sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Traduções da Bíblia e atraso de Portugal

Anónimo - Papa Clemente XI

Na Apresentação, que Frederico Lourenço antepõe ao primeiro volume da sua tradução da Bíblia do grego, é chamada a atenção para uma situação que, ainda hoje, nos ajuda a compreender uma clausura cultural que encerra Portugal num ainda não ultrapassado paroquialismo. O tradutor sublinha que o século XVIII não foi um tempo muito propício para a leitura individual da Bíblia nos países católicos. Em 1713, o papa Clemente XI, na bula Unigenitus (§§ 79,80), estabeleceu como falsa a ideia de que todos os cristãos têm vantagem em ler a Bíblia e explicitou, ainda que o acesso à leitura da Bíblia não deve ser outorgado a qualquer pessoa.  De certa forma, a Bíblia, nos países católicos, entrou para o próprio Índex. Uma das consequências, em Portugal, desta posição papal resultou na interdição de publicar no nosso país, em pleno Século das Luzes, a primeira tradução portuguesa da Bíblia, por João Ferreira de Almeida, levada a cabo ainda no século XVII.

Esta pequena história, aliada à nossa localização periférica na Europa, diz-nos muito sobre a decadência cultural e o fechamento do país, os quais não deixam de se sentir ainda hoje, como, por exemplo, no desprezo com que a direita portuguesa tratou a questão dos quadros de Joan Miró ou, a dificuldade da esquerda, mas também da direita nacional, em valorizar o papel do indivíduo e da sua iniciativa.

A oposição da Igreja Católica à leitura individual da Bíblia tem de imediato duas consequências. Vai atrasar, até aos dias de hoje, três séculos passados, o processo de escolarização dos portugueses. Por muito que certos corifeus do partido da anti-escolarização continuem a indignar-se e a gritar contra a importância dada à educação, a verdade é que o pouco relevo da educação escolar em Portugal, nos últimos 300 anos – as excepções são a I República e o regime democrático pós-25 de Abril –, é uma das causas do nosso persistente atraso. Uma outra consequência não é menos devastadora. A leitura individual da Bíblia poderia ter sido, naqueles dias, um factor de desenvolvimento de uma consciência individual crítica, capaz de autonomia e, por isso mesmo, capaz de iniciativa. Capaz também de cortar com uma cultura de protecção de amigos e famílias (onde se incluem as políticas), quando não de quadrilha. A Igreja Católica mudou de posição, o Estado português começou a levar a sério a educação, mas o tipo da cultura herdada daqueles dias contínua a pesar sobre todos nós.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

A degradação ocidental

Juan Genovés Candel - Sobre la representación política (1973)

Há dois fenómenos que mostram o grau de degradação a que chegou a vida política ocidental. O primeiro centra-se na capacidade que o fundamentalismo islâmico tem tido para conseguir colocar na agenda de muitos países ocidentais um conjunto de temas que pareciam há muito resolvidos. Bastam dois exemplos: o questionamento da separação entre religião e política e a negação sistemática da igualdade entre homens e mulheres. O segundo fenómeno provém da disputa presidencial em curso nos EUA. Que Donald Trump tenha ganho no campo dos republicanos e seja um candidato com possibilidades de vencer a eleição ultrapassa em muito experiências de degradação com a importância, por exemplo, do fenómeno Beppe Grillo e o seu Movimento 5 Estrelas, em Itália.

Apesar de, em aparência, não haver relação causal entre estes dois fenómenos, seria interessante questionar até que ponto a sua relação é mais que concomitante. Até que ponto o enfraquecimento dos valores ocidentais devido à pressão de valores exógenos, como os do Islão, está ligada à emergência deste tipo de protagonistas políticos que, nesta noite em que todos os gatos são pardos, encontram um caminho para a ribalta. O questionamento, porém, não deve ficar por aqui. Há que interrogar se a própria emergência na agenda política ocidental das reivindicações do fundamentalismo islâmico não estará ligada já à degradação da elite política ocidental, uma degradação que não foi reconhecida pelos eleitorados que, continuamente, foram sufragando políticos medíocres com agendas políticas perigosas e irresponsáveis.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Descrições fenomenológicas 1. A praça

Zao Wou-Ki - 1-3-60

Uma perna fixa no chão, outra erguida e, num impulso, as pernas trocam de posição e o rapaz afasta-se a correr, no seu fato de domingo, calções curtos, meias até ao joelhos, sapatos flexíveis, boné de adolescente. Afasta-se da multidão que chega. Homens e mulheres juntam-se ali, em pequenos grupos que se fazem e desfazem ao sabor das conversas. Pisam a gravilha, que se ouve ranger sob o peso dos corpos, a impaciência dos gestos, o cansaço de domingo. Da praça, abre-se para norte, uma rua de casas negras, de vidraças obscuras, toldadas pelo luto. Anunciam solidões sem fim. Nas janelas entreabertas não se vê vivalma, apenas cortinados levemente entreabertos, de onde ninguém espreitará. A casa é o lugar da solidão. E de lá fogem todos os que desaguam no rossio, onde a conversa parece não ter fim. Não se vê uma árvore. Um pouco acima, as chaminés vomitam o fumo sombrio que se desprende das entranhas das grandes fábricas. Nuvens caprichosas formam-se sobre a cidade, negras, tocadas pelo vento, máscaras com que o céu azul se oculta. Rodopiam e, lentamente, descem sobre os ombros de quem ali conversa, são como um véu de morte nos braços da manhã.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Rumores de Maio 15. Pássaro

Rafael Baixeras - Casa, humo, mar, pájaro (1987)

15. Pássaro

Deter a água do rio, o zumbido da semente a germinar,
a ressaca da memória, se desce pela luz do caos.
E um pássaro traído traz no voo a força do pólen.
Desenha um mapa de cheiros, uma carta de flores,
rios subterrâneos e solares. É uma ave aquática!
Floresce no rio e abre-se ao murmúrio da pedra,
ao tumulto que sopra o lençol alvoraçado do mar.

