são livres de fazer o que entenderem das suas vidas, inclusive são livres de criticar os detentores do poder, mas não têm o direito de escolher quem as deverá governar ou de participar nessa governação. É estranho para os nossos hábitos mentais, mas no conceito de liberdade individual não se inclui necessariamente o direito de escolher a governação.

Por outro lado, podemos conceber um regime democrático, onde existe o direito de participar na escolha dos governantes, mas em que a liberdade é restringida. A democracia pode ser uma ditadura da maioria, onde esta, legitimada pelo voto, diminui as liberdades da minoria ou certas liberdades individuais. É isso que se passa nas denominadas democracias iliberais: são formalmente democracias, mas as liberdades estão condicionadas.

Dizer que uma democracia é liberal não é o mesmo que dizer que é uma democracia representativa. Esta pode, através de representantes eleitos, limitar ou negar as liberdades individuais. Dizer que uma democracia é liberal significa que é democrática – depende do voto da maioria na escolha dos governantes –, mas que, em momento algum, as maiorias têm a capacidade de eliminar os direitos das minorias ou dos indivíduos.

O 25 de Abril, de facto, trouxe de imediato as liberdades; a democracia liberal foi uma lenta construção, que teve alguns percalços no caminho, em que os portugueses aprenderam a compatibilizar o voto maioritário com o respeito pelos direitos individuais e das minorias derrotadas nas urnas. É muito importante defender a democracia, mas não qualquer democracia. É importante defender um regime que seja capaz de compatibilizar a escolha por maioria popular dos governantes com a defesa dos direitos individuais, mesmo que estes não agradem, circunstancialmente, à maioria vencedora.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (10)

Ben Shahn, The Red Stairway, 1944

Mundo sem sombra nem sol,

dedilhado sobre a noite,

imperfeito como um pretérito,

o passado aceso ao meio-dia.

 

Abrem-se ali rugas no calcário

e escaras no portão descaído,

uma rosa no vestido rasgado,

e fresco, o hálito da invernia.

 

Vou por uma rua esburacada,

iluminada de malmequeres,

seixos, a caliça nas paredes.

 

Lugar sem frutos, a poalha

entre campos, as mãos caídas,

caídas ao zunir da varejeira.

 

[1993]

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Como morrem as democracias (3)


Nos quatro países que representam o núcleo duro da cultura europeia – Itália, França, Alemanha e Inglaterra –, os partidos de extrema-direita e de direita radical/populista têm agora mais intenções de voto, medidas em diversas sondagens, do que qualquer partido democrático.

No caso de Itália, esses partidos estão no governo. Em França, a distância entre o partido da senhora Le Pen e o do presidente Macron é demasiado significativa. Em Inglaterra e na Alemanha, o Reform UK e o AfD estão a começar a ultrapassar os grandes partidos tradicionais – isto, para não falar de países como a Holanda, a Áustria, a Eslováquia, a Hungria ou a República Checa.

O que impressiona em tudo isto é a impotência com que as forças democráticas assistem ao crescimento das intenções de voto naqueles que não prezam particularmente as democracias liberais. Nem o confrangedor exemplo vindo dos EUA, com a eleição de um amigo dessas forças, demove os eleitores de, paulatinamente, se entregarem nos braços de aventureiros.

A erosão das democracias liberais vem de trás; pode ser um processo relativamente longo, mas, a continuar assim, parece ser inevitável. Às forças demo-liberais parece faltar duas coisas: imaginação para repensar o modo de acção e, acima de tudo, vontade política para enfrentar os problemas que estão a conduzir os eleitores para fora da democracia liberal.

