domingo, 31 de março de 2024

XIII L’escalier du diable

Julião Sarmento, The house with upstairs in it, 1996

infinito o dia negro ascende

da vida luminosa ao inferno

com rudes mãos a alma se te prende

na morte ao incêndio do Inverno

 

em dissonância sonora

noite pela terra fora


[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]

sexta-feira, 29 de março de 2024

Meditações melancólicas (93) Melancolia rural

Friedrich Christian Reinermann, Aldeia nas montanhas junto a um riacho

Não serão muito aqueles que não trazem em si uma estranha melancolia proveniente de um sentimento de amor ao mundo rural. Cristalizou-se na imagem desse mundo a pureza das coisas inocentes e a perfeição daquilo que permanece perto do ardor da terra. Muitas daqueles que sofrem dessa estranha patologia, pois de patologia se trata, nunca viveram ou, tão pouco, tiveram contacto com esse universo que o tempo aniquilou. Serão, por certo memórias ancestrais que se construíram através de narrativas familiares ou de imagens que proliferam um pouco por todo o lado. Há quem se atreva a dizer que essa melancolia não é outra coisa senão um signo de uma saudade, a do paraíso perdido. E, de certo modo, terá razão, pois no cerne de toda a melancolia existe um sentimento de perda e um anseio de plenitude.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Comentários (17)

Odilon Redon, O Buda, 1896

 Como se escutasse. Silêncio: distâncias belas...
Detemo-nos, deixando de as ouvir.
Rainer Maria Rilke

Um enigma envolve aquelas que deixamos de ouvir. Talvez sejam vozes femininas, as de uma mãe que chama por nós na terra precária da infância, as de um primeiro amor cujo rosto, então amado, ficou esquecido no desvão da adolescência, as de uma desconhecida que deixou pairar na atmosfera o timbre das suas palavras e o visco dos seus olhos. Todas essas vozes nos abandonaram, refugiaram-se na distância do passado, ainda assim belas no cerco da memória. Ou talvez não sejam vozes aquilo que pede a nossa escuta e exige o silêncio. Será um outro mundo no qual já não habitamos, aquele em que a Terra era centro do cosmos e em torno dela havia esferas etéreas incrustradas com estrelas fixas que rodopiavam na noite para nos iluminar o caminho. É a sua música que, na distância, nos chama ao silêncio e como budas nos detemos perante a sua voltear eterno à espera da iluminação.

segunda-feira, 25 de março de 2024

Nocturnos 116

Nuno Cera, Snapshots 4, 1997

Ouve-se os comboios ranger nos carris, enquanto a noite desce e enche de mistério a estação, esse lugar onde se espera a melancolia da partida ou se aguarda, no fulgor da alegria, quem chega. Tomados pelo véu nocturno, esses lugares inóspitos e insalubres metamorfoseiam-se e são o cenário de um conto de fadas ou o palco de um drama de amor. 

sábado, 23 de março de 2024

XII Entrelacs

Frédéric Bazille, Reclining Nude, 1864

as tranças que desfaço em teus cabelos

são moinhos de erva seca ao vento

enrolam-se nas mãos brancos novelos

se em ti meu corpo cai suave e lento

 

um sopro de luz e mágoa

           salta e dança na fria frágua 

[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]


quinta-feira, 21 de março de 2024

Ensaio sobre a luz (115)

Mário de Oliveira, Paisagem, 1973 (Gulbenkian)

Olha-se uma paisagem e fica-se perdido nos elementos que a compõem, as características geográficas do território, a peculiaridade da flora, a dimensão do relevo ou a sua ausência, a presença ou a falta de água. Nessa alienação no visível oblitera-se a essência da paisagem, a luz que a ilumina e a configura, que a põe disponível para o olhar e permite descobrir os seus enigmas e os segredos que a habitam.

terça-feira, 19 de março de 2024

Simulacros e simulações (61)

Maria Helena Vieira da Silva, Ermitages (Bleu Tressé), 1971 (Gulbenkian)

Simule-se a solidão, que ela venha pela véspera do rio ou pela aurora da lezíria. Dentro dela, há um nome a arder, palavras trançadas no azul da luz ou no vermelho da escuridão. Depois, erga-se uma casa de colmo e o solitário encontrará, no simulacro do abandono, o nome que lhe deram e o destino que trazia no fundo do coração ou a algibeira vazia onde tinha todos os haveres.

domingo, 17 de março de 2024

Beatitudes (66) Música da noite

Ernst Ludwig Kirchner, Accordion Player by Moonlight, 1924

Os sulcos da noite abrem-se à luz da Lua. Tudo o que dia manifesta, vinda a escuridão, transforma-se em segredo e enigma. Então, um homem senta-se na humidade do chão e das suas mãos sai uma música que sobe suavemente às esferas celestes. Tomadas pelo mistério da hora, as mulheres sentam-se extáticas e contemplam a invisível linha do horizonte, enquanto o luar e anoite entram pelos seus olhos e a música as invade, abrindo o coração para a alegria desmedida das noites eternas.

