segunda-feira, 30 de abril de 2018

No reino da caricatura


A minha crónica em A Barca.

Nos anos 90 do século XX vivia-se uma onda de democratizações, a qual teve início em Portugal, no ano de 1974, e se prolongou com o fim dos Estados ditos socialistas na Europa de Leste. A democracia representativa parecia ser o destino final de qualquer regime político. Seria uma questão de tempo para que Estados autoritários se tornassem democráticos. Passados vinte anos, a democracia representativa está moribunda em muitos lugares e mesmo na Europa e nos Estados Unidos apresenta sintomas de doença grave.

As causas económicas, sociais e políticas da patologia são múltiplas. Deixo-as de lado, para comentar um outro aspecto que os próprios regimes democráticos, pela sua natureza, não conseguem ver. Trata-se da dessacralização do poder. As democracias nasceram da decomposição dos Estados absolutos ou, mais recentemente, de regimes autoritários. Tanto num caso como no outro, a figura do governante estava sacralizada de tal maneira que o cidadão comum quase via uma auréola à volta da cabeça do homem político.

As democracias vivem da separação entre o poder político e a religião. Essa separação, contudo, não implicou de imediato que o governante de uma democracia fosse visto como um homem normal. A sacralidade do poder, herdada dos regimes depostos, envolvia-o ainda e dava-lhe uma legitimidade simbólica que completava a legitimidade dos votos. A partir de certa altura, com o crescimento dos órgãos de comunicação de massas, em especial da televisão, a visão do homem político pelos cidadãos muda. As pessoas começam a perceber que ele é um homem como qualquer outro e não um representante da divindade.

Com o advento das redes sociais, a dessacralização do político torna-se total. Escrutinado impiedosamente dia e noite por voyeurs ávidos, caluniado por adversários sob a cobertura do anonimato, o homem político emerge aos olhos das pessoas em toda a sua venalidade. A máscara da velha gravitas do poder cai. Vaidoso, arrogante, mentiroso, pleno de caprichos, muitas vezes corrupto, é isto que o homem comum vê nos políticos, agora que o véu sagrado que cobria o poder foi queimado na praça pública.


Perante o desencantamento, o eleitor parece ter um plano de vingança. Se aqueles que têm governado, apesar da gravidade e ar respeitável que ostentam, são pessoas comuns e venais, então que se escolham aqueles que não disfarçam. Os eleitores passaram a eleger autênticos clowns, gente claramente não confiável e, muitas vezes, risível. Através de escolhas caricatas, o eleitorado – irado e irónico – parece apostado, agora que lhe roubaram a ilusão de um poder sagrado, em transformar as democracias em reinos da caricatura.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

O desafio

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Tenho estado a ler The Benedict Option: A Strategy for Christians in a post-Christian Nation, um livro do conservador Rod Dreher. O autor, um cristão ortodoxo americano, defende que os Estados Unidos são já uma sociedade pós-cristã. O livro apresenta uma proposta de resistência dos cristãos ao modo de vida actual. Uma parte dessa estratégia passa pela educação das novas gerações. Dreher defende que as famílias cristãs devem evitar educar os filhos nas escolas públicas. Caso não tenham dinheiro para uma escola de orientação religiosa, a opção é fazer a escolaridade em casa, para as novas gerações não serem contaminadas pela cultura existente na sociedade pós-cristã.

Deixando de lado a visão apocalíptica do autor, há um problema crucial que se coloca relativamente à educação das novas gerações. E esse problema toca a cristãos, agnósticos e ateus. Como fazer passar os valores familiares para os filhos? A questão surge pelo peso desmesurado que os grupos de amigos, que se constituem, por norma, na escola, têm na formação dos jovens. Esses grupos inscrevem-se numa cultura que rompe, de forma radical, com os valores da família, cultura essa que é um produto híbrido entre a imaturidade das novas gerações e a manipulação a que elas são sujeitas por adultos obscuros, mas poderosos, escondidos atrás dos produtos de consumo, dos grandes meios de comunicação de massas e das redes sociais. As chamadas culturas juvenis fomentam, no mundo ocidental, a afirmação do jovem não pela emulação de um modelo parental mas pela revolta sistemática contra ele.

