quarta-feira, 24 de abril de 2024

Silvina Ocampo, A Promessa

 

A escritora argentina Silvina Ocampo (1903-1993) apenas escreveu um romance, A Promessa, que, aparentemente, deixou inacabado, tendo sido publicado postumamente. Começou a escrevê-lo em 1960, mas a certa altura a doença ter-se-á intrometido no projecto. A edição portuguesa, da responsabilidade da Antígona, data de 2023, com tradução de Helena Pitta. A obra é, em aparência, uma exploração da natureza fluida tanto da vida como da memória e é desencadeada por uma queda, essa situação mitológica que abre o horizonte onde se desenrola a vida e a morte. Trata-se de uma queda prosaica da narradora e protagonista, da qual não se sabe o nome e pouco da sua situação. No entanto, a essa queda corresponde uma salvação, da qual se suspeita a intermediária, mas não o modo. Quando se deslocava, num transatlântico, para a cidade do Cabo, para se reunir com a parte menos enfadonha da minha família, ao debruçar-se sobre a amurada do navio, caiu ao mar, sem que ninguém a visse. O livro é o resultado de uma promessa a Santa Rita, a das causas impossíveis: Não esqueci o pormenor desta atitude quando lhe fiz a promessa de, caso me salvasse, escrever este livro e de o terminar até ao dia do meu próximo aniversário.

O romance começa com o problema da narradora acerca da possibilidade de publicar o texto, interrogando-se sobre que editora o iria publicar. Isso só seria possível se acontecesse um milagre e ela acredita em milagres. Esta preocupação é o sinal de que o impossível tinha já acontecido. Apesar de ter caído ao mar sem que ninguém desse por isso, ela ali estava preocupada com a publicação e recorrendo mais uma vez aos serviços da Santa Rita. A inverosimilhança da situação narrada, a da salvação de alguém que cai em alto-mar sem que ninguém dê por isso, é contrabalançada com o recurso à intervenção milagrosa de uma santa que tem por missão advogar as causas perdidas. A promessa é o próprio livro, um livro muito especial, um dicionário de recordações às vezes vergonhosas, humilhantes. Não se pense, todavia, que se trata de uma confissão, pois a narradora não tem vida própria, apenas sentimentos: As minhas experiências não tiveram importância nem ao longo da vida nem sequer à beira da morte; a vida dos outros, pelo contrária, torna-se minha. Não é uma confissão, mas um relato de memórias de outros.

Perdida no oceano, vendo o navio a afastar-se, decide nadar e enquanto nada, para não se deixar atrair pelo canto de sereia da morte, deixa-se levar por um itinerário de recordações, uma modalidade de resistência ao sono, uma espécie de itinerário que, não sem ironia, também aconselho aos presos, aos doentes que não se conseguem mexer ou os desesperados à beira do suicídio. A memória é então uma modalidade de resistência à inacção e não há maior inacção do que a morte, morte que a cercava por todos os lados e que, segundo uma visão racional, seria mais do que certa. Existe uma confluência salvífica: a intercessão de Santa Rita e o continuado exercício da reminiscência. Essa memória, plasmando a nossa corrente de consciência, é feita de diversas narrativas, algumas mais complexas e com trama romanesca, outras como meros apontamentos, histórias incoadas, mas que não se desenvolvem. Assim, como nos repetimos, também a memória da nadadora à beira da morte se repete, mas ao repetir-se altera ligeiramente o que tinha contado. Um dicionário de recordações, com algumas entradas quase iguais a outras, mas que todas elas poderiam dar lugar a um exercício narrativo mais amplo e complexo, contos, novelas e romances, o que estaria, porém, em contradição com a situação presente daquela que se entrega a essas recordações.

