Assistimos a uma grave crise do espírito liberal. É de temer a sua morte. Podemos esboçar um retrato do espírito liberal com cinco características. Em primeiro lugar, a liberdade individual de cada um agir segundo a sua consciência, desde que isso não interfira na liberdade dos outros. Em segundo lugar, a igualdade de direitos, independentemente de qualquer característica diferenciadora (raça, sexo, religião, etc.). Uma outra característica é a tolerância, o propósito de respeitar as diferenças, sejam elas de crenças ou de comportamentos. Uma quarta característica é a racionalidade, a ideia de que a verdade pode ser obtida através do uso da razão. Por fim, o progresso baseado no conhecimento, que permitirá melhorar a sociedade através de reformas racionais.
Pessoas de diversas orientações políticas, desde que defendam as características acima enunciadas, possuem e participam no espírito liberal. Apesar de podermos encontrar alguns traços desse espírito na pólis grega, o espírito liberal, tal como ainda o conhecemos, tem o seu advento no Iluminismo e na constituição de uma esfera pública burguesa em confronto com o Absolutismo. Era, claro, apanágio de uma minoria ilustrada, preocupada em substituir as relações sociais baseadas na violência por outras fundadas no diálogo tolerante e racional, o qual, supunha-se, geraria as melhores soluções para os problemas dos indivíduos e das sociedades. Acreditava-se – e talvez ainda exista quem acredite – que a educação iria alargar paulatinamente a participação nessa esfera pública racional e que o espírito liberal se estenderia a toda a sociedade.
A evolução política do Ocidente – o fenómeno Trump nos EUA, o crescimento da extrema-direita na Europa, em Portugal, do Chega – mostra que esse espírito de tolerância, liberdade e racionalidade está muito doente. Talvez seja vítima do seu próprio triunfo e também das suas ilusões. O liberalismo, enquanto tornava todos iguais em direitos, acentuava, na economia, grandes diferenças de rendimentos, o que fomenta reacções contra esse espírito. O triunfo do chamado neoliberalismo está a matar o espírito liberal. Por outro lado, a crença de que a educação da população iria alargar o espírito liberal a toda a sociedade parece ser uma ilusão, a qual se torna patente quando se olha a intervenção das pessoas nas redes sociais. O que impera hoje é o espírito de facção e não a tolerância, o pensamento mágico e não a racionalidade, a discriminação e não a igualdade de direitos, a desarticulação das instituições e não a reforma progressiva, o uso da liberdade para a liquidar. O espírito liberal parece viver um doloroso ocaso.
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