(Rumores de Maio, 1977)

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Pedro Almodóvar, Julieta


O último filme de Pedro Almodóvar, Julieta, construído a partir de contos de Alice Munro, pode ser visto como um questionário sobre a relação entre mãe e filha. Melhor, sobre a dependência que a maternidade, pelo facto de trazer ao mundo um novo ser, institui na construção da identidade da mulher. A estratégia do cineasta não é a de analisar o concreto de um relacionamento, mas extremar o ponto de observação, colocando o foco no impacto da ausência da filha na vida da mãe. Não a ausência trazida pela morte, mas a de uma radical decisão arbitrária, na qual a filha corta, sem que a mãe perceba a razão, todos laços.

O filme de Almodóvar acompanha o processo de construção da subjectividade de Julieta. O que está em jogo é a identidade desta. Este processo mostra-se, porém, muito longe do ideal iluminista de uma autonomia absoluta. Ao trazer outro ser ao mundo, não apenas essa autonomia é posta em causa pela responsabilidade, como se instaura uma espécie de processo que remete, através do vínculo biológico e afectivo, a uma tradição. A autonomia do sujeito é drasticamente reduzida pela dependência perante os filhos, neste caso, a filha. Deste ponto de vista, Almodóvar faz um filme de limites. Torna patente a fragilidade de um projecto de construção de si como alguém absolutamente autónomo. A filha de Julieta, na radicalidade da sua pretensa autonomia, manifesta o limite do projecto da modernidade, do ideal iluminista de autonomia do sujeito. 

O grande revelador desta ausência de autonomia é, contudo, a esperança. Depois, de um primeiro período de desespero, após o desaparecimento da filha, Julieta parece reconciliar-se com a vida e, aparentemente, vive a sua vida, como se tivesse conquistado a sua autonomia em relação à filha desaparecida. Bastou, porém, um pequeno sinal para que a esperança voltasse e revelasse uma estranha menoridade da mãe perante a sombra ausente dessa filha. Contrariamente às expectativas da modernidade, onde a esperança é a esperança de uma progressiva autonomia dos indivíduos, o cineasta espanhol mostra-a como aquilo que devolve Julieta à sua menoridade, à dependência da filha ausente. O filme nos dá a ver como o projecto iluminista esbarra na natureza dos homens, nas dependências que a vida da espécie institui e que nenhum decisão da vontade parece ter poder para anular.

domingo, 25 de setembro de 2016

Livro do Êxodo - 26. Legiões de caminhantes

Alfonso Fraile - Caminantes (1977)

Passavam legiões de caminhantes e nas bocas, plenas de vazio, traziam um símbolo solar, tão escancarado que os dentes sobressaíam no negrume da noite e a respiração ecoava para lá dos muros, a cidade cercavam. Se tinham nome, ninguém o conhecia, apenas se ouvia: lá vão aqueles que vão,  mulheres, crianças e homens. Melhor fora que ficassem em casa, a cuidar das borboletas no jardim, a limpar destroços, os dias os trazem, a cozinhar e na cozinha matar a fome a quem fome tem. Foi assim que aprendi a beber até à última gota, a taça inclinada, a boca sôfrega, o barulho da noite que cai a estrondear, entre relâmpagos e vozes, naquele sítio onde a memória se tornou prisioneira e uma ferida escorre.

Quando o vento ordenou: farás laçadas de azul na ponta de uma cortina, já as janelas eram parede, de lá ninguém via os caminhantes caminhar, e no seu lugar havia apenas um vestígio de pedra, onde rapazes escreviam com lápis de carvão o nome das namoradas e palavras azedas, agora todos as dizem, mal a boca se destapa e os sentimentos se soltam, numa dor de solidão, na pressa contagiosa de mostrar o fundo, o mar das emoções a carregar vagas de algas verdes, por vezes roxas, restos de tecidos, chitas e tafetás, ouvi dizer, um punhado de gaivotas mortas e penas deslaçadas de corpos desfeitos ou de almas amargas.

Se ainda alguém desenha, no lugar vazio da janela, corações e setas de Cupido, é por fastio, um resto de rancor, ou como armadura contra a cólera, das alamedas, outrora de saibro, de tudo tomou conta, como agora homens e mulheres tomam conta de cães, a alçar a perna pelas árvores e no seu ser tão raquítico esganiçam a voz e ladram num arremedo de cão-de-guarda, a marcar no vento fronteiras, estremas fluidas a crescer no pântano, a ciciar propriedades, imensos latifúndios de gerânios, varas selvagens de cobras azuis, um rebanho de varejeiras, ou manadas infinitas de moscas sibilantes, ao longe, tão ao longe, parecem anjos negros, presos na torre da Igreja, se os sinos repicam e os carros zunem e as pessoas olham cansadas as legiões de caminhantes, então passam. Vão levados pelo silêncio

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Uma questão de fé

Jan Vermeer - The Allegory of Faith (1671-74)

Pego num livro de Nuno Júdice, O fruto da gramática, e logo no início do segundo poema leio: Desfio um rosário de conjunções / nos dedos da memória. E uma iluminação desce em mim e transporta-me para um longínquo passado, aquele em que – certamente, por inépcia minha – tentava decorar as conjunções recitando-as de enfiada, talvez distinguindo, mas a memória já não recupera esse aspecto, as coordenativas das subordinativas. Descobri, ao ler o poema de Júdice, que aquilo que eu fazia, há bem mais de quarenta anos, era rezar, rezar o rosário das conjunções, ou das preposições, ou dos advérbios. Os dedos da memória de que fala o poeta não são apenas os dedos que nos transportam para essa longínqua experiência. São também os dedos com que eu tentava prender em mim, na precária casa da memória, essas classes de palavras. Julgo que a escola, essa escola que me incitava a desfiar rosários gramaticais, uns atrás dos outros, nunca conseguiu fazer com que eu percebesse para que serviam essas estranhas palavras. Na verdade, para rezar tantos rosários era preciso ter fé, muita fé, e eu, já nesses dias, sofria de uma manifesta falta de fé.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

A doença infantil


A minha crónica no Jornal Torrejano.

