Rui Sanches, sem título: desenho da série Excêntricos, 1986 (Gulbenkian) |
segunda-feira, 29 de abril de 2024
Simulacros e simulações (63)
domingo, 28 de abril de 2024
Comentários (19)
Georg Melchior Kraus, A Family at Table, 1770-1774 |
sexta-feira, 26 de abril de 2024
Beatitudes (68) Uma praia vazia
quarta-feira, 24 de abril de 2024
Silvina Ocampo, A Promessa
A escritora argentina Silvina Ocampo (1903-1993) apenas escreveu um romance, A Promessa, que, aparentemente, deixou inacabado, tendo sido publicado postumamente. Começou a escrevê-lo em 1960, mas a certa altura a doença ter-se-á intrometido no projecto. A edição portuguesa, da responsabilidade da Antígona, data de 2023, com tradução de Helena Pitta. A obra é, em aparência, uma exploração da natureza fluida tanto da vida como da memória e é desencadeada por uma queda, essa situação mitológica que abre o horizonte onde se desenrola a vida e a morte. Trata-se de uma queda prosaica da narradora e protagonista, da qual não se sabe o nome e pouco da sua situação. No entanto, a essa queda corresponde uma salvação, da qual se suspeita a intermediária, mas não o modo. Quando se deslocava, num transatlântico, para a cidade do Cabo, para se reunir com a parte menos enfadonha da minha família, ao debruçar-se sobre a amurada do navio, caiu ao mar, sem que ninguém a visse. O livro é o resultado de uma promessa a Santa Rita, a das causas impossíveis: Não esqueci o pormenor desta atitude quando lhe fiz a promessa de, caso me salvasse, escrever este livro e de o terminar até ao dia do meu próximo aniversário.
O romance começa com o problema da narradora acerca da possibilidade de publicar o texto, interrogando-se sobre que editora o iria publicar. Isso só seria possível se acontecesse um milagre e ela acredita em milagres. Esta preocupação é o sinal de que o impossível tinha já acontecido. Apesar de ter caído ao mar sem que ninguém desse por isso, ela ali estava preocupada com a publicação e recorrendo mais uma vez aos serviços da Santa Rita. A inverosimilhança da situação narrada, a da salvação de alguém que cai em alto-mar sem que ninguém dê por isso, é contrabalançada com o recurso à intervenção milagrosa de uma santa que tem por missão advogar as causas perdidas. A promessa é o próprio livro, um livro muito especial, um dicionário de recordações às vezes vergonhosas, humilhantes. Não se pense, todavia, que se trata de uma confissão, pois a narradora não tem vida própria, apenas sentimentos: As minhas experiências não tiveram importância nem ao longo da vida nem sequer à beira da morte; a vida dos outros, pelo contrária, torna-se minha. Não é uma confissão, mas um relato de memórias de outros.
Perdida no oceano, vendo o navio a afastar-se, decide nadar e enquanto nada, para não se deixar atrair pelo canto de sereia da morte, deixa-se levar por um itinerário de recordações, uma modalidade de resistência ao sono, uma espécie de itinerário que, não sem ironia, também aconselho aos presos, aos doentes que não se conseguem mexer ou os desesperados à beira do suicídio. A memória é então uma modalidade de resistência à inacção e não há maior inacção do que a morte, morte que a cercava por todos os lados e que, segundo uma visão racional, seria mais do que certa. Existe uma confluência salvífica: a intercessão de Santa Rita e o continuado exercício da reminiscência. Essa memória, plasmando a nossa corrente de consciência, é feita de diversas narrativas, algumas mais complexas e com trama romanesca, outras como meros apontamentos, histórias incoadas, mas que não se desenvolvem. Assim, como nos repetimos, também a memória da nadadora à beira da morte se repete, mas ao repetir-se altera ligeiramente o que tinha contado. Um dicionário de recordações, com algumas entradas quase iguais a outras, mas que todas elas poderiam dar lugar a um exercício narrativo mais amplo e complexo, contos, novelas e romances, o que estaria, porém, em contradição com a situação presente daquela que se entrega a essas recordações.
