Salvador Soria, Integración de lo destruido 91-H, 1991 |
Cego pela ciência
da lástima,
abro os pulsos
para o aço da noite.
Do coração desliza
uma água turva.
Bebê-la-ei
na luz da madrugada.
Junho de 2022
Publicado originalmente em 1863, Lágrimas e tesouros – fragmento de uma história verdadeira, de Luís Augusto Rebelo da Silva, é um romance histórico cuja acção se situa durante o reinado de Maria I, a Piedosa, também cognominada a Louca. Inserido na corrente estética do romantismo, a obra parece centrar-se na suposta paixão entre Maria de Meneses, filha do então estribeiro-mor da Rainha, o Marquês de Marialva, e o inglês William Beckford, então em viagem por Portugal, para, segundo o autor, curar o profundo desgosto pela morte da mulher, Margarida, embora as razões da viagem de Beckford pela Europa pareçam ter sido outras. Em torno deste amor luso-britânico, contudo, desenrola-se o jogo da política e, também, da religião, as quais naquela hora ainda se misturavam.
A tensão amorosa deve-se não a um obstáculo formal e exterior aos apaixonados, como a pertença a famílias inimigas, mas por um conflito que, apesar de vir de fora, é subjectivado e torna-se um conflito dentro da consciência. Trata-se da oposição entre tradições religiosas, o catolicismo de Maria de Meneses e o protestantismo de Beckford. Este recusa-se a uma conversão à Igreja de Roma, pois ofenderia com isso a memória dos pais, seria uma apostasia. Ela, tomada pelo escrúpulo religioso de casar com alguém fora da sua religião e pelo temor perante um amor que não pode prosseguir na vida eterna, assumindo que ela, como católica, teria à sua espera o paraíso, e ele, como herege protestante, estaria condenado à perdição. O tormento nas consciências, principalmente na da rapariga, é o nó do caso amoroso e tem um papel fundamental no desenlace. Rebelo da Silva serve-se da personagem Maria para, de algum modo, espelhar a própria Rainha perdida no labirinto da consciência, no temor pela condenação eterna do pai, devido às perseguições políticas de Pombal contra uma parte substancial da aristocracia da época, no temor da sua própria condenação.
O que será mais estranho, para um leitor do século XXI, é o pathos em que o amor, entre a filha do marquês de Marialva e o jovem viúvo inglês, é declinado. Há toda uma linguagem artificiosa, uma declamação da paixão e da pureza que se nos tornaram estranhas. Contudo, essa artificialidade do discurso amoroso serve para sublinhar o contraste entre a nobreza do de um amor puro, nascido do sentimento, e a vulgaridades dos negócios públicos e da política. É um exercício retórico romântico que sublinha o valor da interioridade por oposição ao mundanismo. A partir das estratégias retóricas seleccionadas, Rebelo da Silva manifesta a oposição radical entre o mundo do coração e o mundo da razão política. De modo bem diverso da tragédia grega, as acções dos seres humanos nobres fundam-se na pureza do coração, enquanto a acção no palco político, mesmo se os agentes são aristocratas, nunca deixa de parecer uma comédia, onde se representam as paixões dos homens vulgares.
A trama política gira em torno de uma aliança entre a aristocracia ainda dorida pelo tratamento a que foi submetida por Pombal e a Companhia de Jesus. Pretende-se manobrar de modo a que a Rainha, presa na sua debilidade mental e no terror religioso, anule, por decisão política, as condenações a que as várias famílias aristocráticas foram sujeitas, bem como a expulsão dos Jesuítas. Há, no romance, um paralelismo entre a consciência dilacerada de Maria I e a de jovem Maria de Meneses. Esta, como se escreveu acima, vive o conflito entre o amor e a fé, uma fé rigorosa e o medo do juízo eterno. A consciência da Rainha cinde-se também entre o amor à honra e à memória do pai – uma reabilitação dos condenados seria uma condenação do pai – e o dever de caridade e misericórdia, que lhe poderia evitar a condenação depois da morte. No cenário político, movem-se três facções. A dos fiéis a Pombal, que pretendem evitar qualquer revisão dos processos, incluindo a condenação da posteridade dos culpados. A dos que pretendem uma revisão total e anulação das condenações e aqueles que, de um modo aristotélico, pretendem encontrar um meio termo, partido em que é envolvido, pelo talento de um jesuíta, Beckford. Não querem tanto a absolvição dos condenados, mas um acto de misericórdia para os descendentes que, na verdade, são inocentes.
