domingo, 30 de maio de 2021

Nocturnos 61

José Gutiérrez Solana, Mujeres de la vida, 1915-17

Há uma equívoca relação entre a noite e as mulheres que foram reconhecidas - talvez, sem ironia - como mulheres da vida. A autêntica relação que se estabeleceu entre essas mulheres e a noite foi a vida ter anoitecido dentro de cada uma, mesmo que olhos e coração desejassem a luz pura da manhã, mesmo que temessem, no mais recôndito de si, as trevas ou a palidez lunar.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Beatitudes (46) Suspender a gravidade

Andreas Feininger, A man in Arabic dress, smoking a water-cooled pipe, is comfortably sitting on a magic carpet, 1954
O velho sonho de suspender a gravidade não é um mero desejo físico de poder voar, de concorrer com as aves, mas o princípio de toda a felicidade. Sem gravidade não há queda. Sem queda não há expulsão do paraíso, esse lugar de beatitude eterna. Sempre que o homem sonha elevar-se aos céus é movido pelo desejo secreto de retorno ao lugar de onde a imaginação lhe diz ter sido expulso.

quarta-feira, 26 de maio de 2021

A persistência da memória (2)

Ruth Matilda Anderson, The Galician Milkmaid, 1925
A rapariga que ordenha as vacas e transporta o leite deixa sair dos seus olhos um véu de pudor mais de que de tristeza. Talvez a incomodasse não a pobreza ostensiva, os pés descalços, a roupa velha e esgarçada, mas exposição ao olho indiscreto da máquina fotográfica, dispositivo anunciador de um outro mundo e uma outra vida, na qual as suas filhas não andarão descalças e as suas netas não ordenharão vacas.

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Os festejos do Sporting e a governação socialista

 

Perante o espectáculo das comemorações, em tempo de pandemia, da vitória do Sporting no campeonato de futebol, não faltou quem estabelecesse analogia entre esse acontecimento e aquilo que se passou no Natal. A semelhança mais notória foi a da permissividade. Permitiu-se que os portugueses fizessem o Natal como achassem melhor. Permitiu-se que os sportinguistas comemorassem o título de campeões como quisessem. Esta, porém, é a semelhança mais superficial entre os acontecimentos. Nos dois casos, qualquer pessoa, com um módico de inteligência e de atenção ao que se está a passar, poderia fazer uma previsão tanto do que iria acontecer em termos de comportamento de portugueses e de sportinguistas, como das suas consequências sanitárias. O traço que une os dois acontecimentos é a falta de coragem do governo para enfrentar os portugueses, desde que isso represente uma ameaça eleitoral.

Uma das coisas que parece ter-se tornado uma natureza nas governações socialistas é de nunca enfrentarem nem quem é particularmente poderoso, nem quem tem peso eleitoral. Não é que os governos socialistas não tenham enfrentado grupos de portugueses. Veja-se o caso dos professores e o caso dos camionistas. O governo enfrentou-os com decisão e grande eficácia, derrotando-os. Fê-lo, porém, porque estava ciente de que isso reforçava o seu peso eleitoral. Ainda por cima, só por manifesta má-fé se pode achar que professores do ensino não superior e camionistas são grupos poderosos. Os governos do PS estão vocacionados não para o que deve ser feito, mas para a contabilidade de ganhos e perdas eleitorais, mesmo que isso tenha consequências desagradáveis.

Este traço das governações socialistas é antigo. Encontra-se em todas elas com exclusão dos governos de Mário Soares, que fizeram, nas circunstâncias que eram as suas, aquilo que deveria ser feito, independentemente das consequências eleitorais. O que se passou com os festejos dos sportinguistas e com o Natal passado é um traço que se coaduna muito bem com parte dos eleitores portugueses. Gostam de soluções superficiais, de opções que não incomodem, de decisões que sejam agradáveis. Parte substancial dos portugueses é assim mesmo. A questão, porém, é se aqueles a quem foi dado o poder de governar se devem pautar pelo gosto da maioria ou se têm a responsabilidade de, a cada momento, tomar as decisões que melhor sirvam a comunidade, mesmo que isso desgoste essa comunidade. Nos casos do Natal e dos festejos dos adeptos do Sporting, tornou-se manifesta qual é a prática deste governo.

sábado, 22 de maio de 2021

A Garrafa Vazia 60

Yves Klein, Antropometría sin título, 1960
Vives entre alçapões
e miasmas,
o fogo do medo
queima-te a pele,
a doença perscruta-te
os gestos.

Encarnas o papel
do negativo,
mas a história nada
te deve
a não ser a glória
do breve esquecimento.

