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Darío de Regoyos y Valdés, Plaza de un pueblo |
Rumores ferviam
na sombra da vila.
A vinda do calor,
ervas calcinadas,
o vinho do rancor
na luz do Verão.
[1993]
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Juan José Aquerreta, Ácida Tristeza, 1991 |
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August Sander, Village Schoolteacher, 1921 |
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George Hoyningen-Huene, Divers, Paris, 1930 |
- O que está a ver?
- Nada.
- Ah. Está tão concentrado no horizonte.
- O horizonte fascina-me.
- Alguma razão específica para tanto fascínio.
- Sim. O simples facto de ser uma linha.
- A linha do horizonte.
- Claro, a linha do horizonte.
- E o que tem ela de tão fascinante?
- Não sei.
- Não sabe?
- Não. Não consigo ver mais do que a linha.
- E isso é fascinante?
- Nem por isso.
- Não percebo.
- Falta de treino. Talvez falta de imaginação.
- Tornei-me sua inimiga, para me acusar de não saber fantasiar?
- Não se trata de inimizade.
- Então?
- Apenas a constatação de que os seus limites morrem na linha do
horizonte.
- E os seus?
- Os meus vão bem para lá dela.
- E o que vê?
- A linha do horizonte.
- Pensava que via para além dela.
- Gostava de ver, mas a linha cega-me.
- Sim, eu já sabia que estava cego.
- Porquê?
- Porque nem a mim me vê.
Não se pense, todavia, que o interesse do romance reside nas
suas implicações políticas. Estas são um meio para atingir um fim: a análise do
papel do ressentimento na subjectividade moderna. A obra é uma exploração da
consciência de Theodor Lohse, um tenente desmobilizado do exército alemão, a
análise da tensão entre os desejos que acalenta e a realidade que é a sua. O
espaço que existe entre ambos é o solo onde o ressentimento vai crescer. A
limitação que o caracteriza não lhe permite confrontar-se consigo mesmo,
perceber quais são, no âmbito de uma moralidade saudável, as suas forças e as
suas possibilidades. É ela – a limitação – que o conduz a odiar os judeus, os
socialistas, os movimentos operários. São, para Theodor Lohse, os culpados da
sua situação. O outro não o interpela no sentido do respeito, mas é aquele que o
impede de ser aquilo que deseja ser. O ressentimento nasce, assim, para
utilizar uma expressão do campo da psicanálise, de uma ferida narcísica.
Esse narcisismo dilacerado, turbilhonado pelo ressentimento,
transforma-se num duplo egoísmo: o pessoal e o nacional. O protagonista
principal é um nacionalista, pois a sua ferida narcísica é também a de uma
Alemanha ressentida, derrotada na Grande Guerra de 1914-1918, submetida ao jugo
do Tratado de Versalhes pelas potências vitoriosas. O romance permite perceber
que o nacionalismo é um narcisismo colectivo. Imerso nesse ambiente, Lohse, na
ânsia de encontrar uma autonomia – isto é, poder e dinheiro –, põe em acção todas
as características que marcam o jovem europeu de então. Não apenas o egoísmo e
o nacionalismo, mas também a falta de fé, a ausência de lealdades e a sede de
sangue. Para subir, não hesita em assassinar os que estão acima de si na
hierarquia. O ressentimento é o combustível para as maiores degradações morais.
O título A Teia de Aranha (Das Spinnennetz) é
uma imagem tanto da situação em que a Alemanha vivia durante a República de
Weimar, como das pretensões do protagonista. A derrota alemã e o fim da
Monarquia tinham atirado o país para uma enorme teia de contradições, de
interesses, de agitações políticas, de frustrações sociais, onde elites
corruptas vicejavam e tentavam controlar, em seu favor, a situação. Também o
protagonista se imaginava a aranha que tece a sua teia, onde os incautos vão
caindo, enquanto ele se fortalece ao devorá-los. No entanto, a sua limitação
não lhe permite perceber que ele próprio é uma mosca em teias que outros tecem,
como o espião judeu Benjamin Lenz e a própria mulher Elsa von Schlieffen. Lenz
é um niilista e odeia tudo: a Europa, o Cristianismo, os judeus, os monarquias,
as repúblicas, a Filosofia, os partidos, os ideais, as nações. É superiormente
dotado e manipula tudo e todos. Espia para Lohse, espia para os comunistas,
espia para a polícia. O dinheiro que ganha com isso nem é para ele, envia-o
para a família. O seu prazer é, parecendo irrelevante, ser o manobrado central.