A sucessão de recordações e a luta da protagonista pela vida, que se mistura na narrativa memorial, permitem pensar na relação entre duas instâncias temporais, o passado e o presente. O presente é vivido no fio da navalha, sempre sob a ameaça de haver um corte que impedirá que o futuro se torne presente. O que permite resistir à morte é a reminiscência do passado. O presente é sempre um buraco vazio e precisa de ser preenchido pelos produtos da memória ou da expectativa. Numa situação de morte iminente, a expectativa de um futuro parece impossível e o que pode alimentar e dá combustível à luta do presente é o material proveniente do fundo da memória. A questão, porém, é um pouco mais complexa, pois aquilo que está em jogo não é a aventura vivida no oceano, mas a aventura de escrever e publicar o livro prometido a Santa Rita. Sou analfabeta. Como conseguiria publicar este texto? Que editora o receberia? Creio que seria impossível, a menos que acontecesse um milagre. Acredito em milagres. O perigo não é morrer afogada, desse, de modo inexplicado, ter-se-á livrado, mas o de cumprir a promessa feita a santa Rita, isto é, escrever e publicar o livro.

O que se revela, então, na ficção de Silvina Ocampo é uma analogia entre lutar pela vida em alto-mar e o trabalho de escrever. A arte literária – toda a arte, porventura – é o resultado de uma queda do artista. A escrita é o exercício de natação que o mantém à tona de água e é alimentado pela memória, pelas histórias acumuladas que são um penhor de salvação. O romance é uma meditação sobre a arte romanesca, na qual todo o artista é, em última instância, um analfabeto que tem de recorrer, através de uma promessa, à intercessão de uma santa das causas impossíveis, para que a obra seja realizada e aceite. Toda a obra de arte é uma causa impossível que se tornou possível pelo milagre. Só se torna artista aquele que acredita em milagres, no milagre da sua própria arte que se consuma na obra realizada. Há, no romance de Ocampo, uma fenomenologia da arte literária marcada por três instâncias. A da queda no desejo de criar (em analogia com a queda da amurada do navio), a da promessa que marca o compromisso de escrever (o exercício de natação em alto-mar) e a do milagre da realização da obra (a salvação da morte iminente). São cem páginas de um inteligente jogo de analogias.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

XIVa Coloana fará sfârsit

Artur Bual, Hoje VI, 1965 (Gulbenkian)

querer que morte e vida se apaguem

e o tempo de tão rápido se cale

nada é verdadeiro só imagem

onde o bem vejo sei oculto o mal

 

voa para longe da terra

o verbo que tudo encerra


[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]

sábado, 20 de abril de 2024

Família tradicional e luta do bem contra o mal

 

A publicação do livro Identidade e FamíliaEntre a Consistência da Tradição e os Desafios da Modernidade, apresentado por Passos Coelho, gerou uma inusitada efervescência, o que foi uma vitória para os organizadores desta obra colectiva. As leituras críticas incidiram na ordem política e na ordem dos costumes. Na primeira, o detonador foi a pessoa escolhida para a apresentação e também o que ela disse. Na segunda, foram as considerações feitas sobre a chamada família tradicional e o papel da mulher. Neste caso, são relevantes as intervenções de Paulo Otero, um dos coordenadores e também autor de um dos textos. Vale a pena comentar dois excertos da Introdução, um texto dos coordenadores que dá sentido ao conjunto publicado.

A dado passo diz-se: “De todas as sociedades humanas, a família é a única natural, universal e intemporal. Nasceu com o Homem e existe antes do Estado. Não foi criada cientificamente, não resulta de um qualquer legado jurídico, não foi imposta por acto administrativo, não germinou fruto de uma qualquer ideologia, não é o resultado de meras circunstâncias ou contingências históricas.” O interessante não é o que se diz, mas o que se oculta. Esconde-se que, na História da humanidade, a família nem sempre significou a mesma coisa. Esconde-se que em diferentes espaços culturais de hoje existem diferentes tipos de famílias tradicionais, que não se confundem com as famílias tradicionais que os autores defendem. Negam, por outro lado, uma evidência: qualquer forma de família é um produto cultural e não apenas uma emanação uniforme da natureza, como qualquer antropólogo lhes explicaria. Os autores partem de uma falsificação da realidade e não de uma análise credível da família.

