quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Beatitudes (21) Sombras efémeras

Charles Marville, Allée bordée d'arbres, 1850-53
Os longos passeios sob a copa das árvores raptam os corpos aos terrores do Verão e abrem os espíritos à confidência. Os enamorados, de mãos dadas, caminham devagar e naquelas sombras benévolas vêem a promessa da sua eterna felicidade, incapazes de compreender que também a sombra é efémera.

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

A Casa Esquecida 2

Lee Krasner, Black and White, 1951

Um traço de azul corta-te o corpo,
desenha a luz na lâmina do olhar,
a mágoa da manhã como um fruto
a sangrar no sussurro do coração.

Ao longe, o mar, as dunas, um véu
de água preso ao silêncio, ao aroma
da maresia vinda no vagar das mãos,
no tempo tecido na teia da tua voz.

(1981)

domingo, 26 de janeiro de 2020

Alma Pátria 59: Aldina de Souza, O Trevo


(Para ouvir, clicar aqui)

Há coisas misteriosas, mesmo numa rubrica tão pouco dada ao mistério quanto este Alma Pátria. A visita de hoje é ao início dos tempos em que a ditadura tecia, com fios de aço, a teia com que acorrentou o país por décadas. O mistério reside no facto de estar atribuído o ano de 1931 (ver aqui) à gravação do 78 rotações onde está incluída canção O Trevo juntamente com As Sevilhanas, ambas pertencente à revista A Bola, e Aldina de Souza, a intérprete, ter morrido em 1930 vítima de uma doença que a acometia há cerca de um ano (ver aqui). Seja como for, fica aqui um testemunho desses primeiros tempos, onde a revista e a bola tinham um papel importante na diversão dos portuguesas. A revista morreu com o fim da ditadura, a bola democratizou-se e não no melhor sentido.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Rui Rio faz o seu caminho


Rui Rio tornou a vencer as eleições internas do PSD. Isso terá contrariado muita gente à direita, gente despeitada e ansiosa de que se retorne à política de punição das classes populares imposta por Passos Coelho. Rui Rio representa uma outra vertente do centro-direita. Nele não há ressentimento contra as classes populares, não se ilude com as fantasias dos putativos liberais portugueses e parece conhecer bem a estratificação do nosso tecido social. Tem outras virtudes. É autêntico, diz o que pensa e é capaz de enfrentar os poderes instalados, como se viu no Porto.

Certos sectores da direita – e também na esquerda, claro – acham-no um provinciano e uma personagem a fazer lembrar os tempos do Estado Novo. Será um provinciano, mas também um democrata convicto. Julgo que, apesar dos defeitos e limitações que possui, tem virtudes suficientes para dar um bom primeiro-ministro, que poderá introduzir um conjunto de rupturas importantes para o país, sem esfrangalhar o tecido social e sem devanear com as tontices liberais debitadas pelo grupo que rodeia o jornal Observador. Será liberal na economia, mas não tentará destruir os sindicatos nem o Estado social. Estará mais próximo de Angela Merkel do que de Margaret Thatcher.

Poderá derrotar a esquerda? Neste momento, a tarefa parece impossível. No entanto, a esquerda está mais frágil do que parece. É maioritária, mas não tem um projecto político comum. Mais do que isso, deixou de existir o temor da devastação social que Passos Coelho gerou em toda a esquerda e a uniu. Rui Rio está muito longe de assustar desse modo tanto o BE como o PCP. Por outro lado, a inconsistência, a arrogância e a falta de rumo do actual governo, com uma equipa ministerial fraca, tornar-se-ão, com o passar dos meses, cada vez mais óbvias. Os portugueses começarão a cansar-se de António Costa e a procurar uma alternativa.

Para chegar ao poder, Rui Rio precisa de sorte e de resolver três problemas. O primeiro é a criação de uma alternativa mobilizadora do país, tanto ao nível programático como no das pessoas com que se rodeará. Em segundo lugar, terá de unir o partido, sarar as feridas e curar as fracturas, o que o aroma do poder ajudará. Por fim, terá o problema mais complicado, o de ocupar o terreno da direita social que o estado comatoso do CDS está a deixar em aberto e que pode ser pasto para um partido como o Chega. Apesar da desvalorização que Rio tem feito das reais tendências antidemocráticas e iliberais do partido de André Ventura, seria uma vitória de Pirro ganhar as eleições e depender de gente como essa.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Beatitudes (20) O sábio desejo