sexta-feira, 15 de março de 2024

A degradação da paisagem política

 

Não vale a pena comentar o caos em que as decisões de Marcelo Rebelo de Sousa lançaram o país. Também não vale a pena salientar que o nosso sistema semipresidencial é um problema, devido aos poderes arbitrários dos Presidentes da República. Vale a pena, porém, olhar para o país e para aquilo que estas eleições mostram. Em primeiro lugar, o tradicional centro político (CDS, PSD e PS), embora maioritário no país, já não chega aos 60%. Em 2022, os três partidos somados ultrapassavam ligeiramente os 70%. Uma radicalização que atingiu duramente os resultados do PS, mas que também paralisou o par CDS e PSD, que, como AD, têm mais ou menos a mesma percentagem de votos que em 2022. A rasura do centro é um preocupante sinal de degradação da vida democrática.

A paisagem política mudou radicalmente com os 18% do Chega. O seu crescimento exponencial é outro dado da radicalização do país. Não apenas por ser um partido populista, mas pelo facto de conseguir atrair o eleitorado não tendo qualquer consistência discursiva ou de atitude. Se compararmos o Chega com o Vox espanhol, percebemos de imediato uma diferença significativa. O partido espanhol é altamente estruturado, tanto do ponto de vista ideológico como do comportamento das suas lideranças. O partido português chega a uma votação significativa apenas fundado nas diatribes de André Ventura, no comportamento desrespeitoso perante os adversários políticos, as instituições democráticas da República e os grandes valores do 25 de Abril. Na prática, os eleitores não fazem ideia de quais são as políticas substantivas do Chega. Mesmo assim votam nele, como se houvesse um desejo de destruição, a começar na destruição do PSD – um dos objectivos de Ventura – e a seguir da democracia tal como a entendemos.

Outro sinal da radicalização da nossa sociedade é a erosão do Partido Comunista. É preciso compreender o papel central que este partido tem tido no equilíbrio do sistema político. Não tanto no jogo parlamentar, embora também aí tenha tido papel de relevo, mas no jogo social, onde o papel do PCP nos sindicatos tem sido central para evitar contestações anárquicas do regime e tem servido de escape aos sentimentos negativos que podem atingir parte da população. Neste momento, existem já movimentos de contestação inorgânicos, que não obedecem a qualquer racionalidade política, os quais são uma ameaça para a saúde da democracia. A erosão parlamentar do PCP e a do movimento sindical, que dificilmente será travada, é um outro sintoma de degradação da paisagem política no momento em que a transição à democracia faz 50 anos.

quarta-feira, 13 de março de 2024

XI En suspens

Stipo Pranyko, Cuadro com remo, 1998

murmúrios no vento andrajoso

suspendem-se ao tocar leves o chão

são palácios de gelo frio rugoso

mal os vejo na luz da outra mão

 

estrela no céu flutua


deusa breve branca e nua


[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]

segunda-feira, 11 de março de 2024

A tal maioria sociológica de direita

Umberto Boccioni, Agitate Crwod Surrouding a High Equestrian Monument, (1908) 
Um dos comentadores da SIC, daqueles que passam por independentes, dizia, não sem enlevo, que agora há no país uma maioria sociológica de direita. E isso justificará, por certo, que se realizem as políticas que ele, comentador, deseja. Contudo, há um erro fundamental na sua apreciação. Não existe qualquer maioria sociológica de direita. Existe, sim, uma maioria eleitoral de direita, uma maioria significativa, mas, como todas as maiorias eleitorais, meramente conjuntural. 

Imaginemos um programa como aquele que Passos Coelho tinha para a sua segunda legislatura, caso tivesse uma maioria no parlamento. Um programa que a Iniciativa Liberal, por certo, apoiaria com entusiasmo. O PSD e CDS apoiariam, mas com pouco entusiasmo. Imaginará o comentador da SIC que a maioria das pessoas que votaram no Chega suportaria esse tipo de política? Por certo haverá gente, entre os quadros recrutados na IL e na área da AD, que aplaudiria uma política dessas, mas a multidão votante do Chega, mal percebesse a realidade dessas políticas, logo se desligaria do partido de Ventura, caso este se decidisse apoiar aquilo com que o nosso comentador sonha. É pouco plausível que exista, no país, uma maioria sociológica disposta a apoiar os sonhos do que se convencionou chamar neoliberalismo.

sábado, 9 de março de 2024

O progresso moral da humanidade (16)