A segunda citação revela o perigo que se esconde neste discurso: “Lutar (sic) pelo bem deixou há muito de constituir notícia, não dá audiências, nem abre noticiários. Já o mal sequestrou a sociedade que o consome em doses crescentemente acrescidas”. Estamos perante uma visão maniqueísta da realidade social e moral. Os autores estão do lado do bem, são os seus representantes, enquanto os que pensam de outro modo estão do lado do mal de cuja realidade não parecem duvidar. Esta visão, religiosamente herética (substancializa o mal e não o vê como privação de bem), tem uma terrível tradução política. Deixa de haver adversários políticos, mas inimigos, aos quais, em nome do bem supremo que se representa, se pode fazer o que se entender. Estes católicos tradicionais têm uma visão da família, da sociedade e do mundo moral muito tradicional, mas muito pouco caritativa, isto é, muito pouco católica.

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Nocturnos 117

Antoni Guansé Brea, Nocturne, 1992

Noite a transbordar de noites, um delírio de veludos escurecidos  e de sedas obscurecidas pelo trânsito inquieto da Lua. Nada resplandece na púrpura da escuridão. No céu, as estrelas apagaram-se e nenhum sol veio dardejar no horizonte. Eis a hora rude onde a vida em delírio entra no alvéolo do abismo.

terça-feira, 16 de abril de 2024

Comentários (18)

João Queiroz, sem título, 2004

esferas dentro de esferas
- nada se via
escurecido tudo vermelho
Manuel Rodrigues

Suspende-se a radiação dentro das esferas, a luz coagulada não se desloca e, se olhos houver, ela não os tocará e serão cegos. A cegueira é um ofício feito de recusas, um suspiro que se deixa cair, a arte de quem, suspensa a visão, se entrega ao mar vermelho onde tudo se torna indistinto. Dentro das esferas, outras esferas transportam nelas essa cegueira vivaz, feita de ausência de radiações e de olhos imóveis, impotentes para desbravarem o caminho que os levará ao ponto onde a luz ficou retida, numa condensação inquietante, numa recusa de brancura, numa prisão escurecida pelo infinito fulgor do vermelho.

domingo, 14 de abril de 2024

Beatitudes (67) Vida mediana

Edward Arning, Aufnahmen von Dr. Ed. Arning in Hamburg, 1901

A felicidade será o resultado de um exercício de pequenas coisas. Nada de grandes gestos, nem grandes palavras, tão pouco escandalosas omissões. Basta sentar-se e folhear uma revista ou um jornal, talvez um livro. Trocar as paixões por uma calma quase contemplativa, deixar que as coisas que nos rodeiam floresçam lentamente sem os nossos imperativos. Aprender a lidar com o tempo como se lida com um rio de águas traiçoeiras. Ali, nessa vida mediana, um contentamento nasce e afirma-se pois onde não existe a inclinação para a grandeza também não há lugar para grandes decepções, e nada torna mais infeliz uma pessoa do que as grandes decepções.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Ensaio sobre a luz (116)

Mário de Oliveira, Paisagem de Castela III, 1966 (Gulbenkian)

Exposta à inclemência da luz, a terra, como uma virgem eterna, seca lentamente. Desenham-se rugas, as cores juvenis fenecem impiedosamente e a vida esvai-se na ausência de uma sombra revigorante. Em toda a luz se esconde um ponto negro e mortal.

quarta-feira, 10 de abril de 2024

XIV Coloana infinita

William Turner, Sun Rising Through Vapor, Fisherman Cleaning and Selling Fish, 1807

se o sol entre nuvens já desponta

espelho onde todos se remiram

cansada esvoaça a ave tonta

pois da árvore a frágil casa tiram

 

tudo é pequeno e sem fim

           grande só a morte em mim 

[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Simulacros e simulações (62)