Ilse Bing, Poster, Henry VIII, 1934
Também a memória que os homens deixam atrás de si é como os cartazes de publicidade colados em paredes e paliçadas de madeira carcomida pela humidade do tempo. Por um instante será vívida, depois empalidecerá e começará a rasgar-se. Haverá ainda lugar para fragmentos, mas serão quase irreconhecíveis, até que se tornará poeira levada pelo vento. Aceitar esse destino é mera resignação. Desejá-lo é o princípio da beatitude.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Ensaio sobre a luz (76)

Lilla Cabot Perry, A Snowy Monday, 1926
A neve resplandece no silêncio da paisagem. Vestígios de vida, promessas de ressurreição, um céu indeciso entre o Inverno e a Primavera. As árvores há muito despidas pelo vendaval esperam a luz que de súbito lhes traga o seu domingo de Páscoa.

sábado, 18 de janeiro de 2020

A Casa Esquecida 1

Gerhard Richter, Abstraktes Bild, 1994

Falavas do sol. Maio era uma maré de azul,
perfume oblíquo a ornar o sopro dos dias,
a clareira sôfrega desenhada sem demora
na cratera de cinza ou na esquina de erva.

Que palavras de sombra terei para te dar?
É uma casa geométrica, macerada
na névoa do cais, na brancura dos gestos.
Olho em teus olhos, o limo das lágrimas
a pulsar-me na língua, a imperfeição
com que roças as pedras da primavera.

Cuida da memória desta manhã, da luz
omissa da roseira, do pó que te cai do corpo,
promessa de chuva no herbário das mãos.

(1981)

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Nocturnos 4

Charles Hewitt, Night Time Coffee, London, 1952
A cidade sonâmbula desliza por dentro da neblina, recolhe-se temerosa do bafo fétido da invernia. As cabines telefónicas estão vazias. Apenas uma mulher aguarda o café que lhe permitirá enfrentar o rugir cadenciado das trevas, as mais negras, as que habitam na cave sombria do seu coração.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Arte, público e política

Arménio Dias, Escultura de Pedro Cabrita Reis vandalizada, 2019 (aqui)

Pedro Cabrita Reis, em artigo de opinião no Público, expõe a sua posição perante a polémica que se gerou com a inauguração da sua obra A Linha do Mar, no concelho de Matosinhos. A polémica oscilou entre a questão política – deverão as entidades públicas, à revelia dos eleitores e contra o sentimento estético destes – encomendar obras de arte para o espaço público e a questão estética – saber se aquela obra é ou não uma obra de arte.

O que o autor faz é a afirmação plena do artista, numa autonomia radical perante o público, onde se incluem o mercado e outros agentes que volteiam em torno do mundo das artes plásticas. Arte é aquilo que o artista determina enquanto tal. Esta perspectiva é completada pela ideia de que a obra de arte começa no pensamento do artista ou, para citar o insuspeito Leonardo da Vinci quando se referia à pintura, é uma coisa mental. A arte reside na subjectividade do artista e a obra material é apenas a manifestação dessa concepção subjectiva.

A autonomização progressiva da arte a que se assistiu a partir do Renascimento desaguou no conflito, que se tornou manifesto no século XX, entre parte significativa da arte contemporânea e o gosto do público, que se sente impotente para se transferir para a mente do artista e compreender as operações mentais que geram obras que ele não compreende e, pior, sente como ofensa ao seu sentimento estético. Enquanto a arte se exibe apenas no ambiente climatizado das galerias privadas, o grande público encolhe os ombros, pois nada daquilo lhe diz respeito.

O problema emerge quando, como no caso de Leça, a obra de arte está no espaço público e foi adquirida com dinheiros públicos. Como muitos argumentaram, a obra foi paga com os impostos daqueles que nunca dariam um cêntimo por uma obra de Cabrita Reis, pois não a compreendem, sentem-se ofendidos no seu sentimento estético e na sua ideia do que deve ser uma obra de arte. Este conflito entre a autonomia do artista e o gosto do público não tem solução. A autonomia do artista e da arte são bens que os artistas preservam como tão importantes quanto a vida e não é crível que uma massiva educação escolar tenha poder de alterar radicalmente o gosto do público.

Curioso em tudo isto é o papel dos agentes políticos dentro desta tensão. A sua decisão de escolherem artistas que o público não gosta tem um resultado paradoxal. Transforma uma diferença de percepção do que é ou deve ser a arte num diferendo em que, como no caso de A Linha do Mar, o antagonismo ultrapassa em muito um mero desacordo. Basta ler muitos dos comentários para perceber o grau de rancor e ressentimento que envolve a apreciação do trabalho do escultor. A presença do político gera uma explosão.