Rebelo da Silva, a partir deste conflito, dá a ver a natureza da corte, das forças que jogam de modo dissimulado, como se toda a realidade – feita de múltiplos desejos, da busca desesperada de reconhecimento, de uma luta sem fim e sem escrúpulos – se escondesse atrás da afabilidade das convenções palacianas. Não esquece o retrato da Companhia de Jesus, ainda banida no país durante o tempo da acção narrativa, da sua capacidade diplomática, do seu poder de manobra, da sua inteligência táctica e da sua moderação religiosa, adversária do fanatismo a que hoje chamaríamos fundamentalismo religioso. Também os Jesuítas esperam reverter a sua situação. Qualquer revisão do processo dos aristocratas seria uma porta aberta para a Companhia fazer valer os seus direitos.
O romance é um
hábil jogo de espelhos, em que Maria de Meneses, a jovem apaixonada e temerosa
do juízo divino, e Maria de Bragança, a rainha dividida e atormentada pelo
temor do inferno, se reflectem uma à outra. Entre elas, uma na sua inocência
virginal e a outra na inocência da loucura, desenrola-se um carnaval sem fim,
feito vaidades, orgulhos feridos, vinganças, enganos, traições, alianças tácticas
e rupturas estratégicas, feito de poderes dissimulados e de submissões sem
carácter, isto é, tecido com o fio da própria vida. As duas mulheres são, na
verdade, presenças metafísicas. A Rainha não entra na trama romanesca, mas é
uma sombra que paira sobre ela. A filha do marquês de Marialva, a heroína do
romance, é uma bela sombra encarnada, uma presença metafísica que entra no
jogo, mas que não lhe pertence. Um anjo, caso os anjos tivessem sexo. Entre elas
e a suas belas e atormentadas consciências, decorre o jogo em que as
consciências se conspurcam para poderem gritar vitória ou apenas para
sobreviverem.
Photographer unknown, Massacre in Christian area, Chania - Crete, 1897 |
W. Eugene Smith, Baby chimpanzee holding kitten, 1954 |
Está calor. Em vez de falar de política, como habitualmente, o melhor é derivar e falar de literatura. Não é que o assunto interesse mais aos portugueses do que a política. Não interessa, mas ajuda a suportar o calor e a inflação. Um salto ao século XIX pode ser uma viagem interessante. O romance moderno português terá começado nesse tempo. O problema é que sabemos muito pouco do que aconteceu aí, do fervilhar romanesco, da quantidade de gente que procurou a glória não na guerra, mas na literatura. Há para isso, como para tudo, culpados. Façamos o elenco destes. Almeida Garrett, Alexandre Herculano e, principalmente, Camilo Castro Branco, Júlio Dinis e Eça de Queirós. Garrett e Herculano, do ponto de vista romanesco, não são muito fecundos, o mesmo não se pode dizer de Camilo e Eça. Júlio Dinis ocupa um lugar intermédio. Quem mais fez romances no XIX?
Alguém dirá Rebelo da Silva, Arnaldo Gama ou, mesmo, Teixeira de Vasconcelos. Não será mau, mas a realidade é muito mais ampla e mais rica. Quem foi o autor de quem Óscar Lopes e António José Saraiva, verdadeiras autoridades no assunto, disseram ser “o melhor realizador, em Portugal, do romance tal como o concebeu Balzac”? O senhor dava pelo nome de Francisco Teixeira de Queirós. Quem ouviu falar dele? Nos últimos tempos tenho-me dedicado a espiolhar esse século romanesco. Foi aí que o descobri. Descobri mais, uns mais exaltantes do que outros, mas tudo gente que teceu o lençol com que o romance português se cobriu até aos dias de hoje. Eis alguns nomes descobertos: Alberto Pimentel, António Pedro Lopes Mendonça, Faustino da Fonseca, Francisco Gomes de Amorim, Gervásio Lobato (o do romance Lisboa em Camisa), Guilherme Centazzi (o autor do primeiro romance português), Joaquim Leitão, Manuel Pereira Lobato, Manuel Pinheiro Chagas, etc., etc.
Estes escritores não terão o dom literário de um Camilo ou de um Eça, mas fazem parte de um movimento que lançou as bases do romance em Portugal, o qual teve um momento superlativo, no que toca ao reconhecimento, com a atribuição do Prémio Nobel a José Saramago. É esta história que não deveria ser esquecida. E o esquecimento não atinge apenas o século XIX. Ele expande-se para o século XX. Também aqui os grandes nomes lançam um véu sobre os outros, os quais também ajudaram a tornar o português uma língua literária importante. O pior é que nem a iniciativa privada nem a iniciativa pública parecem estar interessadas em fazer ressurgir esses autores que contribuíram para sermos aquilo que hoje somos. Falta de mercado, dirão. Falta de iniciativa, parece-me.
