Independentemente do que significa o acto de agressão à Ucrânia no contexto geoestratégico, independentemente da sorte das armas, pode-se tentar compreender – e compreender não é justificar – as motivações do Kremlin para uma atitude inaceitável. A tarefa não é fácil pois, como acontece com o terrorismo islâmico, a cultura política que Putin e o seu círculo trouxeram é-nos absolutamente estranha. Três palavras podem ser chave para o início da compreensão das motivações russas: segurança, organicismo e tradição.
Segurança. Em Julho de 21, Vladimir Putin promulgou a nova Estratégia de Segurança Nacional da Rússia. Nela é sublinhado que a NATO é o principal inimigo. A aproximação da organização militar ocidental das fronteiras russas, a grande ameaça. A hipotética adesão da Ucrânia à NATO representaria, assim, um perigo extremo e intolerável à segurança da Rússia. O que é estranho é que se estava longe de esgotar as possibilidades de assegurar, por via pacífica, uma neutralidade de Kiev. Não se estava perante um perigo iminente para a segurança de Moscovo. Outras motivações contribuíram para a decisão.
Organicismo. Em Março de 18, no The New York Review, o historiador Timothy Snyder escreve um longo ensaio com o título “Ivan Ilyin, Putin’s Philosopher of Russian Fascism”. Snyder desenha o trajecto desse obscuro filósofo russo, defensor do fascismo e do nazismo, chamando a atenção para o facto de Putin e os que o rodeiam serem profundamente influenciados por ele. Possuía uma visão orgânica da sociedade russa (esta seria um corpo vivo), na qual se incluía a própria Ucrânia, cuja existência separada era negada por Ilyin. A tomada da Crimeia e o apoio aos separatistas russos do Donbass são um passo de reconstituição desse organismo vivo – e sagrado – que é a Rússia. Como se percebeu das palavras de Putin, antes de desencadear a invasão, a Ucrânia não tem razão de ser, faz parte do corpo vivo – dotado de alma – que é a Rússia. Na invasão, a aposta mínima será a Crimeia e, talvez, o Donbass, mas o melhor seria trazer a Ucrânia e reconstituir esse grande organismo vivo, sagrado e mártir que é a pátria russa.
Tradição. No documento da Estratégia de Segurança não existem apenas questões militares. Há outras a que nós, ocidentais, não prestamos atenção. No capítulo III, Interesses Nacionais da Federação Russa e Prioridades Estratégicas Nacionais, em 25. 5), é posto como objectivo: Fortalecimento dos valores morais e espirituais da Rússia tradicional e preservação da herança cultural e histórica do povo Russo. Para a elite política russa, alinhada com o pensamento de Ivan Ilyin, os valores ocidentais, baseados no individualismo, no Estado de direito, na democracia liberal e na liberdade são uma ameaça perigosa, pois promovem a dissolução da tradição russa, põem em causa a vida orgânica da pátria. Uma Ucrânia democrática, liberal, modernizada e ocidentalizada, mesmo que pacífica, é sentida como um perigo que poderá contaminar a alma russa.
As questões de segurança podem servir como alibi. No entanto, as motivações humanas não se limitam à segurança nem, tão pouco, à economia, como pensamos. A Rússia parece mover-se por um ideal de reconstrução de uma visão pré-moderna da sociedade, utilizando, de forma brutal, aquilo que a tecnologia moderna tem para oferecer. Putin não se vê, por certo, como um mero político, nem sequer como um simples autocrata. Ele é o salvador e protector de um organismo sagrado, lutando contra as ameaças física e morais da tradição ortodoxa russa. Tudo isto é, para nós, incompreensível e intolerável.
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