Michael Kenna, La Place de la Concorde |
quarta-feira, 30 de março de 2022
Nocturnos 76
segunda-feira, 28 de março de 2022
Simulacros e simulações (32)
sábado, 26 de março de 2022
A persistência da memória (10)
Bernard Eilers, Amsterdão, 1920 |
quinta-feira, 24 de março de 2022
A Garrafa Vazia 82
terça-feira, 22 de março de 2022
Guerra metafísica
Giorgio de Chirico, Gladiadores y león, 1927 |
domingo, 20 de março de 2022
Nocturnos 75
sexta-feira, 18 de março de 2022
A ilusão de um outro mundo
Um dos danos
colaterais da guerra na Ucrânia aconteceu na esquerda do sistema partidário
português. O bombardeamento caiu em cima do Partido Comunista e muitos
estilhaços atingiram o Bloco de Esquerda, apesar de ter sido mais lesto e
competente em distanciar-se da invasão russa. A guerra na Ucrânia está a ser
sentida de forma muito traumática pelas opiniões públicas europeias. Há nessas
reacções várias coisas. A estupefacção pela invasão de um país europeu por outro,
a brutalidade da intervenção, a incompreensão das razões que assistem aos
russos, a percepção de que estes se tornaram um perigo para segurança da Europa.
No caso português, também a simpatia que os imigrantes ucranianos geraram no
convívio com os portugueses.
Até à Queda do Muro de Berlim, essa esquerda viveu na crença de que havia um mundo melhor do que aquele em que vivemos. Fosse a União Soviética, a China maoísta ou a Albânia. O mundo ocidental – democrático e liberal – era aquilo que deveria ser destruído, trocado por outros mundos inspirados nas revoluções comunistas. Com o fim dos regimes de leste, muitas pessoas compreenderam que aqueles eram altamente ineficientes, corruptos e opressivos. Compreenderam que não havia qualquer mundo melhor que pudesse ser trazido por uma revolução. Os europeus sentiram que viviam no melhor dos mundos possíveis, um mundo mais eficiente, menos corrupto e muito mais livre. Esse mundo é o que é defendido pela NATO, pelos EUA e pela União Europeia, com todos os defeitos e perversões que se conhecem.
Foi o ataque frontal a este mundo pelo PCP e, embora de modo mais dissimulado, pelo BE que fez desabar sobre eles uma tempestade. Estes partidos continuam a viver na ilusão de uma alternativa às democracias liberais. Crêem que as forças que impedem o advento desse admirável mundo novo são a NATO, os EUA e a União Europeia. Em tempos normais, com excepção das pessoas mais politizadas, ninguém se preocuparia com estas crenças. Num momento altamente traumático como o actual, a opinião pública revoltou-se e não compreendeu a posição perante a Rússia ou os ataques ao Ocidente. Na verdade, existem alternativas à democracia liberal. Na Rússia, na China, na Arábia Saudita, no Irão, na Venezuela, na Turquia, na Coreia do Norte, em Cuba, etc. Alguém estará interessado em viver nesses regimes? As democracias liberais não são perfeitas. Longe disso, mas são o melhor que a humanidade conseguiu imaginar para assegurar uma vida em sociedade decente. Do ponto de vista moral, qualquer alternativa é pior, muito pior.
quarta-feira, 16 de março de 2022
A Garrafa Vazia 81
segunda-feira, 14 de março de 2022
Beatitudes (50) Lentidão
Jenoe Dulovits, Dusty Street, Austria/Hungary, 1937 |
sábado, 12 de março de 2022
Nocturnos 74
Jackson Pollock, Night Sounds, 1944 |
quinta-feira, 10 de março de 2022
A persistência da memória (9)
Edward Weston, Wrecked Car, Crescent Beach, British Columbia, 1939 |
terça-feira, 8 de março de 2022
A Garrafa Vazia 80
domingo, 6 de março de 2022
Ucrânia: tentar compreender o inaceitável
Independentemente do que significa o acto de agressão à Ucrânia no contexto geoestratégico, independentemente da sorte das armas, pode-se tentar compreender – e compreender não é justificar – as motivações do Kremlin para uma atitude inaceitável. A tarefa não é fácil pois, como acontece com o terrorismo islâmico, a cultura política que Putin e o seu círculo trouxeram é-nos absolutamente estranha. Três palavras podem ser chave para o início da compreensão das motivações russas: segurança, organicismo e tradição.
