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Arménio Dias, Escultura de Pedro Cabrita Reis vandalizada, 2019 (aqui) |
Pedro Cabrita Reis, em artigo de opinião no
Público,
expõe a sua posição perante a polémica que se gerou com a inauguração da sua
obra
A Linha do Mar, no concelho de
Matosinhos. A polémica oscilou entre a questão política – deverão as entidades
públicas, à revelia dos eleitores e contra o sentimento estético destes –
encomendar obras de arte para o espaço público e a questão estética – saber se
aquela obra é ou não uma obra de arte.
O que o autor faz é a afirmação plena do artista, numa
autonomia radical perante o público, onde se incluem o mercado e outros agentes
que volteiam em torno do mundo das artes plásticas. Arte é aquilo que o artista
determina enquanto tal. Esta perspectiva é completada pela ideia de que a obra
de arte começa no pensamento do artista ou, para citar o insuspeito Leonardo da
Vinci quando se referia à pintura, é uma coisa mental. A arte reside na
subjectividade do artista e a obra material é apenas a manifestação dessa concepção
subjectiva.
A autonomização progressiva da arte a que se assistiu a
partir do Renascimento desaguou no conflito, que se tornou manifesto no século
XX, entre parte significativa da arte contemporânea e o gosto do público, que
se sente impotente para se transferir para a mente do artista e compreender as
operações mentais que geram obras que ele não compreende e, pior, sente como
ofensa ao seu sentimento estético. Enquanto a arte se exibe apenas no ambiente climatizado
das galerias privadas, o grande público encolhe os ombros, pois nada daquilo
lhe diz respeito.
O problema emerge quando, como no caso de Leça, a obra de
arte está no espaço público e foi adquirida com dinheiros públicos. Como muitos
argumentaram, a obra foi paga com os impostos daqueles que nunca dariam um
cêntimo por uma obra de Cabrita Reis, pois não a compreendem, sentem-se
ofendidos no seu sentimento estético e na sua ideia do que deve ser uma obra de
arte. Este conflito entre a autonomia do artista e o gosto do público não tem
solução. A autonomia do artista e da arte são bens que os artistas preservam
como tão importantes quanto a vida e não é crível que uma massiva educação
escolar tenha poder de alterar radicalmente o gosto do público.
Curioso em tudo isto é o papel dos agentes políticos dentro
desta tensão. A sua decisão de escolherem artistas que o público não gosta tem um
resultado paradoxal. Transforma uma diferença de percepção do que é ou deve ser
a arte num diferendo em que, como no caso de A Linha do Mar, o antagonismo ultrapassa em muito um mero
desacordo. Basta ler muitos dos comentários para perceber o grau de rancor e
ressentimento que envolve a apreciação do trabalho do escultor. A presença do
político gera uma explosão.
Todavia, esta explosão, gerada pela presença do elemento político, tem uma função iluminadora e isso é o
outro lado do paradoxo. O público incapaz de perceber a obra de arte é posto
perante o facto desta obra. Ela está ali e está iluminada pela polémica. Vai
ser obrigado a olhar para ela e começar a vê-la. Ela saiu do espaço da
indiferença sombria para uma clareira de onde o olhar não se pode desviar. Sem
dar por isso, o público é invadido pela obra e esta começa a trabalhá-lo, a
educar-lhe o olhar através do hábito da presença. A imaginação, de forma
secreta, estabelece relações inesperadas, o que era negativo e tenebroso transforma-se lentamente no seu contrário. A coisa conceptual gerada na mente
do artista torna-se também numa coisa conceptual na mente do espectador. Sentidos
começam a nascer, linhas hermenêuticas abrem uma brecha no sentimento estético
e começam a iluminá-lo. E isto será o que se pode esperar de uma obra de arte.