sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

O discurso do rancor


Vivemos num país cordato e seguro, onde a violência é diminuta e o respeito pelos outros é significativo. Somos, ao mesmo tempo, medianamente ricos e medianamente pobres e, ao longo destes anos de democracia, temos sabido resolver os problemas com que nos deparámos. A nossa economia não é das mais brilhantes, mas também não é das piores. Não existem problemas com a presença de grandes comunidades estranhas à nossa cultura de base nem, tão pouco, nenhum perigo perceptível ameaça a independência e a liberdade da nação. Todos estes dados seriam suficientes para que nos fosse completamente estranho o discurso de rancor que existe nas redes sociais, que se propaga a grande velocidade, fazendo multiplicar as metástases da doença por todo o corpo social.

Esse rancor encontrou agora uma voz na Assembleia da República, voz que ameaça multiplicar-se. Pessoas que até aqui tinham mostrado posições políticas cordatas e razoáveis, onde imperava a tolerância com a diferença, estão a radicalizar-se, fazendo coro com os exploradores do ressentimento. Neste momento, a radicalização e o rancor vêm claramente da direita. Noutros tempos vieram da esquerda, embora nunca tivessem encontrado, nessa altura, a complacência social que existe neste momento para este tipo de discurso de ódio. Frequentar as redes sociais é uma lição sobre a erosão que a ideia de tolerância está a sofrer no nosso país. Esta radicalização social à direita – não nos partidos tradicionais da direita democrática, embora estes estejam já ameaçados por este clima – irá gerar, mais tarde ou mais cedo, idêntica radicalização social à esquerda.

Uma parte do país, ainda pequena mas em crescimento, parece apostada em criar um clima de ódio tal que poderá vir a pôr em perigo as instituições democráticas. O desejo de aniquilar o outro não é uma coisa que se diga apenas em surdina num grupo de amigos. Esse desejo é expresso todos os dias nas redes sociais, onde se multiplica como as células cancerosas no corpo de um paciente. Sabemos que entre fazer um comentário no facebook e passar à acção vai uma longa distância. No entanto, a banalização do discurso do ódio e do rancor social está a criar o clima que legitimará a acção violenta e, acima de tudo, a rejeição das instituições da democracia liberal. Muitas destas pessoas pretendem, a partir do discurso do rancor, abrir o caminho para tempos de cólera. Há gente que sonha com a violência como medida purificadora sabe-se lá de que pecados. Veremos se os nossos brandos costumes são suficientes para travar a raiva que parece haver por aí.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

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