A sucessão de recordações e a luta da protagonista pela vida, que se mistura na narrativa memorial, permitem pensar na relação entre duas instâncias temporais, o passado e o presente. O presente é vivido no fio da navalha, sempre sob a ameaça de haver um corte que impedirá que o futuro se torne presente. O que permite resistir à morte é a reminiscência do passado. O presente é sempre um buraco vazio e precisa de ser preenchido pelos produtos da memória ou da expectativa. Numa situação de morte iminente, a expectativa de um futuro parece impossível e o que pode alimentar e dá combustível à luta do presente é o material proveniente do fundo da memória. A questão, porém, é um pouco mais complexa, pois aquilo que está em jogo não é a aventura vivida no oceano, mas a aventura de escrever e publicar o livro prometido a Santa Rita. Sou analfabeta. Como conseguiria publicar este texto? Que editora o receberia? Creio que seria impossível, a menos que acontecesse um milagre. Acredito em milagres. O perigo não é morrer afogada, desse, de modo inexplicado, ter-se-á livrado, mas o de cumprir a promessa feita a santa Rita, isto é, escrever e publicar o livro.
O que se revela, então, na ficção de Silvina Ocampo é uma analogia entre lutar pela vida em alto-mar e o trabalho de escrever. A arte literária – toda a arte, porventura – é o resultado de uma queda do artista. A escrita é o exercício de natação que o mantém à tona de água e é alimentado pela memória, pelas histórias acumuladas que são um penhor de salvação. O romance é uma meditação sobre a arte romanesca, na qual todo o artista é, em última instância, um analfabeto que tem de recorrer, através de uma promessa, à intercessão de uma santa das causas impossíveis, para que a obra seja realizada e aceite. Toda a obra de arte é uma causa impossível que se tornou possível pelo milagre. Só se torna artista aquele que acredita em milagres, no milagre da sua própria arte que se consuma na obra realizada. Há, no romance de Ocampo, uma fenomenologia da arte literária marcada por três instâncias. A da queda no desejo de criar (em analogia com a queda da amurada do navio), a da promessa que marca o compromisso de escrever (o exercício de natação em alto-mar) e a do milagre da realização da obra (a salvação da morte iminente). São cem páginas de um inteligente jogo de analogias.
segunda-feira, 22 de abril de 2024
XIVa Coloana fará sfârsit
Artur Bual, Hoje VI, 1965 (Gulbenkian) |
e o tempo de tão rápido se cale
nada é verdadeiro só imagem
onde o bem vejo sei oculto o
mal
voa para longe da terra
o verbo que tudo encerra
sábado, 20 de abril de 2024
Família tradicional e luta do bem contra o mal
A publicação do livro Identidade e Família – Entre a Consistência da Tradição e os Desafios da Modernidade, apresentado por Passos Coelho, gerou uma inusitada efervescência, o que foi uma vitória para os organizadores desta obra colectiva. As leituras críticas incidiram na ordem política e na ordem dos costumes. Na primeira, o detonador foi a pessoa escolhida para a apresentação e também o que ela disse. Na segunda, foram as considerações feitas sobre a chamada família tradicional e o papel da mulher. Neste caso, são relevantes as intervenções de Paulo Otero, um dos coordenadores e também autor de um dos textos. Vale a pena comentar dois excertos da Introdução, um texto dos coordenadores que dá sentido ao conjunto publicado.