Maio de 2021

quinta-feira, 20 de maio de 2021

O progresso moral da humanidade (1)

Juan Vidales Pousa, sem título

Há um género de hiena que pulula nas redes sociais. Exibe um suposto virtuosismo, onde a estrela polar é o seu ego. Esse eu que não precisa de nada nem de ninguém, uma espécie de super-homem que exibe a sua superioridade sobre os pobres patifes que necessitam de recorrer ao auxílio da comunidade. São os arautos de um mundo de onde o sentimento de piedade terá sido erradicado. A piedade é um assunto de Deus, dirão, as hienas, por uma questão de sobrevivência, cultivam a necrofagia.

terça-feira, 18 de maio de 2021

A persistência da memória (1)

Kurt Hielscher, Miltenberg, 1930s
Toros empilhados, galinhas pela rua, trepadeiras nas paredes das casas, essa decisão do passado se calar e poupar-nos das suas razões, essa persistência de ficar em si e de se afastar cada vez mais, sempre mais depressa, do presente. Apura-se o ouvido, mas ninguém se dispõe a falar connosco.

domingo, 16 de maio de 2021

Nocturnos 60

Tono Carbajo, Círculos en Hyginus, 1992

As trevas puras não existem. São apenas uma ideia reguladora daqueles que se entregam aos poderes da escuridão. De queda em queda, aproximam-se lentamente desse lugar inexistente de onde toda a luz teria sido banida. Mesmo na mais escura das noite ainda reverbera a prata, a cinza, a sombra que se abre como uma promessa.

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Simulacros e simulações (23)

Joseph Kosuth, One and Three Chairs (1965)

Múltiplas são as estratégias de simulação. A imitação pela imagem ou a definição pela palavra, entre outras a que a imaginação pode recorrer. Um antigo filósofo, porém, viu nos objectos reais apenas simulacros que simulam a realidade invisível. Viveremos num mundo no qual os simulacros se simulam uns aos outros, ora ascendendo perto da autêntica realidade, ora caindo cada vez mais fundo e mais longe dessa realidade.

quarta-feira, 12 de maio de 2021

A Garrafa Vazia 59

Carlos de Paz, Con pensamientos abollados II, 2001
Eis a noite tecida
no tear das trevas.

Corvos crocitam
um requiem eterno.

Sarjetas derramam
águas e infecções.

Sujo, deito-me
no chão, adormeço.

Maio de 2021

 

segunda-feira, 10 de maio de 2021

O discurso de Marcelo e a democracia


Quando este artigo chegar ao público, já o discurso do Presidente da República, no dia 25 de Abril, terá quase duas semanas. Poucos se lembrarão dele. Marcelo Rebelo de Sousa é um actor político talentoso, tem grande capacidade de sedução, mesmo dos seus adversários. Não foi isso, porém, que terá feito que quase todo a Assembleia o tivesse aplaudido. De forma mais ou menos inconsciente, os deputados pressentiram que ele tocava numa questão central para a existência de uma democracia, tal como se entende no mundo ocidental.

As democracias são regimes políticos concorrenciais, nos quais o conflito é fundamental, sendo mesmo aquilo que lhes dá energia e os torna capazes de responderem melhor do que qualquer outro regime aos anseios das populações. No entanto, essa conflitualidade necessita de ser sustentada por um consenso de fundo, o qual permanece muitas vezes silencioso, mas nunca deixa de estar presente. Esse consenso é o grande alicerce da democracia. Se ele derrui, o regime é arrastado ou para uma situação autoritária ou, no pior dos casos, para a guerra civil.

O Presidente da República sentiu o perigo e, com o seu discurso, tentou evitar que o incêndio deflagrasse. A democracia portuguesa foi construída sobre um silêncio consensual e nunca assumido perante o passado colonial. Esse silêncio consensual não significa que não se fale nisso, que os cidadãos não tenham opiniões e sentimentos opostos sobre esse assunto. Significa que os partidos principais evitam que essa seja uma questão com visibilidade política e que interpretações diferentes do passado sejam causas de rupturas perigosas. Significa ainda que os agentes políticos esperam que a passagem do tempo faça à questão colonial aquilo que fez com a questão monárquica. 

Marcelo Rebelo de Sousa sabe bem que os tempos estão propícios para grandes clivagens identitárias e que a questão colonial portuguesa se inscreve muito bem nesse panorama. Se se não tiver algum cuidado, o país em vez de discutir os problemas que enfrenta não tarda está incendiado por causa do passado. O discurso conciliador do PR tinha como fim chegar aí e foi uma efectiva lição não de história, como se pretendeu, mas de política. Não fez a apologia, como alguns leram, da relativização de crimes perpetrados, mas explicou, a quem o quis ouvir, que a política é a arte do possível. Que se investigue tudo, disse. Isto é, que a Academia faça esse trabalho e que a política se liberte do ónus, para que o consenso necessário à democracia não seja dilacerado até à morte desta. O discurso do PR foi um acto de defesa da democracia.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

