terça-feira, 28 de junho de 2022

Rebelo da Silva, Lágrimas e Tesouros

Publicado originalmente em 1863, Lágrimas e tesouros – fragmento de uma história verdadeira, de Luís Augusto Rebelo da Silva, é um romance histórico cuja acção se situa durante o reinado de Maria I, a Piedosa, também cognominada a Louca. Inserido na corrente estética do romantismo, a obra parece centrar-se na suposta paixão entre Maria de Meneses, filha do então estribeiro-mor da Rainha, o Marquês de Marialva, e o inglês William Beckford, então em viagem por Portugal, para, segundo o autor, curar o profundo desgosto pela morte da mulher, Margarida, embora as razões da viagem de Beckford pela Europa pareçam ter sido outras. Em torno deste amor luso-britânico, contudo, desenrola-se o jogo da política e, também, da religião, as quais naquela hora ainda se misturavam.

A tensão amorosa deve-se não a um obstáculo formal e exterior aos apaixonados, como a pertença a famílias inimigas, mas por um conflito que, apesar de vir de fora, é subjectivado e torna-se um conflito dentro da consciência. Trata-se da oposição entre tradições religiosas, o catolicismo de Maria de Meneses e o protestantismo de Beckford. Este recusa-se a uma conversão à Igreja de Roma, pois ofenderia com isso a memória dos pais, seria uma apostasia. Ela, tomada pelo escrúpulo religioso de casar com alguém fora da sua religião e pelo temor perante um amor que não pode prosseguir na vida eterna, assumindo que ela, como católica, teria à sua espera o paraíso, e ele, como herege protestante, estaria condenado à perdição. O tormento nas consciências, principalmente na da rapariga, é o nó do caso amoroso e tem um papel fundamental no desenlace. Rebelo da Silva serve-se da personagem Maria para, de algum modo, espelhar a própria Rainha perdida no labirinto da consciência, no temor pela condenação eterna do pai, devido às perseguições políticas de Pombal contra uma parte substancial da aristocracia da época, no temor da sua própria condenação.

O que será mais estranho, para um leitor do século XXI, é o pathos em que o amor, entre a filha do marquês de Marialva e o jovem viúvo inglês, é declinado. Há toda uma linguagem artificiosa, uma declamação da paixão e da pureza que se nos tornaram estranhas. Contudo, essa artificialidade do discurso amoroso serve para sublinhar o contraste entre a nobreza do de um amor puro, nascido do sentimento, e a vulgaridades dos negócios públicos e da política. É um exercício retórico romântico que sublinha o valor da interioridade por oposição ao mundanismo. A partir das estratégias retóricas seleccionadas, Rebelo da Silva manifesta a oposição radical entre o mundo do coração e o mundo da razão política. De modo bem diverso da tragédia grega, as acções dos seres humanos nobres fundam-se na pureza do coração, enquanto a acção no palco político, mesmo se os agentes são aristocratas, nunca deixa de parecer uma comédia, onde se representam as paixões dos homens vulgares.

A trama política gira em torno de uma aliança entre a aristocracia ainda dorida pelo tratamento a que foi submetida por Pombal e a Companhia de Jesus. Pretende-se manobrar de modo a que a Rainha, presa na sua debilidade mental e no terror religioso, anule, por decisão política, as condenações a que as várias famílias aristocráticas foram sujeitas, bem como a expulsão dos Jesuítas. Há, no romance, um paralelismo entre a consciência dilacerada de Maria I e a de jovem Maria de Meneses. Esta, como se escreveu acima, vive o conflito entre o amor e a fé, uma fé rigorosa e o medo do juízo eterno. A consciência da Rainha cinde-se também entre o amor à honra e à memória do pai – uma reabilitação dos condenados seria uma condenação do pai – e o dever de caridade e misericórdia, que lhe poderia evitar a condenação depois da morte. No cenário político, movem-se três facções. A dos fiéis a Pombal, que pretendem evitar qualquer revisão dos processos, incluindo a condenação da posteridade dos culpados. A dos que pretendem uma revisão total e anulação das condenações e aqueles que, de um modo aristotélico, pretendem encontrar um meio termo, partido em que é envolvido, pelo talento de um jesuíta, Beckford. Não querem tanto a absolvição dos condenados, mas um acto de misericórdia para os descendentes que, na verdade, são inocentes.

Rebelo da Silva, a partir deste conflito, dá a ver a natureza da corte, das forças que jogam de modo dissimulado, como se toda a realidade – feita de múltiplos desejos, da busca desesperada de reconhecimento, de uma luta sem fim e sem escrúpulos – se escondesse atrás da afabilidade das convenções palacianas. Não esquece o retrato da Companhia de Jesus, ainda banida no país durante o tempo da acção narrativa, da sua capacidade diplomática, do seu poder de manobra, da sua inteligência táctica e da sua moderação religiosa, adversária do fanatismo a que hoje chamaríamos fundamentalismo religioso. Também os Jesuítas esperam reverter a sua situação. Qualquer revisão do processo dos aristocratas seria uma porta aberta para a Companhia fazer valer os seus direitos.

O romance é um hábil jogo de espelhos, em que Maria de Meneses, a jovem apaixonada e temerosa do juízo divino, e Maria de Bragança, a rainha dividida e atormentada pelo temor do inferno, se reflectem uma à outra. Entre elas, uma na sua inocência virginal e a outra na inocência da loucura, desenrola-se um carnaval sem fim, feito vaidades, orgulhos feridos, vinganças, enganos, traições, alianças tácticas e rupturas estratégicas, feito de poderes dissimulados e de submissões sem carácter, isto é, tecido com o fio da própria vida. As duas mulheres são, na verdade, presenças metafísicas. A Rainha não entra na trama romanesca, mas é uma sombra que paira sobre ela. A filha do marquês de Marialva, a heroína do romance, é uma bela sombra encarnada, uma presença metafísica que entra no jogo, mas que não lhe pertence. Um anjo, caso os anjos tivessem sexo. Entre elas e a suas belas e atormentadas consciências, decorre o jogo em que as consciências se conspurcam para poderem gritar vitória ou apenas para sobreviverem.

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