Quem faz política, antes de abrir a boca, deve medir o impacto que as futuras afirmações poderão ter. A arte da prudência é essencial. Era tempo do Bloco de Esquerda (BE) meditar sobre o assunto. A trapalhada relativa ao novo imposto sobre património e o convite, endereçado por Mariana Mortágua, ao Partido Socialista, para este pensar se quer ser alternativa ao capitalismo (sic) são dois tiros no governo. Aquilo que a direita não tem conseguido fazer – abalar o executivo – está a esquerda, com inexcedível empenho, a fazê-lo, e, mais que todos, o BE. A direita exulta com a dádiva caída dos céus.

Grande parte das pessoas que votam à esquerda, onde me incluo, não querem aventuras nem experiências sociais. Não querem descobrir alternativas à economia de mercado. Sabemos todos, bem demais, onde conduzem essas experiências e essas alternativas. Quer que a sociedade funcione melhor, que seja mais justa, mas não possui qualquer interesse em abandonar o concerto dos países ocidentais que têm, no cerne do seu desenvolvimento, a referida economia de mercado. O BE e as outras forças de esquerda devem ter isso em consideração. E um governo, em democracia, não governa para a sua facção. Governa para o todo nacional.

Por outro lado, o BE – mas também a restante esquerda – deve ter a sensatez suficiente para compreender o que poderá acontecer aos estratos sociais que suportam a esquerda, caso o governo colapse e a direita volte ao poder. Não vai ser bonito ver o revanchismo social da direita. E isso só não acontecerá se o governo suportado pela esquerda conseguir convencer os eleitores que possui as melhores soluções para o país. E dentro das soluções virtuosas, para a grande maioria do eleitorado, não se encontra qualquer aventura anticapitalista nem qualquer confronto com a União Europeia, da qual dependemos para não voltarmos a ser reduzidos à miséria mais extrema.

O BE tem todo o direito de querer ser convertido à dimensão da extinta UDP ou do velho PSR. Tem todo o direito de continuar a insistir na doença infantil do comunismo, para citar Lenine. Mas se o BE quer abandonar a fase da adolescência e ser uma organização política com contributos positivos para o país e para as pessoas que representa, como por vezes parece, o melhor é compreender a realidade em que vivemos, as nossas dependências e fragilidades, e adequar o discurso e a acção para, de forma reformista, contribuir para uma sociedade mais justa, mas também mais eficiente do ponto de vista económico e social. Fundamentalmente, deve aprender a moderação na acção e a prudência de pensar mil vezes antes de falar.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Rumores de Maio - 14. Na morte de...

Francisco de Goya - El 3 de Mayo en Madrid: Los fusilamientos en la montaña del Principe Pío (1814)

14. Na morte de...

Que sentimento há para se morrer tão jovem?
Queima o asfalto, a calçada que não mais tocarás.
E o grito sufocado pelo anoitecer servirá
ainda de fogo pela rua, fogaréus de pedras
pelas mãos, os braços pálidos e parados,
olhos fixos pela fronteira na morte desabada.

Querias uma hora de liberdade, um tempo de anos
correndo sobre os anos, as mãos presas ao mundo.
A cabeça é agora uma inclinação para a sombra
e de tão caída pede à luz que a suporte.
Haverá no ódio um grito suficiente, uma luz parda
de primaveras ateadas no trabalho do esquecimento?

No hálito da terra, nas pequenas casas da aldeia,
no fumo anoitecendo os campos, há uma voz negra
de nuvens e sonhos, uma voz de energia e dor.
Com ela, vingam as horas pelas terras e sobre a lavoura
dos dias uma suave claridade, a réstia insondável
na esperança cicatrizada, levemente gasta da tarde.

Nada começa sem um caminho de morte, sem a queda
das células pelas mãos sedentas de terra. Uma bandeira
pregada na cúpula da casa. Trémula no ócio,
nos gestos flexíveis e fortuitas que se desenham
nas ruas, nas arcadas silenciosas do coração.
Nela fermenta a morte na crueza fria do firmamento.

(Rumores de Maio, 1977)

terça-feira, 20 de setembro de 2016

A paixão pela igualdade (ii)

Emil Nolde - El escarnio de Cristo

Duas paixões consomem os actores sociais e políticos no mundo ocidental. A paixão pela liberdade e a paixão pela igualdade. A confrontação – por vezes, violenta – que entre elas ocorre deve-se ao facto de possuírem uma raiz cultural comum, que a vida social cindiu, mas que as alimenta, as incendeia e, secretamente, as mantém vivas. Essa raiz é o cristianismo. Não apenas o cristianismo emergiu como um projecto de libertação de uma condição humana vergada às cadeias do próprio desejo, como também trouxe com ele o rastilho que ateou a paixão da igualdade. Cristo não é como um imperador que, para se diferenciar, se proclama deus. Cristo, na economia da religião cristã, é Deus que se torna homem, que se torna mais um entre os homens, um igual. E esse homem em que encarna pertence à grande massa anónima dos homens, os quais são agora compreendidos como irmãos, como iguais entre iguais. A paixão pela igualdade – assim como a paixão pela liberdade – não é um elemento estranho à nossa cultura. Ela tem a sua raiz no que há mais fundo na cultura ocidental.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Uma inclinação para a igualdade (i)

André Masson - Édipo (1939)