Fernando Calhau, sem título #481, 1980 (Gulbenkian)

O olhar indeciso suspende-se sobre a maré de carvão grafitada na brancura da página. O coração hesita, os olhos confessam não saber se, na ondulação simulada, se vê a agitação do mar ou o devaneio de uma seara soprada pelo vento. Só a escuta abre o corpo para o simulacro do caos que transpira sob a ordem apolínea inventada pelo desejo do coração, pela gramática do olhar.

sábado, 6 de abril de 2024

As eleições e o triunfo do pensamento mágico

 

Existe, em Portugal, uma franja pequena do eleitorado que quer, deliberadamente, destruir a democracia, não suporta os regimes liberais, sonha com o retorno ao autoritarismo. Ao votar Chega, fá-lo racionalmente. Contudo, a explosão do eleitorado do partido de André Ventura não se explica por esse tipo de eleitores. Têm sido adiantadas múltiplas explicações. Por norma, baseadas na suposta má conduta dos partidos do sistema (sic), o que teria gerado uma onda de insatisfação no eleitorado. A questão é mais funda. Que respostas têm estado disponíveis, do ponto de vista político, para a pergunta: como posso viver melhor? Por um lado, a resposta da esquerda tradicional: a luta colectiva, a solidariedade entre pessoas, gerará para cada uma essa vida melhor. Por outro, a da direita democrática tradicional: és livre, aposta em ti, a vida melhor depende do teu mérito. As duas respostas estão assentes na acção e no esforço.

A votação no Chega é a derrota destas duas respostas. Os insatisfeitos não apreciam o esforço das lutas colectivas, nem reconhecem que a sua situação esteja ligada ao seu mérito ou à falta dele. Crêem que a sua situação se deve aos políticos tradicionais, que são diabolizados. Está-se já no campo do pensamento mágico. A solução da minha insatisfação está, não no esforço colectivo ou individual, mas em alguém, o líder carismático, que virá salvar-me da situação em que me encontro. A partir da crença num líder salvador, o pensamento mágico reforça-se no encantamento dos slogans simplistas (Limpar Portugal), na negação da realidade – isto é, dos factos que negam a narrativa do líder – e no desenvolvimento de expectativas irreais de que problemas altamente complexos se podem resolver facilmente, bastando as palavras mágicas do salvador.

Os partidos tradicionais irão ter muita dificuldade em lidar com a nova situação. O pensamento mágico dificilmente é derrotado pelo discurso sensato e pela acção razoável. Os problemas que enfrentamos exigem esforço e racionalidade, coisa para a qual parte do eleitorado não está disponível. O pensamento mágico não exige esforço nem reflexão, vive de emoções, alimenta-se de mitos e slogans, propaga-se por contágio, como uma epidemia. Havendo uma liderança carismática, por norma, o pensamento mágico tende a aumentar e só perde força depois de uma desgraça. São tantos os exemplos – vindos da direita e da esquerda – em que o pensamento mágico dos cidadãos conduziu a uma tragédia que nem vale a pena enumerá-los. A democracia liberal, aquela que em Portugal nasceu há 50 anos, está perante um grande e grave problema.


quinta-feira, 4 de abril de 2024

A persistência da memória (29)

Theodor and Oskar Hofmeister, Am Feuerherd - Vierlande, 1903

Os gestos ligados ao fogo e à confecção dos alimentos são uma memória arcaica, trazem com eles um texto de fácil decifração, pois estão escritos num alfabeto universal que compõe um léxico que ainda hoje é reconhecido e que é estruturado por uma gramática luminosa. Imaginamos facilmente, extasiados pelas transformações do mundo material, que nos afastámos desse mundo antigo ou mesmo daquele que era o dos nossos avós, mas essa imaginação é ilusória e não resiste a uma imagem, simples que seja, de alguém cuidando do fogo para que a mesa esteja repleta e a vida possa continuar incólume o seu curso.