É ele que promove Theodor Lohse, que lhe apresenta as pessoas certas, que o faz
ter o nome nos jornais, que lhe apresenta a mulher, uma jovem aristocrata já
sem dinheiro, mas com ambições e saber manipulatório suficiente para, obedecendo
em aparência ao carácter autoritário do marido, o conduzir na ascensão social e
política.
Beneficiando, da sua experiência de jornalista de grande
talento, Joseph Roth retrata, com profundidade, a situação social da Alemanha.
Fá-lo, adoptando as orientações estéticas da nova objectividade que
tinha surgido em conflito com o expressionismo, como superação de uma visão
hiperbólica da dimensão sentimental. Theodor Lohse, Benjamin Lenz e Elsa von
Schlieffen são, ao mesmo tempo, personagens credíveis na sua singularidade e
arquétipos ideais. Theodor Lohse encarna o autoritário protofascista. Benjamin
Lenz, o judeu desenraizado. Elsa von Schlieffen, a aristocrata derrotada pelo
empobrecimento da família e o fim da Monarquia, mas ambiciosa por retornar ao
centro do poder. Se há, porém, um traço que os une é o niilismo. Este
alimenta-se de uma enorme gama de inclinações: o ressentimento, o narcisismo, a
ambição, o desejo de manipular, a vontade de poder. E é isso que Roth mostra,
não sem uma funda ironia narrativa, numa Berlim à deriva, num mundo onde ordem
e desordem se confundem.
Existem duas grandes motivações por detrás deste interesse
pela criminalidade. Uma estará ligada à lógica de mercado: o crime dá
audiências na televisão e tiragens na imprensa. É o mercado a funcionar. As
pessoas interessam-se por esses acontecimentos e o mercado satisfaz-lhes os
desejos. A segunda motivação é de natureza política. Assim como os dirigentes
do Estado Novo temiam que a criminalidade do país estragasse a imagem do
regime, também os inimigos da democracia liberal utilizam a percepção da
criminalidade como estratégia para desgastar as instituições democráticas. Fomentam
um enorme alarido social em torno da segurança, quando o país é um dos mais
seguros do mundo. Mesmo para um observador arguto, nem sempre é fácil
distinguir, na exploração dos crimes, entre a motivação económica e a política.
Durante muito tempo, foi vital para as democracias liberais
a existência de uma esfera informativa livre, onde a concorrência de ideias,
para alimentar o debate em torno do bem comum, se podia expressar sem censura.
Essa esfera tornou-se, agora, num dos elementos centrais da guerra contra a
democracia. A criação de falsas percepções no público tem um efeito arrasador
das instituições e está a alimentar o progresso eleitoral da extrema-direita.
Isto não significa que não existam órgãos da comunicação social que tentam
fazer um trabalho responsável. Existem. Contudo, a cultura instalada por parte
significativa dos media está a tornar os cidadãos pouco permeáveis à
verdade, preferindo as aparências à realidade. Salazar dizia que, em política,
o que parece é. Os seus admiradores não esqueceram a lição: criam a aparência
de um país à beira do caos, para as pessoas crerem que assim é e se entregarem
nas mãos do salvador de serviço.