Os casos de Jorge Jesus e de José Mourinho são paradigmáticos. O que nos ensinam eles? Ensinam que não apenas há um limite para o hybris (desmedida, mas também, numa linguagem moderna, presunção, insolência, arrogância), como há na mecânica do mundo e da vida social uma certa inclinação para a igualdade. Quando os homens – mesmo que através do seu talento e do seu esforço – ultrapassam a medida, e isso é motivo de arrogância, a realidade encarrega-se de os atirar ao chão e remetê-los para esfera da mediocridade, esfera que é, de certa maneira, a de todos os homens. E a realidade age por si mesma, sem que uma vontade a determine. São os próprios acontecimentos que se encarregam de tornar patente os limites daqueles que, pretensamente, ultrapassam os limites. Na mecânica do mundo e da vida social há um lugar para a diferenciação, mas esse lugar é muito menor do que aquilo que os defensores da desigualdade e os arautos do mérito pretendem. Um leve passo em falso e a fortuna muda. Que o digam Agamémnon ou Édipo. Que o digam Jorge Jesus ou José Mourinho.

domingo, 18 de setembro de 2016

Livro do Êxodo - 25. Viajantes do sopro

Ernest Biéler - L'Été et les moissons (1918)

Por vezes corria um sopro, o ar ao de leve tocava as folhas da macieira e enxertava vida nas pedras, brancas de tanto uso, e dissolvia-se no horizonte. Se o perscrutavam, apenas ouviam o zunido nos telhados, a música rangia, misteriosa música a do vento sobre as casas. As pessoas passavam e olhavam, como se ao olhar ouvissem, mas tudo voltava à apressada calma com que os dias enchiam as horas vagarosas da infância, os olhos, nunca cansados, perdidos em aventuras. Chegavam naqueles livros de papel reles, trocados na azáfama com que os leitores preenchiam as tardes, as de verão, digo, naquela terra morosa e arrastada de uma vida ainda no começo, sem saber que a sombra da morte regia os dias e as noites. Era uma terra cheia de sapateiros e latoeiros e tanoeiros e barbeiros, um exército de carpinteiros, todos eles prontos para o grande combate, dia a dia ele chegava, insinuava-se aqui e ali, segundo uma lógica, estranha lógica era, nascida das necessidades dos que por ali viviam, se a morte não os levava.

Ouvi quando disseste: também farão uma arca de madeira. Mas eles, levados pelo sopro, partiram, foram colher flores nos campos, depois afastaram-se cobertos de nuvens, presos a névoas e neblinas, um grande nevoeiro, traçando ruas de azevinho, casas remendadas de giestas. Afastaram-se uivando, esquecidos da arca de madeira, esquecidos de ti, não sabendo o nome, pois lho roubaram ao pôr os pés no chão, ao  inscreverem no musgo rasgos de solidão. Soletravam crepúsculos, agitando mãos, se carros passavam deixando-os na poeira, gritando pelas tarde de paixão, quando a cruz se elevava e corria um sopro, o ar ao de leve tocava as folhas da macieira e enxertava vida nas pedras brancas, então as guardavam nos bolsos das calças, uma ainda resta, presa no fundo negro, tão negro e tão vazio, onde habita o coração.

Assim se afastavam da infância, levados pelo sopro, pelo desejo que desata os nós que prendem o corpo, tão submisso à gravidade, à terra que o viu brotar, entre ânsias e o choro que rasga o mundo e o alerta para que mais alguém, nunca convidado, vai entrar no grande palco para representar, na arte que for a sua, o papel que lhe cabe. E a infância tornava-se uma terra estranha onde morriam, um a um, sapateiros, latoeiros, tanoeiros, barbeiros e carpinteiros, deixando a memória vazia, apenas preenchidas pelo cheiro das primeiras chuvas, das tangerinas colhidas pelas mãos e as flores de erva-canária que nascia, e era uma lembrança quase amarela, quase amarga no fundo da boca, no limiar dos olhos. A arca de madeira repousava esquecida ao fundo da igreja, de onde os anjos debandaram, levados, também, eles pelo sopro do desejo, da ânsia por um corpo de carne e sangue, por uma noite de sexo num quarto esconso, numa viela perdida na solidão.

sábado, 17 de setembro de 2016

Saraivadas, sexo e sociedade

Bill Jacklin - 42nd Street Interior (1988)

Consta que o arquitecto Saraiva escreveu um livro, que Passos Coelho, sabe-se lá porquê, irá apresentar, com revelações sobre a vida sexual de muitos políticos. Eis um nicho de mercado que faltava explorar, e o antigo director do Expresso e do Sol parece ser homem de iniciativa. Como tinha o produto em armazém decidiu comercializá-lo. Também é isto a sociedade de mercado. Que contribua para degradar a vida comum, que acelere a corrosão dos valores da vida social, isso é irrelevante no clima niilista em que vivemos.

Se os políticos cometeram, por motivos ligados ao sexo, crimes, Saraiva deveria tê-los denunciado à polícia e não escrever um livro. Se eles não cometeram quaisquer crimes, a sua sexualidade - desde a orientação até às infidelidades, passando pelas práticas - deveria ser mantida no recato, mesmo que os visados não a tenham preservado, mesmo que o arquitecto tenha, por motivo da sua profissão de jornalista, servido de confessor ou de psicanalista.

Este tipo de saraivadas, para além de poder contribuir para o aumento do património do autor, só serve para alimentar o que há de mais mórbido na cultura de massas em que vivemos. Espera-se de uma pessoa que exerceu os elevados cargos que Saraiva exerceu na imprensa portuguesa que contribua para a moderação do voyeurismo social. Não se espera - ainda por cima de alguém que se arvora em inimigo dos totalitarismos - que alimente, com a miséria pessoal a que teve acesso (sim, o sexo acaba sempre por estar ligado às nossas pequenas misérias), uma sociedade tornada um big brother contínuo, uma sociedade que se aproxima cada vez mais do panóptico carcerário idealizado por Jeremy Bentham.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Rumores de Maio - 13. Noite

Harald Sohlberg - Night (1904)

13. Noite

Noite, herbário de sangue
aberto à traição e ao amor.
Uma campânula de vento,
pássaros poisam na flor.