Nicola Perscheid, Der Schnitter,1901 |
Edward Hopper, Nighthawks, 1942 |
Raoul Hausmann, Objectif-loupe,1931 |
Sol LeWitt, A dark square on a light square and vice versa, 1982 |
desliza
pela fenda aberta
no coração corroído
pelo vento.
Chega, monstro
purulento,
do espaço sideral,
presa na corda
entrançada da noite.
Os lábios abrem-se
para o gargalo,
e a morte aninha-se
na garrafa
sombria da vida.
Isso mesmo é reconhecido pelo Manual da Doutrina Social da Igreja Católica. No capítulo referente ao fundamento e ao fim da comunidade política, no ponto 390, reconhece-se que o princípio da fraternidade “permaneceu em grande parte não realizado nas sociedades políticas modernas e contemporâneas, sobretudo por causa da influência exercida pelas ideologias individualistas e colectivistas”. A Igreja entende a fraternidade como amizade civil, e esta surge como o revelador do “significado profundo da convivência civil e política”. A formulação é bastante inteligente ao traduzir fraternidade não por uma leitura étnica, os cidadãos unidos por laços de sangue, mas por amizade civil. Uma amizade entre cidadãos. Não só evita derivas racistas, como sublinha a importância da ideia de comunidade gerada na amizade cívica, na qual terão lugar os direitos e os deveres ligados à liberdade e à igualdade.
A fraternidade significa um exercício de solicitude para com todos os nossos concidadãos. Assim como devemos cuidar dos nossos amigos, também devemos cuidar dos nossos concidadãos. Este cuidar dos outros não é uma mera exigência moral, mas um imperativo político. Através dessa amizade cívica compreende-se que devo cuidar tanto do meu interesse, como do interesse de qualquer outro. Esta interconexão de interesses pelos quais todos somos mutuamente responsáveis forma o bem comum e a própria comunidade política. A fraternidade é, então, esse princípio que nos ordena cuidar da comunidade política, como o lugar onde o bem comum se desenvolve e protege, através da amizade cívica. É da solicitude cívica que o próprio poder extrai a sua legitimidade. O facto de a fraternidade não merecer particular atenção mostra quão frágeis podem ser os regimes políticos modernos e os perigos que correm. A fraternidade é o mais fundamental dos princípios da Revolução Francesa.
Os países ocidentais, com os EUA à cabeça, iniciaram um processo de libertação da dependência industrial da China e de outros fornecedores asiáticos. As indústrias ocidentais, em busca de mão-de-obra barata, deslocalizaram-se para o Oriente, enquanto se assistia nos EUA e na Europa a uma desindustrialização mais ou menos profunda. O processo é interessante porque pode ser lido a partir da dialéctica do senhor e do escravo, uma parábola teórica do filósofo alemão do século XIX Georg W. F. Hegel. A busca de mão-de-obra tendencialmente escrava acabou, como ensina Hegel, por tornar dependentes os senhores dos seus próprios escravos, estando a inverter-se os papéis.
O Ocidente descobriu-se com um problema em casa. Esse problema traduz-se não só na dependência de terceiros, como na destruição da estrutura social que tinha permitido criar sociedades equilibradas e com um módico de justiça social. Em vez disso, temos agora um enorme fosse entre os mais ricos e os outros, temos classes médias à deriva e, do ponto de vista político, emergiram populismos de diversa orientação que ameaçam a democracia liberal e o Estado de direito. O Ocidente está a descobrir que o excesso de liberalismo mata as sociedades liberais e encaminha-as para o autoritarismo.
O irónico de tudo isto – ou o trágico – é que o sonho da reindustrialização do Ocidente chega num momento em que se deveria estar a discutir a transição para sociedades pós-industriais em todo o mundo. O motivo é simples. A Terra parece não estar pelos ajustes com a forma como os humanos se relacionam com ela. A degradação ambiental e as alterações climáticas são de tal ordem que, a cada dia que passa, surgem novas evidências de que a espécie humana se está a precipitar para um abismo de onde não há retorno. Isto implica pensar noutro tipo de economia. Não me refiro à substituição da empresa privada e do mercado, mas de uma economia de consumo frugal, de trabalho reduzido e de rendimento diminuído.
O que se deveria estar a discutir no mundo não é como aumentar o rendimento e o consumo, mas como empobrecer e como assegurar uma partilha justa desse empobrecimento. Isto não significa um retorno ao passado, mas uma procura de novas formas de vida cujo sentido não seja dado pela posse e pelo consumo. Esse empobrecimento significa, antes do mais, um emagrecimento. Sofremos todos de obesidade mórbida. Não se trata de excesso de quilos, mas de excesso de roupas, de carros, de gadgets, de viagens, de comidas, de férias, de experiências, etc., etc. Pensar que reindustrializar o Ocidente o salva é pensar que vale mais morrer de ataque cardíaco do que de COVID.