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Beatitudes (79) O espelho de água

Henry G. Peabody, Wing and Wing, 1889 
Ao reflectirem-se nas águas cintilantes, os pequenos barcos à vela tornam-se pássaros aquáticos. Voam ao deslizar pelo lago sonolento. Cantam velhas canções de marinheiros, palavras perdidas nos arcanos da memória, no poço mercurial de cada dia. A água é um espelho onde todas as metamorfoses são possíveis. Ao olhá-la, o viandante participa na secreta beatitude que a natureza esconde no alabastro da sua pele e no âmbar dos seus desejos.

sábado, 19 de abril de 2025

Ensaio sobre a luz (128)

Otto Scharff, Eifeltal, Eifeital Valley, 1904
A luz interrompe-se, e uma sombra projecta-se sobre a Terra. A desordem de todas as coisas encontra um abrigo e um princípio severo que, com a audácia dos construtores de mundos, fará do caos um cosmos e da sombra um sol fremente, sob o qual o silêncio se abre ao primeiro cântico matinal.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

O poder como punição


A tradição ocidental de reflexão sobre o fenómeno político fundamenta-se, por norma, nas grandes obras de Platão e Aristóteles. A estas devem-se acrescentar as de Maquiavel, em especial o Príncipe. No entanto, há uma outra fonte da cultura política ocidental que merece atenção. Trata-se do judaico-cristianismo. Num artigo anterior, explorou-se, do ponto de vista político, algumas passagens do capítulo 18 do Evangelho de João. Neste, dá-se um salto ao Antigo Testamento, ao capítulo 8 do livro primeiro de Samuel. Um dos mais notáveis textos de reflexão sobre o fenómeno político. Trata da transição de Israel do tempo dos Juízes, onde não havia um governo,  para a monarquia: a instauração do poder político.

Perante a corrupção dos juízes, é o povo que, por intermédio de Samuel, pede a Deus um rei. O pedido desagrada a Samuel e também a Deus, mas este ordena-lhe que escute a voz do povo. Antes, porém, Samuel deve adverti-lo sobre o custo da instauração de um poder político — e a lista de encargos é devastadora: impostos, conscrição, expropriação, servidão. Nada, contudo, demove os israelitas. Deus encerra o caso com uma fórmula lapidar: “Ouve a sua voz, e põe sobre eles um rei” — ou seja, alguém que os domine e oprima.

Deus dá ao seu povo um rei como quem dá uma severa punição. Todo o poder político é pensado, no texto,  como um castigo aos homens, castigo que os atingirá tanto na liberdade como na propriedade, ou mesmo na vida. Esse poder é o espelho onde se reflecte a maldade da espécie humana. Existe para a punir. O que o texto de Samuel nos conta é um processo onde os homens transitam, pelo seu próprio querer, de uma vida livre para a servidão. Enquanto a tradição grega vê o poder político como positivo, a tradição bíblica apresenta uma outra face desse poder: a face negativa, centrada na ideia de poder como penalidade.

Se se quiser compreender em profundidade as motivações que sustentam, por um lado, o liberalismo — na sua aspiração a reduzir o Estado ao mínimo — e, por outro, o comunismo e o anarquismo — unidos no propósito de suprimir esse Estado — então impõe-se uma leitura atenta do capítulo oitavo do primeiro Livro de Samuel. É ele que ensina que o poder político não é uma coisa natural aos homens, como pensava Aristóteles. Pelo contrário. É a corrupção humana, a prática do mal, que vai conduzir a espécie à busca de mecanismos de autopunição. As ideologias modernas são a recusa da punição – no caso do comunismo e do anarquismo. Ou uma tentativa da sua limitação – no caso do liberalismo. Há nelas, uma esperança de redenção do homem, mas, acima de tudo, existe uma leitura da política que se funda em Samuel.

terça-feira, 15 de abril de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (9)

Mario Sironi, Paesaggio urbano, 1927

Uma luz fria tece-se.

Cidade despojada,

grávida, olhos negros,

tantos os Outonos.

 

Sobre o rumor das ruas

fumegam despojos:

roubam à morte a cárie,

o óxido nas praças.

 

Nas ruas, poisam pombos,

o grito das varinas.