Noite, guerra inviolável
exposta na face que é a tua,
segredo precário que vacila
no ruidoso ruído da rua.

(Rumores de Maio, 1977)

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Sócrates, uma telenovela portuguesa


Quando a telenovela Gabriela, Cravo e Canela se estreou em Portugal, em 1977, os portugueses estavam muito longe de compreender que o género não apenas iria ganhar raízes na televisão como se tornaria o modelo de toda a vida pública. A informação e a política são, há muito, modeladas pelos enredos telenovelescos. Também a justiça se rendeu, talvez desde o caso Casa Pia, à dimensão dos folhetins televisivos. O auge da dimensão telenovelesca é atingido na Operação Marquês, que envolve o antigo primeiro-ministro José Sócrates.

O efeito disto sobre a opinião pública é extraordinário. Quando a justiça tem por arquétipo a telenovela, deixa de ser importante se os acusados são culpados ou inocentes, se tudo decorre segundo as regras da justiça e os princípios da moral. O que interessa agora à opinião pública é a cena do próximo capítulo, não por que ela nos diga alguma coisa de efectivo sobre o caso em si mesmo, mas porque é necessário alimentar a curiosidade e o desejo de saber o que vai acontecer a seguir, independentemente da virtude e da verdade desse acontecer.

O juiz de instrução dá uma entrevista. Óptimo, que belo capítulo. Sócrates pede o afastamento do juiz, ainda melhor. O procurador pede mais seis meses para continuar a investigação, temos a cereja em cima do bolo. A telenovela ideal é aquela que não acaba, que prende continuamente o espectador com novos acontecimentos e reviravoltas. A telenovela José Sócrates tem todos os ingredientes para se aproximar do ideal da telenovela: um contínuo de episódios sem fim. Não interessa já se Sócrates é culpado ou inocente. Pouco importa se Carlos Alexandre ajuizou bem ou mal. É irrelevante saber se a investigação é bem ou mal conduzida. O importante é que o suspense se mantenha, de preferência enquanto as audiências estiverem em alta e o auditório não se canse. 

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Caçar pokémons


A linguagem é uma coisa terrível. Muitas vezes mais valia não a usar. O primeiro-ministro, perante o desespero da oposição com um putativo resgate (que ela, diga-se, espera com beato ardor), achou por bem apresentar o extraordinário argumento mais vale dedicar-se à caça de pokémons do que esperar encontrar o diabo (o diabo do resgate, leia-se). Não vou já argumentar sobre a necessidade de manter alguma gravitas no exercício da política, nem sobre o dever de respeitar o papel da oposição, por muito que esta diga coisas que parecem absurdas a quem está no poder. Este é um dos papéis que a democracia atribui às oposições. Interessa-me outra coisa.

Interessa-me o universo que se oculta nesta ideia de caçar pokémons. E o universo que se oculta é o das graçolas da pós-adolescência, o universo das jotas partidárias, onde, à falta de formação e de informação, abunda, para além de vontade de trepar no aparelho do partido, a tendência para fustigar os adversários com pilhérias que só esses pós-adolescentes acham graça. Estes gracejos são um ritual que reforça a coesão do grupo e serve para, através da risota, evitar o drama da dúvida. O caso actual é apenas um exemplo. Passos Coelho, apesar do ar engravatado que coloca, não é melhor. Toda esta gente que domina os aparelhos partidários fez a sua escola política no mundo da pilhéria barata, do riso fácil, da piadola sem gosto. Na verdade, o universo de todos eles foi e continua a ser o dos pokémons. Sair da adolescência é uma tarefa hercúlea. Ou então eu estou a ficar demasiado velho para me rir.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

As coisas técnicas


Visitar o passado é um belo exercício de confronto com as nossas ilusões, com as ilusões que a vida social faz nascer em nós e que, sem oposição, nós deixamos que elas cresçam. Na verdade, toda a vida social está focada em criar um manto de ilusões, um véu de Maya, com que se torna aceitável. Esta belíssima imagem de propaganda a um transístor portátil da Grundig (1958) foi vampirizada do Dias Que Voam, um blogue que merece bem estas vampirizações, para além de inúmeras visitas e leituras. Aliás, há lá outro anúncio notável da Grundig (1957), uma verdadeira lição de sociologia da época. Este transístor seria então, segundo a publicidade, uma jóia. Pequena, mas autêntica. Se pela autenticidade a Grundig nos assevera o seu carácter verdadeiro, oposto a uma falsificação, pela associação com uma jóia faz evocar em nós o que é belo e aquilo que resiste ao tempo, aquilo que é eterno.

Eis aqui, porém, a mentira da técnica. As coisas técnicas, na sua verdade, podem ser belas, mas apenas num momento. Não, porém, eternas. A beleza delas decairá rapidamente, ultrapassada por outras mais belas com que o mercado animará o nosso desejo. Para não falar no facto de todos estes objectos serem produzidas para se tornarem obsoletas e, em última análise, para deixarem de ser belos. Todos nós já experimentámos, perante um novo gadget, o deslumbrado embevecimento da rapariga do anúncio. Mas também já todos fizemos a experiência que esse novo objecto representa já o passado. A beleza que ele oferece ou o conforto que proporciona serão em breve ultrapassados por um novo objecto que se oferecerá imperativo, pelo saber da técnica e do design, à nossa voluptuosa faculdade de desejar. Passados tantos anos quem achará belo o pobre rádio transístor da Grundig? (averomundo, 2010/01/15)

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Questões de família

Marc Chagall - The Family (1969-71)

Há pequenas coisas que, apesar da sua aparente insignificância, são reveladoras de uma tendência geral. Perante a iniciativa da União Europeia de retirar todos os privilégios ao seu antigo presidente, Durão Barroso, devido ao seu novo emprego no Goldman Sachs, e de passar a tratá-lo como qualquer outro lobista, o PSD, pela voz de Luís Montenegro, critica a posição da União, classificando-a como um triste espectáculo.

