As democracias são regimes políticos concorrenciais, nos quais o conflito é fundamental, sendo mesmo aquilo que lhes dá energia e os torna capazes de responderem melhor do que qualquer outro regime aos anseios das populações. No entanto, essa conflitualidade necessita de ser sustentada por um consenso de fundo, o qual permanece muitas vezes silencioso, mas nunca deixa de estar presente. Esse consenso é o grande alicerce da democracia. Se ele derrui, o regime é arrastado ou para uma situação autoritária ou, no pior dos casos, para a guerra civil.
O Presidente da República sentiu o perigo e, com o seu discurso, tentou evitar que o incêndio deflagrasse. A democracia portuguesa foi construída sobre um silêncio consensual e nunca assumido perante o passado colonial. Esse silêncio consensual não significa que não se fale nisso, que os cidadãos não tenham opiniões e sentimentos opostos sobre esse assunto. Significa que os partidos principais evitam que essa seja uma questão com visibilidade política e que interpretações diferentes do passado sejam causas de rupturas perigosas. Significa ainda que os agentes políticos esperam que a passagem do tempo faça à questão colonial aquilo que fez com a questão monárquica.
Marcelo Rebelo de Sousa sabe bem que os tempos estão
propícios para grandes clivagens identitárias e que a questão colonial
portuguesa se inscreve muito bem nesse panorama. Se se não tiver algum cuidado,
o país em vez de discutir os problemas que enfrenta não tarda está incendiado
por causa do passado. O discurso conciliador do PR tinha como fim chegar aí e
foi uma efectiva lição não de história, como se pretendeu, mas de política. Não
fez a apologia, como alguns leram, da relativização de crimes perpetrados, mas
explicou, a quem o quis ouvir, que a política é a arte do possível. Que se
investigue tudo, disse. Isto é, que a Academia faça esse trabalho e que a
política se liberte do ónus, para que o consenso necessário à democracia não
seja dilacerado até à morte desta. O discurso do PR foi um acto de defesa da
democracia.
[A minha crónica no Jornal Torrejano]
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