O resultado de tudo isto é aquilo a que o sociólogo polaco Zygmunt Bauman chama modernidade líquida. Nada no mundo contemporâneo é sólido. Não o são as instituições e ainda menos o é a cultura. As culturas ditas juvenis são uma das principais armas de liquefacção do mundo e introduzem rupturas, quase sempre dolorosas, entre gerações. O diagnóstico de Rod Dreher não é despropositado, pois o problema é real, tanto nos EUA como na Europa. A rasura dos valores das gerações anteriores é um problema não apenas porque afecta a transmissão de uma identidade colectiva, mas porque desarma os jovens perante as ciladas do mundo. Ao contrário do que propõe Dreher com o seu anátema da escola pública, precisamos de uma estratégia em que famílias e escolas (públicas e privadas) encontrem meios que ajudem as novas gerações a enfrentar o mundo e a preservar as tradições morais e culturais, de âmbito religioso ou não, que lhes darão uma identidade sólida mas adaptável a um mundo em dissolução contínua. É este o desafio.

sábado, 7 de abril de 2018

Alma Pátria - 43: Manuel Freire - Pedra Filosofal



Da realidade do sonho. Pedra Filosofal é uma das canções emblemáticas do fim do salazarismo e do início da chamada primavera marcelista. Na verdade, é, se se estiver atento e não embotado pela saudade ou enviesado pela ideologia, a confissão de uma impotência ou, melhor, de um desejo a que falta potência. A realidade, essa meretriz que se vende a quem tem o poder, era pouco dada ao devaneio onírico. Restava tomar o sonho por realidade, a boa e desejável realidade que “eles” não conhecem. Este “eles”, na sua imprecisão referencial, é sintomático de um tempo de censura, mas também de uma incapacidade de inscrição do desejo na realidade, para falar à maneira de José Gil. Eles não sabem nem sonham / Que o sonho comanda a vida. O pior de tudo no devaneio onírico é que o sonho de uns é o pesadelo de outros. Uma bela balada.

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Transparência e terror

Raoul Hausmann, Corbeilles de lumière, 1931

A caminho da completa transparência. "Pensamentos" transformados em palavras através de um dispositivo com inteligência artificial. Esta notícia deveria alarmar-nos, mas não alarma. Pelo contrário, é observada com boa disposição. No entanto, transformar o nosso diálogo interno em sons é abrir as portas para o inferno. O inferno é a transparência absoluta. Até hoje, a vida interior estava resguardada pelo silêncio. Há coisas que pensamos e que não queremos que ninguém saiba. Há coisas em nós que nós próprios não sabemos e não queremos saber. Fazem parte do fundo sombrio que todos os seres humanos trazem em si e que, por norma, aprendem a domar ou a recalcar. A vida de cada um de nós é, e deve ser, translúcida. Nem completamente opaca, nem completamente transparente. Esta descoberta inscreve-se no caminho para a total transparência. A transparência total é a destruição da privacidade e, em última análise, a destruição da pessoa, com a possibilidade da sua total exposição pública. Não se trata já de se saber tudo o que fazemos e tudo o que dizemos, mas também de tudo o que pensamos e, mais grave ainda, aquilo que se pensa em nós, apesar da censura que lhe fazemos. Estamos alegremente a criar os dispositivos para um terror absoluto.

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Ensaio sobre a luz (33)

Deborah Turbeville, Anh Duong and Marie-Sophie in Emanuel Ungaro, VOGUE, Chateau Raray, France, 1984

A luz que se esconde no negro da nostalgia abre-se radiosa sobre a pele e, pura, traça um caminho de esperança no corpo em expectativa.

quarta-feira, 4 de abril de 2018

No Limiar da Porta 4. Um rumor rasga

Claude Monet, The Bodmer Oak, Fontainebleau Forest, 1865

4. Um rumor rasga

Um rumor rasga
os trilhos da aurora.

Morros e medronhos.
Casas de cinza.

A armada da manhã
no bulício do bosque.