A dado passo diz-se: “De todas as sociedades humanas, a família é a única natural, universal e intemporal. Nasceu com o Homem e existe antes do Estado. Não foi criada cientificamente, não resulta de um qualquer legado jurídico, não foi imposta por acto administrativo, não germinou fruto de uma qualquer ideologia, não é o resultado de meras circunstâncias ou contingências históricas.” O interessante não é o que se diz, mas o que se oculta. Esconde-se que, na História da humanidade, a família nem sempre significou a mesma coisa. Esconde-se que em diferentes espaços culturais de hoje existem diferentes tipos de famílias tradicionais, que não se confundem com as famílias tradicionais que os autores defendem. Negam, por outro lado, uma evidência: qualquer forma de família é um produto cultural e não apenas uma emanação uniforme da natureza, como qualquer antropólogo lhes explicaria. Os autores partem de uma falsificação da realidade e não de uma análise credível da família.
A segunda citação revela o perigo que se esconde neste discurso: “Lutar (sic) pelo bem deixou há muito de constituir notícia, não dá audiências, nem abre noticiários. Já o mal sequestrou a sociedade que o consome em doses crescentemente acrescidas”. Estamos perante uma visão maniqueísta da realidade social e moral. Os autores estão do lado do bem, são os seus representantes, enquanto os que pensam de outro modo estão do lado do mal de cuja realidade não parecem duvidar. Esta visão, religiosamente herética (substancializa o mal e não o vê como privação de bem), tem uma terrível tradução política. Deixa de haver adversários políticos, mas inimigos, aos quais, em nome do bem supremo que se representa, se pode fazer o que se entender. Estes católicos tradicionais têm uma visão da família, da sociedade e do mundo moral muito tradicional, mas muito pouco caritativa, isto é, muito pouco católica.
quinta-feira, 18 de abril de 2024
Nocturnos 117
Antoni Guansé Brea, Nocturne, 1992 |
terça-feira, 16 de abril de 2024
Comentários (18)
João Queiroz, sem título, 2004 |
domingo, 14 de abril de 2024
Beatitudes (67) Vida mediana
Edward Arning, Aufnahmen von Dr. Ed. Arning in Hamburg, 1901 |
sexta-feira, 12 de abril de 2024
Ensaio sobre a luz (116)
Mário de Oliveira, Paisagem de Castela III, 1966 (Gulbenkian) |
quarta-feira, 10 de abril de 2024
XIV Coloana infinita
William Turner, Sun Rising Through Vapor, Fisherman Cleaning and Selling Fish, 1807 |
se o sol entre nuvens já desponta
espelho onde todos se remiram
cansada esvoaça a ave tonta
pois da árvore a frágil casa
tiram
tudo é pequeno e sem fim
segunda-feira, 8 de abril de 2024
Simulacros e simulações (62)
Fernando Calhau, sem título #481, 1980 (Gulbenkian) |
sábado, 6 de abril de 2024
As eleições e o triunfo do pensamento mágico
Existe, em Portugal, uma franja pequena do eleitorado que quer, deliberadamente, destruir a democracia, não suporta os regimes liberais, sonha com o retorno ao autoritarismo. Ao votar Chega, fá-lo racionalmente. Contudo, a explosão do eleitorado do partido de André Ventura não se explica por esse tipo de eleitores. Têm sido adiantadas múltiplas explicações. Por norma, baseadas na suposta má conduta dos partidos do sistema (sic), o que teria gerado uma onda de insatisfação no eleitorado. A questão é mais funda. Que respostas têm estado disponíveis, do ponto de vista político, para a pergunta: como posso viver melhor? Por um lado, a resposta da esquerda tradicional: a luta colectiva, a solidariedade entre pessoas, gerará para cada uma essa vida melhor. Por outro, a da direita democrática tradicional: és livre, aposta em ti, a vida melhor depende do teu mérito. As duas respostas estão assentes na acção e no esforço.
A votação no Chega é a derrota destas duas respostas. Os insatisfeitos não apreciam o esforço das lutas colectivas, nem reconhecem que a sua situação esteja ligada ao seu mérito ou à falta dele. Crêem que a sua situação se deve aos políticos tradicionais, que são diabolizados. Está-se já no campo do pensamento mágico. A solução da minha insatisfação está, não no esforço colectivo ou individual, mas em alguém, o líder carismático, que virá salvar-me da situação em que me encontro. A partir da crença num líder salvador, o pensamento mágico reforça-se no encantamento dos slogans simplistas (Limpar Portugal), na negação da realidade – isto é, dos factos que negam a narrativa do líder – e no desenvolvimento de expectativas irreais de que problemas altamente complexos se podem resolver facilmente, bastando as palavras mágicas do salvador.
