Julião Sarmento, The house with upstairs in it, 1996 |
da vida luminosa ao inferno
com rudes mãos a alma se te
prende
na morte ao incêndio do Inverno
em dissonância sonora
noite pela terra fora
[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]
Friedrich Christian Reinermann, Aldeia nas montanhas junto a um riacho |
Odilon Redon, O Buda, 1896 |
Nuno Cera, Snapshots 4, 1997 |
Mário de Oliveira, Paisagem, 1973 (Gulbenkian) |
Maria Helena Vieira da Silva, Ermitages (Bleu Tressé), 1971 (Gulbenkian) |
Ernst Ludwig Kirchner, Accordion Player by Moonlight, 1924 |
Não vale a pena comentar o caos em que as decisões de Marcelo Rebelo de Sousa lançaram o país. Também não vale a pena salientar que o nosso sistema semipresidencial é um problema, devido aos poderes arbitrários dos Presidentes da República. Vale a pena, porém, olhar para o país e para aquilo que estas eleições mostram. Em primeiro lugar, o tradicional centro político (CDS, PSD e PS), embora maioritário no país, já não chega aos 60%. Em 2022, os três partidos somados ultrapassavam ligeiramente os 70%. Uma radicalização que atingiu duramente os resultados do PS, mas que também paralisou o par CDS e PSD, que, como AD, têm mais ou menos a mesma percentagem de votos que em 2022. A rasura do centro é um preocupante sinal de degradação da vida democrática.
A paisagem política mudou radicalmente com os 18% do Chega. O seu crescimento exponencial é outro dado da radicalização do país. Não apenas por ser um partido populista, mas pelo facto de conseguir atrair o eleitorado não tendo qualquer consistência discursiva ou de atitude. Se compararmos o Chega com o Vox espanhol, percebemos de imediato uma diferença significativa. O partido espanhol é altamente estruturado, tanto do ponto de vista ideológico como do comportamento das suas lideranças. O partido português chega a uma votação significativa apenas fundado nas diatribes de André Ventura, no comportamento desrespeitoso perante os adversários políticos, as instituições democráticas da República e os grandes valores do 25 de Abril. Na prática, os eleitores não fazem ideia de quais são as políticas substantivas do Chega. Mesmo assim votam nele, como se houvesse um desejo de destruição, a começar na destruição do PSD – um dos objectivos de Ventura – e a seguir da democracia tal como a entendemos.
Outro sinal da radicalização da nossa
sociedade é a erosão do Partido Comunista. É preciso compreender o papel
central que este partido tem tido no equilíbrio do sistema político. Não tanto
no jogo parlamentar, embora também aí tenha tido papel de relevo, mas no jogo
social, onde o papel do PCP nos sindicatos tem sido central para evitar
contestações anárquicas do regime e tem servido de escape aos sentimentos
negativos que podem atingir parte da população. Neste momento, existem já
movimentos de contestação inorgânicos, que não obedecem a qualquer
racionalidade política, os quais são uma ameaça para a saúde da democracia. A
erosão parlamentar do PCP e a do movimento sindical, que dificilmente será
travada, é um outro sintoma de degradação da paisagem política no momento em
que a transição à democracia faz 50 anos.
Umberto Boccioni, Agitate Crwod Surrouding a High Equestrian Monument, (1908) |
Xaime Quessada, La guerra, 1967 |
Paul Signac, Women at Well, 1892 |
Camille Pissaro - Boulevard Montmartre - Night, 1897 |
A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David. M. Estlund afirma “A ideia de democracia não é naturalmente plausível”. Recentemente, numa antecipação da sua biografia a sair em Outubro, o senador republicano Mitt Romney afirmava que “A experiência da América com a autogovernação está em luta contra a natureza humana”. De facto, a democracia liberal (a ideia de autogovernação) parece não estar inscrita na nossa natureza. Uma visão próxima de Kant poderá argumentar que a democracia liberal é um projecto da razão para domesticar a nossa animalidade. Não descartando a tese kantiana, prefiro uma outra, a da relação íntima entre democracia liberal e cristianismo.
O cristianismo na sua natureza mais fundamental é uma religião adversa à natureza humana. Se olharmos para outras religiões percebemos que nascem daquilo que os homens são. O cristianismo, pelo contrário, propõem uma visão moral que confronta a nossa natureza, que exige que a superemos. Uma ética fundada em dar a outra face ou em amar os inimigos está em viva contradição com a natureza humana. O cristianismo é um programa de luta contra as nossas pulsões mais vivas, como não se cansou de denunciar Nietzsche. A democracia liberal resulta do próprio cristianismo, mesmo se igrejas cristãs se lhe opuseram. As correntes políticas democráticas – conservadorismo, liberalismo e socialismo – são emanações de diversos aspectos que estavam unidos no cristianismo (a tradição, a liberdade do cristão e o livre-arbítrio, a igualdade perante Deus). A democracia herdou, da sua fonte cristã, esse aspecto contra-natura, de que falam Estlund e Romney.
As democracias modernas liberais tremem porque o cristianismo com os seus imperativos contra-natura está a evaporar-se da consciência dos homens ocidentais, mesmo daqueles (ou em primeiro lugar desses) que se dizem cristãos ortodoxos e advogam um fundamentalismo tradicionalista. A democracia liberal, com as suas regras de reconhecimento do adversário político e da admissão de que ele tem direito a governar, só é possível num mundo onde dar a outra face e amar os inimigos faça sentido e condicione as consciências, mesmo a dos não crentes. Quando isso desaparece, como está a desaparecer, quando a sociedade se converte a um neopaganismo como se está a converter, e como se converteu na Itália fascista e na Alemanha nazi, a democracia liberal perde o seu fundamento e entra na crise a que assistimos.