terça-feira, 2 de abril de 2024

O ocaso do espírito liberal

Assistimos a uma grave crise do espírito liberal. É de temer a sua morte. Podemos esboçar um retrato do espírito liberal com cinco características. Em primeiro lugar, a liberdade individual de cada um agir segundo a sua consciência, desde que isso não interfira na liberdade dos outros. Em segundo lugar, a igualdade de direitos, independentemente de qualquer característica diferenciadora (raça, sexo, religião, etc.). Uma outra característica é a tolerância, o propósito de respeitar as diferenças, sejam elas de crenças ou de comportamentos. Uma quarta característica é a racionalidade, a ideia de que a verdade pode ser obtida através do uso da razão. Por fim, o progresso baseado no conhecimento, que permitirá melhorar a sociedade através de reformas racionais.

Pessoas de diversas orientações políticas, desde que defendam as características acima enunciadas, possuem e participam no espírito liberal. Apesar de podermos encontrar alguns traços desse espírito na pólis grega, o espírito liberal, tal como ainda o conhecemos, tem o seu advento no Iluminismo e na constituição de uma esfera pública burguesa em confronto com o Absolutismo. Era, claro, apanágio de uma minoria ilustrada, preocupada em substituir as relações sociais baseadas na violência por outras fundadas no diálogo tolerante e racional, o qual, supunha-se, geraria as melhores soluções para os problemas dos indivíduos e das sociedades. Acreditava-se – e talvez ainda exista quem acredite – que a educação iria alargar paulatinamente a participação nessa esfera pública racional e que o espírito liberal se estenderia a toda a sociedade.

A evolução política do Ocidente – o fenómeno Trump nos EUA, o crescimento da extrema-direita na Europa, em Portugal, do Chega – mostra que esse espírito de tolerância, liberdade e racionalidade está muito doente. Talvez seja vítima do seu próprio triunfo e também das suas ilusões. O liberalismo, enquanto tornava todos iguais em direitos, acentuava, na economia, grandes diferenças de rendimentos, o que fomenta reacções contra esse espírito. O triunfo do chamado neoliberalismo está a matar o espírito liberal. Por outro lado, a crença de que a educação da população iria alargar o espírito liberal a toda a sociedade parece ser uma ilusão, a qual se torna patente quando se olha a intervenção das pessoas nas redes sociais. O que impera hoje é o espírito de facção e não a tolerância, o pensamento mágico e não a racionalidade, a discriminação e não a igualdade de direitos, a desarticulação das instituições e não a reforma progressiva, o uso da liberdade para a liquidar. O espírito liberal parece viver um doloroso ocaso.

domingo, 31 de março de 2024

XIII L’escalier du diable

Julião Sarmento, The house with upstairs in it, 1996

infinito o dia negro ascende

da vida luminosa ao inferno

com rudes mãos a alma se te prende

na morte ao incêndio do Inverno

 

em dissonância sonora

noite pela terra fora


[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]

sexta-feira, 29 de março de 2024

Meditações melancólicas (93) Melancolia rural

Friedrich Christian Reinermann, Aldeia nas montanhas junto a um riacho

Não serão muito aqueles que não trazem em si uma estranha melancolia proveniente de um sentimento de amor ao mundo rural. Cristalizou-se na imagem desse mundo a pureza das coisas inocentes e a perfeição daquilo que permanece perto do ardor da terra. Muitas daqueles que sofrem dessa estranha patologia, pois de patologia se trata, nunca viveram ou, tão pouco, tiveram contacto com esse universo que o tempo aniquilou. Serão, por certo memórias ancestrais que se construíram através de narrativas familiares ou de imagens que proliferam um pouco por todo o lado. Há quem se atreva a dizer que essa melancolia não é outra coisa senão um signo de uma saudade, a do paraíso perdido. E, de certo modo, terá razão, pois no cerne de toda a melancolia existe um sentimento de perda e um anseio de plenitude.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Comentários (17)