De súbito, um clarão

anuncia o Outono.

 

[1993]

domingo, 13 de abril de 2025

Nocturnos 128

Piet Mondrian, Landschap bij nacht, 1907-1908

A noite é uma paisagem dolorosa a dançar na solidão, o rasto do silêncio quando foge do ruído, a leitura de um livro de onde as palavras foram roubadas. Nela, dança-se na ignorância do mundo. O corpo move-se errante, em busca das estrelas para com elas tecer constelações e ocupar as horas. Até que, por um secreto desígnio, chegue a aurora e a dor se suspenda nos dedos afiados do dia.

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Uma pulsão de morte

Joseph Turner, Chuva, vapor e velocidade, 1844

O mundo anda entretido com a guerra das tarifas e as peripécias da política comercial dos EUA. Um entretenimento que passa pelo triste espectáculo em que se transformou a política norte-americana. Isso está a desviar a atenção das pessoas de um problema central para a sobrevivência da espécie. Todos os tímidos avanços que os EUA empreenderam para salvaguardar o planeta e assegurar um futuro para a espécie humana estão a ser destruídos em números circenses, onde um Presidente eleito se compraz em decisões movidas apenas por um fanatismo ideológico, idêntico aos fanatismos religiosos antigos e modernos. Agora foi a vez do limite de água que pode correr nos chuveiros (aqui). Os EUA tinham uma política de limitação da água que podia correr num chuveiro a 9,5 litros por minuto. Aquilo que os estudos mostram é que não apenas os 9,5 litros asseguram um duche de qualidade, como essa limitação ajuda as famílias a poupar e é um contributo importante para a defesa do meio ambiente e para enfrentar o problema da escassez de água. O limite foi abolido, com a justificação de tornar os chuveiros americanos grande outra vez. A actual administração americana está apostada em tornar a vida no planeta impossível, podendo dizer-se  que o seu papel não é apenas confirmar a decadência americana — como defende o antropólogo e historiador francês Emmanuel Todd —, mas o de ser um agente empenhado da destruição de um ambiente sustentável que permita um futuro para a nossa espécie. A eleição de governos como o que governa neste momento os EUA representa um sinal forte de que a espécie humana é habitada por uma pulsão de morte que, nos dias que correm, parece não ter capacidade de travar.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Como morrem as democracias (2)

Nicolas Poussin, The Plague os Ashdod, 1630

As democracias podem morrer de várias maneiras. Por exemplo, através de golpes de Estado — uma prática que, em tempos, era corrente, por exemplo, na América Latina. Aquilo de que se gosta menos de falar é, porém, da morte das democracias às mãos dos eleitores. Parece ser para aí que, paulatinamente, estamos a caminhar na Europa.

Dois casos deveriam merecer muita atenção daqueles que defendem a superioridade das democracias liberais sobre todos os outros regimes políticos. Em Inglaterra, onde, ainda há pouco, o Partido Trabalhista venceu folgadamente as eleições, encontra-se, neste momento, empatado em intenções de voto com o partido do populista Nigel Farage, o Reform UK — partido que tinha uma expressão residual no eleitorado. O caso mais dramático, porém, é o da Alemanha. A CDU, vencedora das últimas eleições, ainda não formou governo e já perdeu um número significativo de intenções de voto, que estarão a transferir-se para a extrema-direita da AfD.

Os eleitores europeus, perante a profunda complexidade da situação política internacional, parecem estar a voltar-se para velhas soluções que conduziram a Europa a duas guerras mundiais. É provável que o crescimento da extrema-direita europeia não venha a ter esse efeito dramático. Contudo, o crescimento dessa extrema-direita implicará o crescimento das velhas rivalidades, o que conduzirá as nações europeias à desunião política à irrelevância geopolítica. É nisso que tanto russos como americanos MAGA estão apostados, sem que os eleitores europeus pareçam estar preocupados com o assunto.