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Julius Strakosch, Fin du Jour, 1895 |
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Pere Ysern Alié, Cisne en el Bois de Boulogne, 1921 |
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Almada Negreiros, Porta da harmonia, 1957 |
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Peter von Hess, Nächtliche Rast in einem Kirchdorf (Städel Museum, Frankfurt am Main) |
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Wassily Kandinsky, Street in Murnau with Women, 1908 |
O que leva as pessoas, segundo o autor, a ser de direita ou
de esquerda são intuições morais. A moralidade terá, no mínimo, seis
fundamentos diferentes, que se organizam em pares de opostos: cuidado/dano,
justiça/engano, lealdade/traição, autoridade/subversão, santidade/degradação e
liberdade/opressão. São estes aspectos que, intuitivamente, as pessoas usam
para fazerem juízos morais e para codificarem a sua posição política. As
pessoas de esquerda baseiam a sua moralidade, fundamentalmente, nas ideias de Cuidado
e de Justiça. As pessoas de direita apresentam um espectro moral mais alargado,
onde a Lealdade, a Autoridade e a Santidade (certas coisas são consideradas
sagradas e intocáveis) têm um papel preponderante. Pessoas de esquerda e de
direita valorizam a Justiça e a Liberdade, mas interpretam-nas de modo
diferente. As pessoas discordam politicamente porque preferem inconscientemente
sabores morais diferentes.
As ideias de Haidt são úteis para pensar como devem agir as
lideranças políticas. Uma possibilidade é concentrarem-se apenas nos
fundamentos morais da sua tribo política: a esquerda valoriza o cuidado e a
justiça igualitária; a direita, a lealdade ao grupo, a autoridade e a
sacralidade de certas instituições. Este caminho conduz à polarização, a
guerras culturais – que são, afinal, conflitos morais. Líderes responsáveis, de
ambos os lados, devem procurar estabelecer pontes com quem tem gostos morais
diferentes. Ser político é mais do que ser de esquerda ou de direita. É, sem
negar a sua preferência de sabores morais, procurar laços com os outros, porque
a política visa o bem comum. A democracia não é a vitória total de um lado e a
derrota do outro, mas a alternância de sabores e o respeito por quem tem gostos
diferentes. Ora sabe mais a sal, ora mais a pimenta. O essencial é a qualidade
do alimento: a governação de uma comunidade que se pretende unida na
diversidade.
Qualquer cidadão – incluindo os militares, desde que não
estejam no activo – tem o pleno direito de se candidatar. Gouveia e Melo, o
almirante candidato, e Isidro Morais Pereira, o major-general putativo
candidato, estão no pleno direito, enquanto cidadãos, de serem candidatos à
Presidência da República. O problema é que não se conhece, em nenhum deles,
qualquer competência política. Têm uma completa virgindade política, uma
inocência completa perante os dilemas que a gestão política coloca a quem ocupa
a Presidência. São conhecidos do público: um, o almirante, pela boa gestão da
distribuição e aplicação dos stocks de vacinas; o outro, pelo comentário
militar na televisão. Podem ter currículos militares brilhantes, podem ser bons
gestores de armazéns ou analistas militares, mas nada disso nos diz seja o que
for sobre como vão lidar com um mundo em que o Presidente da República tem
menos poderes que um almirante ou um general no seu ramo das Forças Armadas.
Se a candidatura de um ou dois militares, sem preparação
política, é já um sintoma forte da doença da democracia portuguesa, aquilo que
torna apetecíveis as suas candidaturas é decisivo para um diagnóstico dessa
doença. A sua real vantagem eleitoral é não serem políticos, nada saberem
daquilo a que se candidatam. Parte dos portugueses tem um problema com os
políticos. As pessoas pensam que não vivem tão bem quanto desejam por culpa dos
políticos. Os fracassos sociais e existenciais de cada um não são sua culpa,
mas dos políticos, transformados em bodes expiatórios. A solução é escolher não
políticos para os cargos que exigem políticos preparados. Isto é uma doença
porquê? Por dois motivos: em primeiro lugar, porque as pessoas continuam a
acreditar que têm de ser os outros – os políticos – a tratar da sua vida; em
segundo, porque essa crença leva a escolhas pouco razoáveis de pessoas sem
qualquer preparação para cargos altamente exigentes.