O PSD não percebe o que fez Durão Barroso? A atitude do PSD apresenta duas vertentes. Em primeiro lugar, acha normal esta conivência entre o mundo da política e o mundo dos negócios. Já sabíamos, mas é bom sermos recordados. Também nos parece, e esta é a segunda vertente, que se o caso fosse com um militante de outra família política, aí, apesar do amor pelo conluio entre política e negócios, abrir-se-ia uma excepção.

Quando o maior partido português, e que neste tipo de casos não será diferente do segundo mais votado, tem esta compreensão do mundo e da política, estamos conversados sobre a saúde da democracia portuguesa. De facto, estamos muito mais próximo do norte de África do que do norte da Europa. De facto, em Portugal, é tudo uma questão de família. E é sempre bom ter gente na família que se relacione com os poderosos deste mundo.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Rumores de Maio - 12. O rumor de Maio

Charles Burchfield - Noontide in Late May (1917)

12. O rumor de Maio

Cobre-se Maio em seu sonho
e na luz da estrela tremente
um pássaro de cinza voa
preso à luz fria e cadente.

E sobre o rasto daquele voo
lagos claros e fugidios,
bandos de nuvens ao sul,
o rumor de Maio nos lírios.

(Rumores de Maio, 1977)

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Notícias da derrocada

A minha crónica no Jornal Torrejano.

No passado domingo, nas eleições em Mecklemburg-Pomerânia Ocidental, um dos estados federados da Alemanha, o partido populista Alternativa para a Alemanha ficou em segundo lugar à frente da CDU da senhora Merkel. Na segunda-feira, manifestações de camionistas e deagricultores bloquearam uma auto-estrada junto a Calais (França). O que têm em comum estes dois acontecimentos tão diferentes? O problema dos refugiados. Merkel está a pagar eleitoralmente por ter aberto as portas aos refugiados da guerra da Síria. Em Calais, onde existe um campo com milhares de migrantes que querem ir para Inglaterra (que não os aceita), os habitantes locais, que já deram uma vitória histórica à Frente Nacional, queixam-se da insegurança trazida pelo referido campo.

Podemos dizer que, tendencialmente, os alemães são racistas e os franceses chauvinistas. Isto pode tranquilizar algumas consciências. No entanto, oculta a complexidade do problema. E o problema é que estas migrações – sejam económicas ou resultado da guerra – têm um impacto negativo – sentido, muitas vezes, como extremamente negativo – na vida de muitas populações dos países ocidentais. As elites políticas tradicionais recusam-se, ou estão impotentes, a ouvir as suas populações. Estas deslocam então os seus votos para as organizações xenófobas e nacionalistas.

Há problemas que não têm resolução ou não têm uma resolução minimamente aceitável. No actual quadro, para além da retórica da integração e da expressão das boas intenções, parece haver apenas dois cenários. Os fluxos migratórios continuam em direcção à Europa, alterando, radical e desordenadamente, a sua paisagem cultural e civilizacional. Em alternativa, esses fluxos são parados pela violência, como resultado da subida ao poder de partidos nacionalistas. Seria desejável a existência de outras alternativas, mas não se vêem no horizonte. Uma coisa parece, porém, certa: a Europa tal como a conhecemos está a ruir e a ruir no centro. Estes fenómenos – o de Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental e o de Calais – são apenas pequenos aluimentos, mas parecem pronunciar uma grande derrocada.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Livro do Êxodo - 24. O inventor de fábulas

Joan-Pere Viladecans - Fábula (1999)

Quando a face lhe floriu estava rubra, tão rubra, mais que a papoila pelo vento balanceada, mais que sangue a correr por veias e artérias, para desaguar no coração, logo o devolvia ao périplo que irrigava o corpo e alimentava a mecânica dos músculos, a sabedoria do cérebro, o alento com que a vida se desbravava. Um sangue de fogo e aguarrás, a essência de terebentina, que a tudo diluía. O fogo de sangue dissolvia a dúvida e a esperança, consumia, no cume do monte, a caruma pela vida ali amontoada. Inocente ainda era e na inocência afogueada desenhava fábulas em papel pardo. Noutros dias, já esquecida a fábula, alguém usava o papel, mais pardo já, para ensopar óleo, vinho, pingos de azeite e logo o deitar fora, como se nele houvera moléstia, a eminência de uma contaminação.

Quando na rua gritavam, se gritos se ouviam, eram quimeras o que desenhava, a cabeça de leão, um leão colérico, hematoso, a urrar, em desespero de monstro, em tique de selvagem. Do corpo, tão quimérico, uma cabra descia, se da cauda um fogo se desatava, alastravas pela erva seca, assediava árvores e arbustos, o esplendor da noite tomada pelo sol. Eram então dias de fervor e no jardim as rosas murchavam, enquanto os caminhantes que caminham no caminho, saídos dos dedos que desenhavam, semeavam luzes e terrores, folhas murchas entre ervas secas pelo fogo ou pelo vento, da serra caía, frio e invernoso mesmo se quente era o verão. Não havia, naqueles dias, procissões, nem touradas, nem gente a uivar pela estrada.