Sim, os eleitores também podem matar as democracias.


segunda-feira, 7 de abril de 2025

A Europa e os Estados-Nação

Numa conferência em Praga, proferida em Dezembro de 2018, o historiador norte-americano Timothy Snyder propõe uma visão da construção europeia em contracorrente com o discurso oficial. Este sublinha a emergência do projecto europeu como resposta aos conflitos intra-europeus, às duas guerras mundiais. Visaria pacificar a persistente discórdia entre Alemanha e França. O projecto europeu seria assim um desígnio voluntarista, quase um acto de benevolência, em que um conjunto, que se foi alargando, de Estados-Nação abdicou de parte da sua soberania a favor desse propósito de uma comunidade pacífica, civilizada e democrática. Snyder, porém, diz – e esse é um dos seus pontos fortes – que a premissa está errada. Esses Estado-Nação não existiam, o que existia eram impérios coloniais que perderam as suas colónias.

O projecto europeu é uma necessidade existencial para os Estados desses ex-impérios, onde se incluiu o português, que integram o projecto. Mais do que uma abdicação da soberania de Estados nacionais para as instituições europeias, o que se passa é outra coisa: é a União Europeia (UE) que assegura e torna possível a existência desses Estados. Sem ela, a existência desses Estados ficaria perigosamente comprometida. Sem a Europa, esses Estados estão condenados à irrelevância, mesmo ao desaparecimento. E isso percebe-se. Basta olhar para os grandes actores mundiais – EUA, China, Rússia, Índia – para compreender que mesmo os maiores países europeus, se isolados, não têm qualquer possibilidade de fazer parte do jogo político mundial, aquele onde se decide a vida do cidadão comum.

Se a visão de Snyder for correcta, e ela parece sólida, o crescimento, nos diversos países europeus, das forças nacionalistas, soberanistas e anti europeias é uma pulsão de morte. De morte, não apenas do projecto europeu, mas dos próprios Estados europeus, que existem ancorados na União. As dificuldades que a Inglaterra tem enfrentado desde o Brexit são um sintoma de que a visão de Snyder está correcta. Os europeus – em que só 50% se mostram agradados com a UE – parecem inclinados para essa autodestruição, muito desejada pela Rússia e, agora, pelas hordas MAGA capitaneadas por Trump, Musk e Vance. Se o projecto europeu resulta de uma necessidade existencial dos Estados que o compõem, então a sua destruição é, também, a destruição desses Estados. E é isto que as elites políticas europeias deveriam explicar muito claramente aos seus cidadãos. Esclarecer que o caminho mais rápido para destruição das nações é o nacionalismo levado ao extremo.

sábado, 5 de abril de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (8)

Romeo Mancini, Antibes, 1950

Dou-te em herança esta terra,

os prados de cinza e fogo,

os cavalos inclinados do coração.

 

Aprenderás na véspera do dia

a incendiar o Inverno,

a repartir a palavra que te deixo.

 

Ao suplicares o murmúrio da morte,

último assalto da vida,

descobrirás a cinza no coração.

 

[1993]



quinta-feira, 3 de abril de 2025

O duplo padrão dos eleitores


Os resultados eleitorais da Madeira são um sinal de uma tendência forte na sociedade portuguesa. A sensibilidade dos eleitores a casos de corrupção é muito mais vigorosa se os casos – ou as suspeitas – vierem da esquerda do que da direita. O actual Presidente do Governo Regional da Madeira, apesar da sua situação judicial, reforçou a sua votação e a sua posição política. Uma leve suspeita, por outro lado, caso seja num governo de esquerda, é suficiente para o fazer cair e para que o partido no poder seja penalizado duramente nas urnas. O mesmo se pode passar com o caso Montenegro. Não se trata de um problema judicial, mas de um conflito entre interesses privados e deveres públicos, em que o principal agente da crise política é o próprio Primeiro-Ministro, que conduziu a situação para que o governo caísse.