Segurança. Em Julho de 21, Vladimir Putin promulgou a nova Estratégia de Segurança Nacional da Rússia. Nela é sublinhado que a NATO é o principal inimigo. A aproximação da organização militar ocidental das fronteiras russas, a grande ameaça. A hipotética adesão da Ucrânia à NATO representaria, assim, um perigo extremo e intolerável à segurança da Rússia. O que é estranho é que se estava longe de esgotar as possibilidades de assegurar, por via pacífica, uma neutralidade de Kiev. Não se estava perante um perigo iminente para a segurança de Moscovo. Outras motivações contribuíram para a decisão.
Organicismo. Em Março de 18, no The New York Review, o historiador Timothy Snyder escreve um longo ensaio com o título “Ivan Ilyin, Putin’s Philosopher of Russian Fascism”. Snyder desenha o trajecto desse obscuro filósofo russo, defensor do fascismo e do nazismo, chamando a atenção para o facto de Putin e os que o rodeiam serem profundamente influenciados por ele. Possuía uma visão orgânica da sociedade russa (esta seria um corpo vivo), na qual se incluía a própria Ucrânia, cuja existência separada era negada por Ilyin. A tomada da Crimeia e o apoio aos separatistas russos do Donbass são um passo de reconstituição desse organismo vivo – e sagrado – que é a Rússia. Como se percebeu das palavras de Putin, antes de desencadear a invasão, a Ucrânia não tem razão de ser, faz parte do corpo vivo – dotado de alma – que é a Rússia. Na invasão, a aposta mínima será a Crimeia e, talvez, o Donbass, mas o melhor seria trazer a Ucrânia e reconstituir esse grande organismo vivo, sagrado e mártir que é a pátria russa.
Tradição. No documento da Estratégia de Segurança não existem apenas questões militares. Há outras a que nós, ocidentais, não prestamos atenção. No capítulo III, Interesses Nacionais da Federação Russa e Prioridades Estratégicas Nacionais, em 25. 5), é posto como objectivo: Fortalecimento dos valores morais e espirituais da Rússia tradicional e preservação da herança cultural e histórica do povo Russo. Para a elite política russa, alinhada com o pensamento de Ivan Ilyin, os valores ocidentais, baseados no individualismo, no Estado de direito, na democracia liberal e na liberdade são uma ameaça perigosa, pois promovem a dissolução da tradição russa, põem em causa a vida orgânica da pátria. Uma Ucrânia democrática, liberal, modernizada e ocidentalizada, mesmo que pacífica, é sentida como um perigo que poderá contaminar a alma russa.
As questões de segurança podem servir como alibi. No entanto, as motivações humanas não se limitam à segurança nem, tão pouco, à economia, como pensamos. A Rússia parece mover-se por um ideal de reconstrução de uma visão pré-moderna da sociedade, utilizando, de forma brutal, aquilo que a tecnologia moderna tem para oferecer. Putin não se vê, por certo, como um mero político, nem sequer como um simples autocrata. Ele é o salvador e protector de um organismo sagrado, lutando contra as ameaças física e morais da tradição ortodoxa russa. Tudo isto é, para nós, incompreensível e intolerável.
sexta-feira, 4 de março de 2022
A natureza das coisas
Há quem
defenda, mesmo nesta hora terrível para a Europa, o fim da NATO e a
desmilitarização da União Europeia. O que significaria isso para os europeus?
Pura e simplesmente deixá-los à mão de qualquer predador que se se sentisse
esfomeado. Só a cegueira ideológica e um ódio contumaz aos EUA, fundado no mais
puro ressentimento, podem justificar esta posição. Os EUA são uma potência
imaculada, têm as mãos limpas de sangue, abraçam sempre e só as melhores
causas? A resposta a qualquer uma dessas questões é a mesma: não. Aqui, porém, devemos
voltar à perícope da adúltera, à injunção com que Cristo responde a escribas e
fariseus a propósito de uma mulher apanhada em adultério: Aquele que dentre
vós está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire uma pedra.