sábado, 8 de maio de 2021

Perfis 17. A modelo

Walde Huth, Model Patricia in Jaques Fath, 1955

No momento em que, tomada por uma lentidão trágica, ergue o braço e inclina a cabeça, ela deixa que o corpo, envolto em ondas de claro e escuro, contrastadas para se sublinharem, se torne um jogo de linhas e movimentos serpenteantes, de formas precisas e promessa adiadas, o sinal de um fogo contido, de um vulcão dissimulado, de uma estrela amenizada pelas longas distâncias. Toda o refreamento que há naquela silhueta hierática, colocada sobre a influência astral da mais conhecida das torres francesas, é o anverso do desejo que ateia nos olhos incautos de quem a olha. Num primeiro momento, é a roupa que se torna objecto desse anelo, mulheres que se queriam assim vestidas, homens que devaneiam descobrir-se ao lado de alguém que desse modo se apresentasse. O olhar, porém, só por momentos se entrega ao ludíbrio das aparências. Logo vê para lá do branco e negro com que ela se envolve. Antecipa o corpo livre daquilo que o cobre, o desalinho da entrega, o ardor que da pele haveria de chegar. Ela, porém, indiferente ao desejo de quem a possa desejar, encerra-se em si mesma, sublinha o seu segredo, para devir enigma e quebra-cabeças para os olhos que sobre ela recaem. Na sua mente, não há outra coisa senão esse momento em que se entrega à representação como sendo a única realidade existente no mundo. Toda a sua existência é feita de gestos suspensos, tornando-se estátua, libertando-se do efémero da vida, interpondo entre si e a realidade a mais intransponível das fronteiras. Nessa coreografia não há mácula, apenas a inocência de estar ali, a simplicidade culpada de não querer saber que toda a sua representação de uma fria distância é o rastilho aceso que explodirá, um fogo de artifício na noite mais escura do ano.

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Simulacros e simulações (22)

Garry Winogrand, Austin, Texas, 1974

Uma das mais equívocas relações é aquela que liga o jogo e a vida. Pensa-se, não raramente, ver no jogo uma simulação que adapta os seres humanos à vida. No entanto, essa visão pedagógica é limitada e unilateral, pois a vida não passa, muitas vezes, de um simulacro decaído do próprio jogo.

segunda-feira, 3 de maio de 2021

47 anos de regime democrático


No dia 25 de Abril, passaram 47 anos da queda da ditadura de Salazar e Caetano. O novo regime nasceu com um problema que, no momento da libertação, não foi claramente notado. Faltava-lhe uma direita. Se olharmos para a Europa Latina, encontramos, em Itália e França, tanto a direita como a esquerda na resistência a regimes ignominiosos. Em Espanha o caso é diferente. Foi a direita franquista que assegurou a transição à democracia. Nestes países, a direita tinha uma legitimidade democrática que ombreava com a esquerda. Em Portugal, um país severamente despolitizado pela ditadura, a direita estava – com honrosas excepções – com o regime deposto. A queda da ditadura, o entusiasmo popular, a emergência das grandes figuras oposicionistas à luz do dia, tudo isso foi motivo de dor e de temor para a direita.

No entanto, o 25 de Abril de 1974 foi uma oportunidade para o nascimento de uma direita democrática em Portugal. Em torno de Sá Carneiro e de Freitas do Amaral, emergiu uma nova e democrática direita, que trouxe para a política nacional as perspectivas ideológicas, políticas, sociais e económicas das direitas democráticas europeias. Esta substituição da velha direita apoiante da ditadura pela nova direita foi uma das mais valiosas conquistas de Abril. No plano político não foi a única, pois também, com o desenrolar dos acontecimentos e a perda de ilusões, a esquerda revolucionária tornou-se democrática e parlamentar. O 25 de Abril foi o ponto de partida para uma aprendizagem geral da vivência política da democracia. Só então, os portugueses começaram a aprender o que era viver num regime marcado pelo pluralismo e pela concorrência.

Do ponto de vista político, qual o grande desafio que hoje se coloca ao regime saído do 25 de Abril? O grande desafio é evitar a radicalização e a transformação do combate político numa guerra de seitas. Há, em parte da sociedade, uma espécie de rancor à democracia e um desejo de confrontação, de transformação da vida política numa guerra entre nós e eles. Essa parte encontrou hoje a sua representação política histriónica. De momento, é minoritária. Contudo, os efeitos devastadores da pandemia por que estamos a passar podem criar uma situação social propícia a uma radicalização de novos sectores. A melhor forma de continuarmos a comemorar o 25 de Abril é, à esquerda e à direita, evitar radicalizações, evitar o corte de pontes com o outro lado, evitar que os cantos de sereia dos inimigos da democracia se façam ouvir com os seus tambores de guerra.

[A minha crónica em A Barca, de Maio]

sábado, 1 de maio de 2021

A Garrafa Vazia 58

Gerardo Rueda, Alcalá, 1960
O joio solta-se da vida,
restos de sangue
forjados
no roteiro da escuridão.

Das luzes amarelas,
chega-me pálido
um clarão.
Empalideço com ele,

deus nascido do ócio,
a vida tomada
pelo secar do sentido
na seiva mirrada da noite.

Abril de 2021