A estratégia de Montenegro está fundada numa convicção: o eleitorado é muito mais tolerante com a direita do que com a esquerda. Essa convicção leva-o à crença razoável de que os eleitores, no dia 18 de Maio, não o penalizarão pelos seus pecados; pelo contrário, reforçarão a sua força política. Aquele que desencadeou o processo, através de uma conduta pouco transparente, será, plausivelmente, o grande beneficiário da obscura situação que gerou. A esquerda corre o risco de sofrer uma ampla derrota nas urnas – não apenas o PCP, o BE e o Livre, mas também o Partido Socialista. Parece enigmático este duplo padrão com que os portugueses avaliam os dois lados do campo político, mesmo quando as políticas de esquerda e de direita são semelhantes.

Trata-se de um problema cultural. Existe uma espécie de ideia subliminar de que verdadeiramente legítimos são apenas os governos de direita. Quando a esquerda governa, isso é sentido como uma concessão temporária do povo; quando a direita governa, fá-lo como se ocupasse o poder naturalmente e por direito próprio. Isto não se passa apenas em Portugal. Uma coisa é a legitimidade constitucional; outra é a legitimidade ao nível do sentimento comum. Muito provavelmente, o problema tem a sua génese na Revolução Francesa. Apesar de vitoriosa, a sensação de ilegitimidade dos seus herdeiros nunca desapareceu. A esquerda é herdeira dessa Revolução, enquanto a direita acaba por se filiar, de algum modo, no regime deposto em 1789. Este é o pano de fundo onde se inscreve, ao nível popular, a maior tolerância para com a imoralidade da direita do que com a da esquerda, como se existisse uma mal disfarçada nostalgia do antigo absolutismo real e uma crença popular obscura de que qualquer governo de esquerda é ilegítimo.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Simulacros e simulações (72)

Júlio Pomar, Campinos, 1963

Simulam o vento a varrer a campina, simulam o trovão a ecoar na montanha, simulam os anjos em viagem de salvação. Também de si são simulacro, os campinos. Não lhes pertence nem a montada, nem as vestes, nem a vontade, nem a vida. Da sua realidade, nem a aparência lhes pertence.

domingo, 30 de março de 2025

Máximas (24)

Costa Pinheiro, O Pintor Ele-Mesmo, no Seu Espaço Poético, 1979 (Gulbenkian)  

Quando os poderes do mundo rugem e rodopiam, a sabedoria aguarda a hora, resguardando-se no silêncio e recolhendo-se na quietude.

sexta-feira, 28 de março de 2025

Comentários (28)

Frederick Sommer, Colorado River landscape, 1942

Ruído de cascalho logo pela manhã:
ecoando pelas ruas, ecoando
pelos pátios traseiros do sonho.
Durs Grünbein

Por vezes, o inferno irrompe no paraíso da manhã, naquele momento em que os sonhos cavalgam na semiobscuridade do sono e abrem uma porta para que a consciência espreite para as estranhas paisagens que se escondem nessa pátria longínqua que existe em nós e que, por comodidade da linguagem ou por preguiça da denominação, chamamos inconsciente. Então, a ordem burocrática da cidade faz-se ouvir e, ainda a aurora está presa no horizonte, e já o matraquear do zelo pelo mundo espalha o cascalho incendiado do ruído pelas ruas. Perfura o betão impotente das paredes, para ressoar na cabeça de quem sonha e, num primeiro instante, julga ter caído no precipício de um pesadelo.

quarta-feira, 26 de março de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (7)

Fernando Calhau, sem título, #774, 1967 (Gulbenkian)

Uma palavra de enxofre e sal,

o sonho trôpego que caminha.

Um touro de olhos azuis,

brancos na escuridão da colina.

 

O horizonte abre-se, é um lago.

Solfejam na rouquidão vozes:

mulheres em assombro

sonham o súlfur da partida.

 

[1993]