A minha crónica em A Barca, de Abril.
Nos anos 90 do século XX vivia-se uma onda de
democratizações, a qual teve início em Portugal, no ano de 1974, e se prolongou
com o fim dos Estados ditos socialistas na Europa de Leste. A democracia
representativa parecia ser o destino final de qualquer regime político. Seria
uma questão de tempo para que Estados autoritários se tornassem democráticos.
Passados vinte anos, a democracia representativa está moribunda em muitos
lugares e mesmo na Europa e nos Estados Unidos apresenta sintomas de doença
grave.
As causas económicas, sociais e políticas da patologia são
múltiplas. Deixo-as de lado, para comentar um outro aspecto que os próprios
regimes democráticos, pela sua natureza, não conseguem ver. Trata-se da
dessacralização do poder. As democracias nasceram da decomposição dos Estados
absolutos ou, mais recentemente, de regimes autoritários. Tanto num caso como
no outro, a figura do governante estava sacralizada de tal maneira que o
cidadão comum quase via uma auréola à volta da cabeça do homem político.
As democracias vivem da separação entre o poder político e a
religião. Essa separação, contudo, não implicou de imediato que o governante de
uma democracia fosse visto como um homem normal. A sacralidade do poder,
herdada dos regimes depostos, envolvia-o ainda e dava-lhe uma legitimidade
simbólica que completava a legitimidade dos votos. A partir de certa altura,
com o crescimento dos órgãos de comunicação de massas, em especial da
televisão, a visão do homem político pelos cidadãos muda. As pessoas começam a
perceber que ele é um homem como qualquer outro e não um representante da
divindade.
Com o advento das redes sociais, a dessacralização do
político torna-se total. Escrutinado impiedosamente dia e noite por “voyeurs”
ávidos, caluniado por adversários sob a cobertura do anonimato, o homem
político emerge aos olhos das pessoas em toda a sua venalidade. A máscara da
velha gravitas do poder cai. Vaidoso,
arrogante, mentiroso, pleno de caprichos, muitas vezes corrupto, é isto que o
homem comum vê nos políticos, agora que o véu sagrado que cobria o poder foi queimado
na praça pública.
Perante o desencantamento, o eleitor parece ter um plano de
vingança. Se aqueles que têm governado, apesar da gravidade e ar respeitável
que ostentam, são pessoas comuns e venais, então que se escolham aqueles que não
disfarçam. Os eleitores passaram a eleger autênticos clowns, gente claramente não confiável e, muitas vezes, risível. Através
de escolhas caricatas, o eleitorado – irado e irónico – parece apostado, agora
que lhe roubaram a ilusão de um poder sagrado, em transformar as democracias em
reinos da caricatura.
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