Todavia, esta explosão, gerada pela presença do elemento político, tem uma função iluminadora e isso é o outro lado do paradoxo. O público incapaz de perceber a obra de arte é posto perante o facto desta obra. Ela está ali e está iluminada pela polémica. Vai ser obrigado a olhar para ela e começar a vê-la. Ela saiu do espaço da indiferença sombria para uma clareira de onde o olhar não se pode desviar. Sem dar por isso, o público é invadido pela obra e esta começa a trabalhá-lo, a educar-lhe o olhar através do hábito da presença. A imaginação, de forma secreta, estabelece relações inesperadas, o que era negativo e tenebroso transforma-se lentamente no seu contrário. A coisa conceptual gerada na mente do artista torna-se também numa coisa conceptual na mente do espectador. Sentidos começam a nascer, linhas hermenêuticas abrem uma brecha no sentimento estético e começam a iluminá-lo. E isto será o que se pode esperar de uma obra de arte.

domingo, 12 de janeiro de 2020

Uma teocracia em apuros

Xaime Quessada, La Guerra, 1967
A imagem da república islâmica do Irão - uma teocracia no mundo moderno - não podia ter caído mais baixo do que caiu nos últimos dias. Não bastava já a humilhação de ver abatida uma das figuras mais importantes da estrutura política do país, numa acção de força marcadamente ilegal mas que ficará impune devido à impotência real do Irão perante os EUA, como a sua organização social e militar mostraram fragilidades insuportáveis. No funeral do general abatido, num clima de histeria política produto do acto americano e do discurso inflamado local, mais de cinquenta iranianos morreram esmagados pela turba. Depois, são os próprios iranianos que confundem um avião comercial com um míssil e o abatem, causando, para além das vítimas, muitas delas iranianas, um problema diplomático de não pequena monta. Esta imagem de impotência e fragilidade parece ser o oposto da inflamação dos discursos dos responsáveis em que a combinação da retórica política com a religiosa faz parecer que o Irão tem o poder de trazer o Apocalipse ao mundo ocidental. Enquanto isto, Israel sorri e ganha espaço para agir contra o Irão se tiver de o fazer para sua defesa. 

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

O discurso do rancor


Vivemos num país cordato e seguro, onde a violência é diminuta e o respeito pelos outros é significativo. Somos, ao mesmo tempo, medianamente ricos e medianamente pobres e, ao longo destes anos de democracia, temos sabido resolver os problemas com que nos deparámos. A nossa economia não é das mais brilhantes, mas também não é das piores. Não existem problemas com a presença de grandes comunidades estranhas à nossa cultura de base nem, tão pouco, nenhum perigo perceptível ameaça a independência e a liberdade da nação. Todos estes dados seriam suficientes para que nos fosse completamente estranho o discurso de rancor que existe nas redes sociais, que se propaga a grande velocidade, fazendo multiplicar as metástases da doença por todo o corpo social.

Esse rancor encontrou agora uma voz na Assembleia da República, voz que ameaça multiplicar-se. Pessoas que até aqui tinham mostrado posições políticas cordatas e razoáveis, onde imperava a tolerância com a diferença, estão a radicalizar-se, fazendo coro com os exploradores do ressentimento. Neste momento, a radicalização e o rancor vêm claramente da direita. Noutros tempos vieram da esquerda, embora nunca tivessem encontrado, nessa altura, a complacência social que existe neste momento para este tipo de discurso de ódio. Frequentar as redes sociais é uma lição sobre a erosão que a ideia de tolerância está a sofrer no nosso país. Esta radicalização social à direita – não nos partidos tradicionais da direita democrática, embora estes estejam já ameaçados por este clima – irá gerar, mais tarde ou mais cedo, idêntica radicalização social à esquerda.

Uma parte do país, ainda pequena mas em crescimento, parece apostada em criar um clima de ódio tal que poderá vir a pôr em perigo as instituições democráticas. O desejo de aniquilar o outro não é uma coisa que se diga apenas em surdina num grupo de amigos. Esse desejo é expresso todos os dias nas redes sociais, onde se multiplica como as células cancerosas no corpo de um paciente. Sabemos que entre fazer um comentário no facebook e passar à acção vai uma longa distância. No entanto, a banalização do discurso do ódio e do rancor social está a criar o clima que legitimará a acção violenta e, acima de tudo, a rejeição das instituições da democracia liberal. Muitas destas pessoas pretendem, a partir do discurso do rancor, abrir o caminho para tempos de cólera. Há gente que sonha com a violência como medida purificadora sabe-se lá de que pecados. Veremos se os nossos brandos costumes são suficientes para travar a raiva que parece haver por aí.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

A Origem da Luz 5

Sam Francis, Around the Blues, 1957-1962

Como posso voltar a esta casa e não ver o fogo?
Sou as cinzas, o carvão do olhar no ocaso do dia.
Todas as ciências me interditaram o puro ver,
montanhas erguidas na dor dos meus olhos,
cansados, esquecidos na núbil noite dos ofícios.

