Francisco Díaz de León, Carrousel, 1930 |
No Público de hoje, António Guerreiro explora a natureza
icónica das imagens dos talibans a ocupar o palácio presidencial, salientando
aquela em que os guerrilheiros surgem armados e dispostos à volta da secretária
de trabalho do Presidente em fuga, a sua natureza inquietante ou, para ser mais
preciso, a sua inquietante estranheza. Todas as imagens que nos chegam do
Afeganistão têm, contudo, um poder enorme de suscitar, para além dessa inquietante
estranheza, um sentimento de má consciência. Muitas delas terão sido captadas
com essa intenção, mas não seriam necessárias. Bastariam aquelas que nos chegam
e são emanações espontâneas de consciências ingénuas.
Há, contudo, um conjunto de imagens, com não menos poder icónico e capacidade explicativa, a que não se tem dado o relevo que merecem. São filmagens de combatentes talibans em Cabul, num parque de diversões, andando em carrinhos de choque e em carroceis. Homens barbudos, militarmente competentes e vencedores, ameaçadores para tudo o que se lhe opõe e às suas crenças. No entanto, eles estão ali, no momento da vitória, como crianças e jovens adolescentes. Essas imagens convocam, de imediato, por oposição, um célebre texto de Kant, O que é o Iluminismo?
Vale a pena citar o primeiro parágrafo do texto de Kant: “Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a guia de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo.”
Aqueles guerrilheiros eufóricos no parque de diversões da capital afegã, homens de coragem física e capacidade militar, no fundo não passam de menores. A sua menoridade reside na falta de coragem para se servirem do seu próprio entendimento sem a condução de outrem, de um chefe supremo, de um grande líder, ou de qualquer outra figura que dê corpo à necessidade de um mestre e senhor.
A inquietante estranheza que sente António Guerreiro perante as imagens do palácio presidencial é bem mais nítida e ameaçadora, para nós, ocidentais, nas imagens de combatentes infantilizados num parque de diversões. Porquê? Em primeiro lugar, porque também em nós, ocidentais, existe uma nostalgia da infância e da adolescência, desses tempos paradisíacos de menoridade. Em segundo lugar, porque o peso da liberdade e da responsabilidade individuais é, muitas vezes, excessivo para aquilo que podemos suportar. Em terceiro lugar, porque entre nós o desejo de retorno a um tempo de menoridade se manifesta cada vez com mais força. Foi ele que elegeu Trump e Bolsonaro, é ele que faz crescer as intenções de voto em Ventura, é ele que alimenta o apoio aos partidos populistas na Europa, é ele que levou ao poder personalidades anti-iluministas, na Polónia ou na Hungria.
A inquietante estranheza nasce porque, no fundo de nós, existe uma inclinação para obedecer ao mestre e, como meninos obedientes e bem-comportados, poderemos ir à feira, ao carrocel e aos carros-de-choque. No íntimo dos ocidentais, na sua consciência dilacerada, defrontam-se a má-consciência pelo abandono a que os afegãos – principalmente as afegãs – tocadas pelo Iluminismo foram votados e essa inclinação para a menoridade e para a servidão voluntária.
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