Xaime Quessada, La guerra, 1967

A guerra é o ofício do ódio abstracto. Matam-se pessoas não porque se odeiem pessoalmente, mas porque foi prescrito que se devem matar, pois estão ao serviço do inimigo. Aqueles que podem morrer pela nossa acção ou aqueles que podem matar-nos são apenas desconhecidos, os quais, a mais das vezes, receberíamos em casa e com eles, a partir de certa altura, partilharíamos a mesa e as confidências. Na verdade, os soldados nunca matam o seu verdadeiro inimigo, o qual pode estar tanto no outro lado da trincheira como do seu lado, mas um igual, por norma um inocente que chegou ali tão espantado quanto ele. Será um enigma o facto de os homens, aqueles que foram investidos na função de combatente, não se recusarem a entrar num jogo em que nada têm a ganhar e tudo a perder. O que os atrairá nesse ódio abstracto que lhes obnubila o juízo moral?

quinta-feira, 7 de março de 2024

Cadernos do esquecimento 53 Duplicar a vida

Paul Signac, Women at Well, 1892

Dever-se-ia anotar toda a vida, fazer o registo minucioso do que se foi vendo e ouvindo, dos grandes acontecimentos e das trivialidades de cada dia, dos actos e das omissões. Fundamentalmente, das palavras que se foram trocando, as ditas e as escutadas. Ter-se-ia, então, duas vidas, a vida vivida no mundo da vida e a vida escrita. Uma seria turbulenta; outra, serena com a serenidade que a escrita traz ao espírito que luta contra o esquecimento. Que sei eu das mulheres que, na infância longínqua, dirigiram-se, com os seus cântaros de barro avermelhado, ao poço, onde uma roldana cantava, enquanto a corda subia e descia? Apagaram-se, não sei o seu nome, nem quem foram. Puras sombras raptadas para dentro de um caderno de folhas em branco, onde se acumula os vestígios de tudo o que foi tomado pelas hordas do esquecimento.

terça-feira, 5 de março de 2024

Nocturnos 115

Camille Pissaro - Boulevard Montmartre - Night, 1897

A noite dos boulevards é uma lança de luz contra a escuridão dos céus. Os anjos, confusos, não sabem se ali é noite pontilhada de luzes ou se é dia rodeado de escuridão. Sentam-se nos telhados e olham atónitos o mover-se das onda humanas, naquele espaço onde a paisagem nocturna se mascara de dia, naquelas horas que a perplexidade os afasta da missão de cuidar dos homens.

segunda-feira, 4 de março de 2024

X Der Zauberlehrling

Luis Roibal, Aventador, 1952

suave cântico de espuma azul

onde te escondes se por nós não passas

nas pesadas montanhas mais ao sul

ou no rio lêvedo de pó e garças

 

searas de pedra dura

          crescem na noite mais pura 

[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007] 

sábado, 2 de março de 2024

A crise das democracias liberais

A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David. M. Estlund afirma “A ideia de democracia não é naturalmente plausível”. Recentemente, numa antecipação da sua biografia a sair em Outubro, o senador republicano Mitt Romney afirmava que “A experiência da América com a autogovernação está em luta contra a natureza humana”. De facto, a democracia liberal (a ideia de autogovernação) parece não estar inscrita na nossa natureza. Uma visão próxima de Kant poderá argumentar que a democracia liberal é um projecto da razão para domesticar a nossa animalidade. Não descartando a tese kantiana, prefiro uma outra, a da relação íntima entre democracia liberal e cristianismo.

O cristianismo na sua natureza mais fundamental é uma religião adversa à natureza humana. Se olharmos para outras religiões percebemos que nascem daquilo que os homens são. O cristianismo, pelo contrário, propõem uma visão moral que confronta a nossa natureza, que exige que a superemos. Uma ética fundada em dar a outra face ou em amar os inimigos está em viva contradição com a natureza humana. O cristianismo é um programa de luta contra as nossas pulsões mais vivas, como não se cansou de denunciar Nietzsche. A democracia liberal resulta do próprio cristianismo, mesmo se igrejas cristãs se lhe opuseram. As correntes políticas democráticas – conservadorismo, liberalismo e socialismo – são emanações de diversos aspectos que estavam unidos no cristianismo (a tradição, a liberdade do cristão e o livre-arbítrio, a igualdade perante Deus). A democracia herdou, da sua fonte cristã, esse aspecto contra-natura, de que falam Estlund e Romney.

As democracias modernas liberais tremem porque o cristianismo com os seus imperativos contra-natura está a evaporar-se da consciência dos homens ocidentais, mesmo daqueles (ou em primeiro lugar desses) que se dizem cristãos ortodoxos e advogam um fundamentalismo tradicionalista. A democracia liberal, com as suas regras de reconhecimento do adversário político e da admissão de que ele tem direito a governar, só é possível num mundo onde dar a outra face e amar os inimigos faça sentido e condicione as consciências, mesmo a dos não crentes. Quando isso desaparece, como está a desaparecer, quando a sociedade se converte a um neopaganismo como se está a converter, e como se converteu na Itália fascista e na Alemanha nazi, a democracia liberal perde o seu fundamento e entra na crise a que assistimos.