Odilon Redon, O Buda, 1896

 Como se escutasse. Silêncio: distâncias belas...
Detemo-nos, deixando de as ouvir.
Rainer Maria Rilke

Um enigma envolve aquelas que deixamos de ouvir. Talvez sejam vozes femininas, as de uma mãe que chama por nós na terra precária da infância, as de um primeiro amor cujo rosto, então amado, ficou esquecido no desvão da adolescência, as de uma desconhecida que deixou pairar na atmosfera o timbre das suas palavras e o visco dos seus olhos. Todas essas vozes nos abandonaram, refugiaram-se na distância do passado, ainda assim belas no cerco da memória. Ou talvez não sejam vozes aquilo que pede a nossa escuta e exige o silêncio. Será um outro mundo no qual já não habitamos, aquele em que a Terra era centro do cosmos e em torno dela havia esferas etéreas incrustradas com estrelas fixas que rodopiavam na noite para nos iluminar o caminho. É a sua música que, na distância, nos chama ao silêncio e como budas nos detemos perante a sua voltear eterno à espera da iluminação.

segunda-feira, 25 de março de 2024

Nocturnos 116

Nuno Cera, Snapshots 4, 1997

Ouve-se os comboios ranger nos carris, enquanto a noite desce e enche de mistério a estação, esse lugar onde se espera a melancolia da partida ou se aguarda, no fulgor da alegria, quem chega. Tomados pelo véu nocturno, esses lugares inóspitos e insalubres metamorfoseiam-se e são o cenário de um conto de fadas ou o palco de um drama de amor. 

sábado, 23 de março de 2024

XII Entrelacs

Frédéric Bazille, Reclining Nude, 1864

as tranças que desfaço em teus cabelos

são moinhos de erva seca ao vento

enrolam-se nas mãos brancos novelos

se em ti meu corpo cai suave e lento

 

um sopro de luz e mágoa

           salta e dança na fria frágua 

[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]


quinta-feira, 21 de março de 2024

Ensaio sobre a luz (115)

Mário de Oliveira, Paisagem, 1973 (Gulbenkian)

Olha-se uma paisagem e fica-se perdido nos elementos que a compõem, as características geográficas do território, a peculiaridade da flora, a dimensão do relevo ou a sua ausência, a presença ou a falta de água. Nessa alienação no visível oblitera-se a essência da paisagem, a luz que a ilumina e a configura, que a põe disponível para o olhar e permite descobrir os seus enigmas e os segredos que a habitam.

terça-feira, 19 de março de 2024

Simulacros e simulações (61)

Maria Helena Vieira da Silva, Ermitages (Bleu Tressé), 1971 (Gulbenkian)

Simule-se a solidão, que ela venha pela véspera do rio ou pela aurora da lezíria. Dentro dela, há um nome a arder, palavras trançadas no azul da luz ou no vermelho da escuridão. Depois, erga-se uma casa de colmo e o solitário encontrará, no simulacro do abandono, o nome que lhe deram e o destino que trazia no fundo do coração ou a algibeira vazia onde tinha todos os haveres.

domingo, 17 de março de 2024

Beatitudes (66) Música da noite

Ernst Ludwig Kirchner, Accordion Player by Moonlight, 1924

Os sulcos da noite abrem-se à luz da Lua. Tudo o que dia manifesta, vinda a escuridão, transforma-se em segredo e enigma. Então, um homem senta-se na humidade do chão e das suas mãos sai uma música que sobe suavemente às esferas celestes. Tomadas pelo mistério da hora, as mulheres sentam-se extáticas e contemplam a invisível linha do horizonte, enquanto o luar e anoite entram pelos seus olhos e a música as invade, abrindo o coração para a alegria desmedida das noites eternas.