Casa branca e fugaz, casa de cal no calor do Estio.
Casa de sombra onde vozes e mãos ecoam,
jogam o destino que em mim se joga. Esqueci-me
das silenciosas perguntas, das faúlhas a ranger
nesta terra azul, na pedra fatigada presa ao céu.

Os mortos não me enlouquecerão pela ausência.
Na Primavera, cabelos de neve traziam o pólen
e na água dos tanques nascia uma imagem.
Imaginando, o corpo crescia e a imagem,
um espelho de onde fujo para a noite a sangrar.

(1981)

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Beatitudes (19) O ilimitado

John Gutmann, The Cry, 1939
Não haverá hora mais feliz do que aquela em que um obstáculo é fendido e uma mão acena para além daquilo que tolhe o homem. Quebrar o que limita, abrir-se ao ilimitado é o único caminho para a beatitude.

sábado, 4 de janeiro de 2020

Nocturnos 3

Izis, Place de la Concorde, Paris, c. 1958
Uma aguarela sombria ou então a história de como a luz brilha nas trevas e estas não a reconhecem. A noite avança, lenta e incauta, em direcção ao dia, que se faz anunciar no artifício eléctrico. Os homens dormem pois temem tudo o que a escuridão torna secreto.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Descrições fenomenológicas 49. Um homem espera

Victor Vasarely, Serigraphie Originale. Avec une Etude de Imre Pan, 1960

A esquina do prédio assinala o cruzamento de duas ruas, daquelas que se encontram nas grandes cidades mas ao serem olhadas com demora lembram as das pequenas vilas de província, se não mesmo de algumas aldeias mais populosas, memórias que vêm agarradas aos corpos e às vidas que para ali foram transplantados. Nas paredes há cartazes anunciando toda a espécie de espectáculos. Teatro, circo, um combate de boxe, até uma representação da Manon Lescault. São assim as grandes cidades, onde em espaço tão próximo convivem espécies que ninguém se lembraria de sentar à mesma mesa. Voltada para a rua principal, existe uma farmácia, com a sua porta metálica e uma montra com produtos de beleza. Entram e saem pessoas com ar sofrido, silenciosas, pois a doença, sua ou de alguém próximo, precipita-as para um irremediável desconsolo, mesmo que o mal não seja mais que uma leve constipação, que o ponderado conselho do farmacêutico ajudará a debelar com brevidade. O trânsito passa indiferente e lento, lançando baforadas de fumo que se elevam, deixando um odor rançoso no ar. No passeio, exactamente na esquina do prédio, um homem especado espera. Tudo nele é anacrónico. O chapéu de abas bege com fita negra, o fato com colete, a gravata com um padrão que se terá usado há um século. A mão esquerda repousa no bolso das calças, enquanto a direita segura um cigarro, levando-o à boca para aspirar o fumo, que logo expele pelas narinas. Forma-se então uma pequena nuvem azulada pela luz. O homem olha fixamente para o fim da rua, indiferente aos clientes que entram e saem da farmácia. Quem ele espera, por certo, não precisará de medicamentos nem de conselhos sobre o estado de saúde. Por vezes, nota-se-lhe na face um rito de desapontamento, mas logo desaparece sob uma sombra de irritação, que acaba disfarçada por um sorriso paciente e uma bonomia jocosa. Parece saber que a espera será infrutífera, embora não possa deixar de se lhe entregar. Nunca é tentado a ver as horas no relógio de corrente adormecido num bolso do colete, como se a sua expectativa não fosse marcada pelo ritmo dos minutos e das horas, demasiado exíguo para assinalar o tempo que terá de aguardar. Quando o cigarro acaba, atira-o com indiferença para o chão, pisa-o com desdém e acende um novo com um fósforo retirado de uma pequena caixa de cartão. O olhar não se desprende do fim da rua, o corpo está grudado ao passeio. Da farmácia sai uma bela mulher, passa por ele, olha-o surpreendida e continua. Os olhos dele nem se movem presos à esperança daquilo que há-de vir do fim da rua e crescer para dentro do seu olhar nunca cansado de esperar.