As potências, grandes, médias ou pequenas, agem sempre de acordo com a leitura que fazem dos seus interesses. Por muito que todos nós gostássemos, não é possível dobrá-las ao direito e muito menos à moral. O respeito pelo outro e a convivência pacífica resultam não da bondade intrínseca dos poderes deste mundo, mas do medo que têm uns dos outros. Esse medo é o melhor conselheiro e o promotor da sensatez. Quando as potências se sentem livres, não hesitam em intervir violentamente em defesa dos seus interesses, como se está a assistir com a invasão russa da Ucrânia. Não é Kant que rege as relações internacionais. É Maquiavel. Ora, os EUA, descontando o poderio, é igual a qualquer outra potência. Rege-se pelos mesmo princípios. Tem, contudo, em relação à Europa, incluindo Portugal, uma vantagem. Partilha com ela os grandes valores e uma certa interpretação do mundo. Há uma comunidade de vida. Se a NATO existe é, tendo em conta o que são as relações internacionais, para defender essa comunidade de vida.
Imaginemos que a NATO acabava, que a União Europeia de desmilitarizava ainda mais. Quem a defenderia de um ataque? Enquanto os lobos fortalecem os músculos e treinam os maxilares, defender que sejamos todos um rebanho de inocentes cordeiros não é apenas uma idiotice. É pior que isso. Isto não significa que devamos querer participar em aventuras bélicas, que queiramos espalhar os nossos valores através da força das armas. Significa apenas um sinal para fora. Significa que haverá um preço a pagar em caso de qualquer agressão. Felizmente, a Europa, que durante décadas tergiversou sobre a sua responsabilidade de autodefesa, percebeu isso nesta hora. Foi preciso a tragédia da guerra na Ucrânia. Acabar com a NATO? Desmilitarizar a Europa? Isso seria uma traição inominável aos povos europeus.
quarta-feira, 2 de março de 2022
A história em movimento
O conflito
entre a Rússia e a Ucrânia, devido à dimensão de violência que pode gerar,
acaba por ocultar uma outra questão. Trata-se do casamento entre um
nacionalismo extremado e a figura de um líder forte. Aqui líder forte funciona
como um eufemismo para não escrever ditador. Neste momento, existem na prática
dois líderes mundiais claramente reconhecidos como tal, Vladimir Putin e Xi Jinping,
ambos nacionalistas e ambos autocratas. Se olharmos para o mundo democrático,
que lideranças encontramos que possam fazer frente aos desmandos da Rússia, por
exemplo? Boris Johnson? Emmanuel Macron? Olaf Scholz? Nenhum destes homens tem
os meios ou a determinação dos autocratas russo e chinês. E Joe Biden? Este tem
os meios, mas terá a vontade, a energia e o carisma?
O que se pretende sublinhar é que, mais uma vez na história, a figura do líder forte, do autocrata impiedoso, começa a ganhar o coração dos eleitores. Já entrou na própria União Europeia, instalando-se na governação de alguns países, subvertendo as regras do Estado de direito, sem que isso tenha gerado uma reacção convincente por parte dos grandes países democráticos da União. Além disso, o progresso do fascínio popular com líderes nacionalistas continua. Em França, as sondagens para uma eventual segunda volta das presidenciais têm dado cerca de 45% à senhora Le Pen. Em Espanha, o Vox – um partido nacionalista de vocação autocrática – começa a aparecer nos inquéritos de opinião à frente da direita democrática. O espírito do tempo – isto é, o medo dos eleitores, a impotência das elites democráticas, a cultura de confronto trazida pela extrema-direita – parece estar propício à emergência de novas experiências autoritárias, que se irão instalando com o apodrecimento das democracias liberais.
O nacionalismo e as lideranças fortes já conduziram a Europa e o Mundo a duas guerras mundiais. Se alguém pensa que neste momento a União Europeia é uma força para impedir a vitória dos nacionalismos na sua própria casa, o melhor é fazer contas e olhar para a realidade. Não apenas não existe uma liderança forte e mobilizadora para o projecto europeu, como a memória histórica está a dissolver-se. A segunda grande guerra acabou há mais de 75 anos. A grande maioria das pessoas não faz qualquer ideia do horror que ela foi ou como o nacionalismo e os líderes fortes conduziram a humanidade para o matadouro. Por outro lado, há cada vez mais gente disposta a trocar a convivência europeia pelo fervor nacionalista. A história não parou, como Vladimir Putin está a explicar ao mundo. Para os homens comuns não há coisa pior do que a história em movimento.
[Este artigo foi escrito no dia 21 de Fevereiro e publicado 1 a de Março.]