terça-feira, 3 de abril de 2018

Descrições fenomenológicas 32. A Praça do Silêncio

Lucio Fontana, Concetto sapziale, Attese, 1959

Ao fundo, erguem-se as torres da catedral, crescem para o céu, fendem a névoa e a noite. No cimo de uma, a luz rasga a escuridão e deixa um sinal para os que esperam a agrura da aurora ou ainda sonham uma salvação. A chama dos candeeiros públicos deixa suspeitar o vazio silencioso que cobriu a praça. Sob as arcadas de um prédio antigo, o comércio dorme embalado pelo longínquo murmúrio da cidade. Ninguém passa por ali, como se o lugar fosse interdito e uma maldição caísse sobre o transeunte incauto. O cedro, a única árvore que se avista daqui, treme e inclina-se pelo peso do vento. Um anjo de bronze repousa hirto num pedestal de betão. As asas presas nas costas anunciam a sua condição. A cabeça inclina-se para a frente e o olhar fixa-se na terra. Ao lado, a poucos metros de distância, outro pedestal suporta o peso de um homem de bronze. Também ele inclina a cabeça e olha para o chão. Anjo e homem, despidos, exibem os sexos. A luz de um candeeiro reverbera naqueles corpos metálicos e deixa ver os braços decepados. O silêncio progride no vazio da praça. Um cão atravessa-a e deita-se junto ao pedestal do anjo. Espera.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

No reino da caricatura

A minha crónica em A Barca, de Abril.

Nos anos 90 do século XX vivia-se uma onda de democratizações, a qual teve início em Portugal, no ano de 1974, e se prolongou com o fim dos Estados ditos socialistas na Europa de Leste. A democracia representativa parecia ser o destino final de qualquer regime político. Seria uma questão de tempo para que Estados autoritários se tornassem democráticos. Passados vinte anos, a democracia representativa está moribunda em muitos lugares e mesmo na Europa e nos Estados Unidos apresenta sintomas de doença grave.

As causas económicas, sociais e políticas da patologia são múltiplas. Deixo-as de lado, para comentar um outro aspecto que os próprios regimes democráticos, pela sua natureza, não conseguem ver. Trata-se da dessacralização do poder. As democracias nasceram da decomposição dos Estados absolutos ou, mais recentemente, de regimes autoritários. Tanto num caso como no outro, a figura do governante estava sacralizada de tal maneira que o cidadão comum quase via uma auréola à volta da cabeça do homem político.

As democracias vivem da separação entre o poder político e a religião. Essa separação, contudo, não implicou de imediato que o governante de uma democracia fosse visto como um homem normal. A sacralidade do poder, herdada dos regimes depostos, envolvia-o ainda e dava-lhe uma legitimidade simbólica que completava a legitimidade dos votos. A partir de certa altura, com o crescimento dos órgãos de comunicação de massas, em especial da televisão, a visão do homem político pelos cidadãos muda. As pessoas começam a perceber que ele é um homem como qualquer outro e não um representante da divindade.

Com o advento das redes sociais, a dessacralização do político torna-se total. Escrutinado impiedosamente dia e noite por “voyeurs” ávidos, caluniado por adversários sob a cobertura do anonimato, o homem político emerge aos olhos das pessoas em toda a sua venalidade. A máscara da velha gravitas do poder cai. Vaidoso, arrogante, mentiroso, pleno de caprichos, muitas vezes corrupto, é isto que o homem comum vê nos políticos, agora que o véu sagrado que cobria o poder foi queimado na praça pública.

Perante o desencantamento, o eleitor parece ter um plano de vingança. Se aqueles que têm governado, apesar da gravidade e ar respeitável que ostentam, são pessoas comuns e venais, então que se escolham aqueles que não disfarçam. Os eleitores passaram a eleger autênticos clowns, gente claramente não confiável e, muitas vezes, risível. Através de escolhas caricatas, o eleitorado – irado e irónico – parece apostado, agora que lhe roubaram a ilusão de um poder sagrado, em transformar as democracias em reinos da caricatura.

domingo, 1 de abril de 2018

Cânticos pascais 4. Domingo de Páscoa

Edward Burne Jones, La mañana de la Resurrección, 1882 

4. Domingo de Páscoa

As cinzas desvaneceram-se no cinzeiro da manhã.
Aberto, o túmulo era uma câmara de silêncio,
sitiado pela quieta radiação da música da aurora.

A erva renascida do pálido pavor da noite brilha
sob a floresta dilacerada dos raios solares. O mundo
rumoreja rotinas e os mortos repousam na sua morte.

Noli me tangere! A vida ressurgida, imponderável,
uma lira de luz que os dedos não sabem dedilhar,
sementes lançadas no poroso pórtico do futuro.

De tudo isso, fizeram páginas do livro de História,
sereias cantantes de promessas e equívocos, ramos
de flores presas à prosa que mancha a alvura do dia.

Que faremos nós, tão tardios, dessa vida ressurecta?
Cegos, caminhamos no oceano da cegueira e
cantamos esquecidos do silêncio do túmulo vazio.

Março, 2018