Os partidos tradicionais irão ter
muita dificuldade em lidar com a nova situação. O pensamento mágico
dificilmente é derrotado pelo discurso sensato e pela acção razoável. Os
problemas que enfrentamos exigem esforço e racionalidade, coisa para a qual
parte do eleitorado não está disponível. O pensamento mágico não exige esforço nem
reflexão, vive de emoções, alimenta-se de mitos e slogans, propaga-se
por contágio, como uma epidemia. Havendo uma liderança carismática, por norma,
o pensamento mágico tende a aumentar e só perde força depois de uma desgraça. São
tantos os exemplos – vindos da direita e da esquerda – em que o pensamento
mágico dos cidadãos conduziu a uma tragédia que nem vale a pena enumerá-los. A
democracia liberal, aquela que em Portugal nasceu há 50 anos, está perante um
grande e grave problema.
quinta-feira, 4 de abril de 2024
A persistência da memória (29)
Theodor and Oskar Hofmeister, Am Feuerherd - Vierlande, 1903 |
terça-feira, 2 de abril de 2024
O ocaso do espírito liberal
Assistimos a uma grave crise do espírito liberal. É de temer a sua morte. Podemos esboçar um retrato do espírito liberal com cinco características. Em primeiro lugar, a liberdade individual de cada um agir segundo a sua consciência, desde que isso não interfira na liberdade dos outros. Em segundo lugar, a igualdade de direitos, independentemente de qualquer característica diferenciadora (raça, sexo, religião, etc.). Uma outra característica é a tolerância, o propósito de respeitar as diferenças, sejam elas de crenças ou de comportamentos. Uma quarta característica é a racionalidade, a ideia de que a verdade pode ser obtida através do uso da razão. Por fim, o progresso baseado no conhecimento, que permitirá melhorar a sociedade através de reformas racionais.
Pessoas de diversas orientações políticas, desde que defendam as características acima enunciadas, possuem e participam no espírito liberal. Apesar de podermos encontrar alguns traços desse espírito na pólis grega, o espírito liberal, tal como ainda o conhecemos, tem o seu advento no Iluminismo e na constituição de uma esfera pública burguesa em confronto com o Absolutismo. Era, claro, apanágio de uma minoria ilustrada, preocupada em substituir as relações sociais baseadas na violência por outras fundadas no diálogo tolerante e racional, o qual, supunha-se, geraria as melhores soluções para os problemas dos indivíduos e das sociedades. Acreditava-se – e talvez ainda exista quem acredite – que a educação iria alargar paulatinamente a participação nessa esfera pública racional e que o espírito liberal se estenderia a toda a sociedade.
A evolução política do Ocidente – o fenómeno Trump nos EUA, o crescimento da extrema-direita na Europa, em Portugal, do Chega – mostra que esse espírito de tolerância, liberdade e racionalidade está muito doente. Talvez seja vítima do seu próprio triunfo e também das suas ilusões. O liberalismo, enquanto tornava todos iguais em direitos, acentuava, na economia, grandes diferenças de rendimentos, o que fomenta reacções contra esse espírito. O triunfo do chamado neoliberalismo está a matar o espírito liberal. Por outro lado, a crença de que a educação da população iria alargar o espírito liberal a toda a sociedade parece ser uma ilusão, a qual se torna patente quando se olha a intervenção das pessoas nas redes sociais. O que impera hoje é o espírito de facção e não a tolerância, o pensamento mágico e não a racionalidade, a discriminação e não a igualdade de direitos, a desarticulação das instituições e não a reforma progressiva, o uso da liberdade para a liquidar. O espírito liberal parece viver um doloroso ocaso.