Apenas uma pele delicadíssima escondia os dedos, e luzia, cobria de vozes a solidão. Inocente ainda era, ou voltara a ser, e compunha palavras, as sílabas delicadas e em cada letra punha uma pedra de cinza e uma mágoa fatigada. E assim começava uma nova fábula e um tempo, mais presente e mais longe do começo, começava, nos seus olhos histriónicos, desejosos de ver novos mundos no cansaço dos seus dedos. E já não eram quimeras que vinham, mas cavalos alados, faunos ou, então, planetas inóspitos que aguardavam o murmúrio divino, aquele sussurro que do lodo tiraria seres vivos e os semearia por casa desabitada para que pudessem desejar e, cumulados de desejos, entrarem na peçonha da vida, para dela triunfarem levados no barco ambulante da morte.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

O casticismo da direita portuguesa

Pablo Picasso - Corrida de toros (1934)

A direita portuguesa, por mais que tente, não consegue disfarçar. Nela, o casticismo é sempre uma espécie de gato escondido com o rabo de fora. Veja-se o retorno da tourada do CDS, agora pela mão da Juventude Popular. Apesar de envergonhada (uma vergonha que nasce do incómodo político), a direcção do partido apoia. Ressalvo desde já que não sou anti-touradas. Nasci no Ribatejo, e a cultura tauromáquica não me é radicalmente estranha. Não sou aficionado, não frequento praças de touros, mas não milito a favor da proibição desse tipo de espectáculo. Reconheço, porém, que ele representa um mundo que, felizmente, morreu. O que me interessa, todavia, é a questão política.

O que significa este retorno da tourada, em nome da tradição, pela mão de um partido da direita parlamentar portuguesa? Representa uma contradição insanável entre o que se esperaria de uma direita liberal e modernizadora – o que a retórica do CDS gosta de arvorar – e o respeito por tradições que defendem o privilégio de casta em vez da concorrência e do triunfo do mérito. A tradição castiça na política portuguesa remonta ao absolutismo de D. Miguel. E até hoje a direita não conseguiu abandonar os seus tiques castiços. A inexistência de correntes liberais em Portugal deve-se ao peso enorme que o casticismo, mais explícito ou mais envergonhado, tem na direita portuguesa.

Por muitos blogues ditos liberais e jornais tipo Observador que haja, por muito que certas vozes mais liberalizantes surjam no espaço público, o rabo de fora do casticismo nunca desaparece. Infelizmente para Portugal, a nossa direita é, de uma forma esmagadora, castiça. O que está em jogo em muito das suas políticas não é um projecto liberal de modernização, mesmo quando usa retoricamente este tipo de palavreado. O que está em jogo é a defesa de uma tradição que pretende proteger os que pertencem à boa casta, evitar que o livre jogo da vida - e do mercado - lhes retire os privilégios. A tourada da Juventude Popular não é apenas uma iniciativa de mau gosto político, mas todo um programa ideológico iliberal. Estes jovens populares, na verdade, são uns castiços.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Sol na eira e chuva no nabal

A educação pública é um verdadeiro drama. Esta ideia, uma ideia em mim já velha,  foi reforçada durante o dia de hoje ao assistir a um encontro de professores, Os Dias da Escola, organizado pela Câmara Municipal de Torres Novas, em colaboração com os agrupamentos locais e o Centro de Formação A23. Universitários, um responsável do Ministério da Educação e um professor do ensino não superior, mas com grande visibilidade pública, derramaram – não sem interesse – sobre a escola pública e alguns dos males que a atormentam.

Este drama sem fim nasce de uma contradição que, a partir de determinada fase do desenvolvimento dos sistemas públicos de educação, emergiu. Essa contradição reside na não coincidência da racionalidade pedagógica, que deve comandar a educação, e da racionalidade política, que deve comandar os Estados. Esta contradição não é originária. No início, a escola pública dirigia-se à formação de um elite burocrática de servidores do Estado. A escola tem assim uma origem burocrática e a mítica sala de aula – o santo dos santos de tantos professores que se indignam com a burocracia – era o lugar por excelência dessa burocracia, da organização racional. Toda a organização da sala de aula e das instituições escolares tinha uma finalidade: formar uma elite burocrática, que o Estado iria empregar.

O problema nasce quando a escola pública se massifica. Quando deixa de ser uma escola profissional para elites muito reduzidas e pretende dar formação a todos os cidadãos. Os métodos de ensino adaptados à formação de elites colapsam com esta massificação. É aqui que emerge a contradição: os métodos pedagógicos para um ensino geral não se adaptam à eficiência e eficácia que o Estado exige das suas instituições. Este drama manifesta-se no controlo pela burocracia do papel sentido pelos professores. Quando há um conflito – um conflito surdo, apesar do grande ruído – entre duas racionalidades, a norma é que a racionalidade do poder se sobreponha à outra racionalidade, sempre mais frágil. Toda a malfadada burocratização da função docente e do trabalho nas escolas está ligado à racionalidade política, a qual é inerente, goste-se ou não, à escola pública. Não é um excrescência. É a sua natureza 

Os professores – e eu sou professor – querem o melhor de dois mundos. Querem a protecção do Estado, enquanto seus servidores, e a liberdade de aplicarem uma lógica – a lógica inerente à acção pedagógica – que entra em contradição com a racionalidade política do Estado. Até hoje não foi possível compatibilizar as duas lógicas. A lógica política – através do controlo da função docente – levou sempre a melhor. Por outro lado, o triunfo na sociedade de uma lógica pedagógica sobre a lógica político-burocrática talvez não agradasse muito aos professores. Em primeiro lugar, porque iria destruir a sua querida sala de aula, a qual é o centro nevrálgico de toda burocracia escolar (ver aqui). Em segundo lugar, o triunfo de uma lógica pedagógica sem o controlo da burocracia estatal implicaria, muito provavelmente, desligar a escola do Estado. Implicaria a morte da escola pública.

Os dias da escola são, pois, os dias deste drama, do confronto, porventura insanável, entre duas lógicas. Os dias da escola são também os dias de convivência com um monstro. E o monstro é a escola pública, que foi transformada de príncipe em sapo. Foi transformada, ao longo do século XX, de instituição feita para formar uma elite político-burocrática numa escola com a função de formar todos os cidadãos, queiram eles ou não. Com isto não estou a advogar o fim da relação entre o Estado e a Educação. Estou a tentar colocar as coisas nos seus devidos lugares. E só a partir da verdade poderemos pensar essa estranha e ambígua relação entre Estado e Educação, poderemos pensar o conceito de escola pública. Se não, nós professores limitar-nos-emos a exigir sol na eira e chuva no nabal.

domingo, 4 de setembro de 2016

Rumores de Maio - 11. Alcácer

Santiago Rodríguez del Hoyo - Cinzas (2000)

11. Alcácer

Em Alcácer fulguram cavalos de ferro
jardins de âmbar cansados de chorar.
Fecham-se leves nas vísceras da noite
e secretos regem os segredos do luar.

(Rumores de Maio, 1977)

sábado, 3 de setembro de 2016

O cavalinho à chuva

Franz Marc - Cavalo azul I (1911)

Que tire o cavalinho da chuva. É a isto que se resume a profundidade política em Portugal. Perante a mera hipótese de o PSD ser solicitado por alguém, sabe-se lá quem, a assumir algumas responsabilidades no próximo orçamento de Estado, Passos Coelho respondeu “que tire o cavalinho da chuva”. Não contesto a legitimidade do PSD se excluir dessas responsabilidades. Faz parte do jogo político. Contudo o recurso a este tipo de frases feitas não destrói apenas uma certa gravitas que deveria ser a marca do discurso político, mas revela um mundo mental que não pode deixar de ser preocupante.

Estamos perante o universo mental da pós-adolescência, quando a rapaziada, inebriada com o banho hormonal dispensado pela idade, se julga muito engraçadinha. No fundo, para toda esta gente que fez vida nas jotas partidárias – e, obviamente, não me refiro apenas a Passos Coelho e à JSD – a política continua a não passar de uma pilhéria de rapazolas – agora também de raparigas – que sentem dificuldade em regular o fluxo hormonal que os percorre.

O Presidente da República, talvez em desespero de causa, aconselhou a António Costa e a Passos Coelho a lerem a tetralogia das novelas napolitanas de Elena Ferrante. Percebo a intenção presidencial, mas seria muito doloroso, um verdadeiro salto no abismo, para toda esta classe política sair do mundo de aventuras de Harry Potter, onde se move há tanto tempo, para entrar no sombrio universo descrito por Ferrante. Julgo que, perante uma elite política em que a profundidade de pensamento se resume ao tire o cavalinho da chuva, Marcelo Rebelo de Sousa não terá, também ele, outro remédio senão tirar o cavalinho da chuva, antes que apanhe uma pneumonia.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Livro do Êxodo - 23. O zunir das varejeiras

Piet Mondrian - De boerderij Weltevreden bij Duivendrecht (1905)

Se os dias aqueciam, e se aqueciam, fechavam-se as portadas, depois de correr as cortinas, e o vidro reflectia o sol, inundando de raios o pequeno quintal, tão pequena nesta memória desmedida, onde as varejeiras zuniam sem descanso. Por vezes, sombras havia na cal que infestava de branco as tensas paredes, agitavam-se, as terríveis sombras, como pássaros ao luar e recolhiam-se casa adentro. Outras ficavam por ali a anoitecer, girando lentamente, uma lentidão premeditada como um grande crime, enquanto o vento soprava da serra e tingia o calor com nódoas de frescura vindas sabe-se lá de onde.

Na estrada, passavam gigantes empoleirados em cavalos, agora bicicletas de grossos aros, imitavam heróis de corridas, e assim se levantavam do selim, pés presos aos pedais, músculos retesados sob calças apanhadas por mola de madeira, e atacavam o leve declive, antes de desaparecerem, a curva os escondia, como se uma multidão os esperasse e uma meta lhes desse com o fim da cavalgada uma grande glória. O cavaleiro, em suor desfeito, podia então, em fonte de pedra, lavar a cara, matar a sede e olhar o vazio, que a tudo rodeava. Não haveria banquete, nem coroa de louros, nem glória rutilante, tão pouco um Píndaro o cantaria, como aquele o fez a Hierão ou a Crómios, ambos de Siracusa, quando ganharam, em imortais sprints, as corridas, nos jogos, os deuses aos homens os impunham.

Quando agora as janelas se abrem, se as abrem, vê-se, ao olhar para fora, a erva rala em terreno aberto, um resto de trigo, vento e sol o batem, maçãs e laranjas ao abandono, pelo chão, o cansaço as tomara por dentro e a férrea vontade, que às árvores as ligavam, decaída, um sentimento de ausência as acometeu e afrouxou do pedúnculo a firmeza e, com surdo bater, um baque dir-se-ia, o chão as recebeu, entre ervas, pedaços de lama, gravetos caídos e já secos pela inclemência da luz. Neste abandono, noutros tempos, havia mãos que cuidavam de apanhar os frutos ainda não tocados e uma voz dizia: e do sobejo comam os animais do campo. Uma pequena procissão por ali vinha com andores, anjos saltitando, e um gato amarelo, daqueles que havia nas padarias, fugia de um inimigo imaginado e entrava, por um buraco, para uma casa de tijolo vacilante, branqueado pela cal, onde se guardavam utensílios de lavoura, restos de coisas que a vida trazia, chapéus de chuva, as varetas partidas, sacos de plástico, um monte de jornais velhos, a carcaça de algum brinquedo, as mãos criminosas, impuras de tanta inocência, de uma criança o desfizera.

Se os dias aquecem, fecham-se as portadas depois de correr as cortinas e o vidro reflecte o sol. As sombras, tão secretas na claridade da memória, partiram e o meio-dia é sempre tão escuro que os cavaleiros, exaustos de tanta cavalgada, deixaram as bicicletas em casa, passam velozes em carros de combate e os céus enchem-se do chiar dos pneus e do trovão dos klaxons. Aos caídos frutos ninguém apanha, nem procissões de animais vêm, no fulgor da tarde, roer os sobejos que a terra ainda dá. O gato amarelo, daqueles que havia nas padarias, morreu, e a última vendedeira de pão fechou a porta, onde já ninguém passava a pé ou a cavalo duma bicicleta. Ao longe, aqui tão perto, quase dentro de mim, apenas as varejeiras zunem.