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William Henry Fox Talbot, Oxford High Street, 1845 |
segunda-feira, 28 de novembro de 2022
Meditações melancólicas (89) A perfeição do passado
sábado, 26 de novembro de 2022
Simulacros e simulações (41)
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André Kertész, Distortion #51, 1933 |
sábado, 19 de novembro de 2022
A resistência das democracias
A democracia liberal tem vindo a ser submetida a um conjunto de desafios que, não poucas vezes, parecem pôr em causa a sua capacidade de, num futuro próximo, resistir à avalancha de tiranias que existem um pouco por todo o lado. Sempre que há eleições, teme-se que as forças inimigas das liberdades democráticas as ganhem e se dê início a um processo de descaracterização, primeiro, e de destruição, depois, dos regimes democráticos. Dito em linguagem popular, sempre que há eleições os defensores da democracia liberal – tanto na direita como na esquerda – andam com o credo na boca. Há razões para isso. Vejam-se as derivas iliberais na Índia, na Turquia e, dentro da casa comum da União Europeia, da Polónia e da Hungria. Teme-se que o mesmo possa suceder, na sequência das últimas eleições, em Itália.
Contudo, poderá haver lugar para uma visão menos negra do futuro dos regimes democráticos. No Brasil e nos EUA, as instituições políticas deram provas de suportar bem o teste de stress a que democracia foi submetida. A derrota de Bolsonaro, no Brasil, e o resultado decepcionante dos republicanos pró Trump, nas eleições intermédias nos EUA, mostraram que as instituições democráticas talvez tenham mais vigor do que se pensa. O caso do Brasil é interessante. É uma democracia recente, onde um Presidente assumidamente defensor da ditadura foi eleito, mas que, apesar de tudo, não conseguiu subverter o sistema democrático para se perpetuar no poder. Também o facto de nos EUA não ter havido uma maré trumpiana vitoriosa mostra que a funda tradição democrática americana possui alicerces mais sólidos do que se suspeitava.
Numa entrevista ao Público de domingo passado, Kerry Brown, professor de Estudos Chineses no King’s College, de Londres, e autor de um livro sobre Xi Jinping, o líder chinês, sublinhava que as autoridades chinesas crêem que as potências ocidentais estão em decadência. A crença no declínio do Ocidente e a crença no declínio das democracias liberais, não sendo a mesma coisa, irmanaram-se no decorrer da história dos séculos XX e XXI. Também as potências do eixo, aquando da segunda guerra mundial, com Hitler à cabeça, estavam convencidas da decadência das democracias. É assim plausível pensar que a retórica, tanto dos amigos como dos inimigos, acerca da decadência ocidental e das democracias faça parte do metabolismo político e cultural que permite a esse Ocidente e a esses regimes democráticos regenerarem-se, recriando-se e reinventando-se. As democracias, julgo, continuam em acentuado perigo, mas talvez possuam mais poderes para enfrentar as adversidades do que se pensava.
quinta-feira, 17 de novembro de 2022
Nocturnos 92
André Kertész, Paris by night, 1929 |
terça-feira, 15 de novembro de 2022
A persistência da memória (18)
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Theodor and Oskar Hofmeister, Gebet, 1910 |
domingo, 13 de novembro de 2022
Um salvador da consciência de classe
A substituição de Jerónimo de Sousa por Paulo Raimundo como secretário-geral do Partido Comunista Português gerou, como seria de esperar, um conjunto significativo de exercícios hermenêuticos e proféticos. Constatou-se que o Partido Comunista era um Partido Comunista, profetizou-se, mais uma vez, o seu desaparecimento, contrapôs-se o modelo de escolha das lideranças do PCP ao dos outros partidos políticos da democracia portuguesa. Houve artigos que desconstruíram a narrativa de que o operário Jerónimo de Sousa seria substituído por outro operário, Paulo Raimundo, manifestando que este é funcionário político desde os 19 anos e que as suas limitadas experiências do mundo do trabalho seriam irrelevantes para demonstrar a condição de classe do novo secretário-geral. Terá a sua origem em famílias pobres, aliás como parte significativa da população, mas isso não faz dele um proletário, como aqueles que nos tempos da transição à democracia existiam nas grandes, médias e pequenas empresas industriais do país.
A construção narrativa, por parte do PCP, de Paulo Raimundo como operário não deixa, todavia, de ser um exercício interessante e revelador. É uma mensagem para dentro do partido, para mostrar a fidelidade à sua tradição – e todas as tradições têm muito de imaginado, como o mostrou Eric Hobsbawm, um historiador marxista – e aos seus princípios. É, também, uma mensagem para fora do partido, uma tentativa desesperada de dar um sentido positivo e de esperança à condição operária ou, como o PCP gosta de dizer, dos trabalhadores. Por que razão se está perante uma tentativa desesperada? Porque a percepção da condição operária – ou de trabalhador – mudou radicalmente, em Portugal, desde os anos setenta do século passado aos nossos dias. Não foi apenas o peso demográfico do operariado que se alterou substancialmente, mas a sua própria consciência de classe.
Em 1974, os operários ainda tinham uma representação positiva da sua função na história do mundo. Apesar dessa representação ser já anacrónica no plano europeu, em Portugal ainda era possível que parte substancial das classes operárias se visse como portadora de um novo mundo, onde a justiça seria alicerçada na igualdade e no fim da chamada exploração capitalista. Ser operário era, naqueles dias, um motivo de orgulho e, ao mesmo tempo, de esperança. Assumir essas crenças significava ter consciência de classe, ter consciência de possuir um papel decisivo na história. O desenvolvimento da história do mundo e de Portugal erodiu completamente estas crenças. A consciência de classe dos operários ainda existentes será hoje em dia algo quase residual. Poucos acreditarão na narrativa marxista sobre o seu papel na transformação do mundo. Perderam as ilusões ideológicas sobre o seu papel histórico. Eles sabem que não são agentes históricos e têm a difusa consciência de serem pacientes, aqueles que sofrem os efeitos dessa história.
Uma das declarações mais estranhas, embora das mais reveladoras, é aquela que afirmava que o PCP escolhia Paulo Raimundo para travar o Chega (ver aqui). Porquê o Chega? Morta a consciência de classe, desaparecida a crença no papel do operariado na história do mundo, resta a situação de se ver como operário, mal pago, num mundo pleno de seduções. Ser operário deixou de ser motivo de orgulho revolucionário, mas, num tempo de escolarização democratizada, sinal de que se falhou na vida, de que as coisas não correram bem nos estudos ou que não se fizeram as escolhas correctas, de que a existência se encontra limitada pela função que se desempenha. Este sentimento de uma falência pessoal não conduz à consciência revolucionária, mas à indiferença resignada e, em muitos casos, a uma consciência ressentida perante as elites. Este não é um fenómeno português. Existe um pouco por todo o mundo ocidental. Veja-se o apoio das classes operárias brancas a Trump ou, em França, a transição directa do voto das classes operárias do Partido Comunista Francês para a extrema-direita.
A escolha do
anónimo Paulo Raimundo, reconstruído biograficamente como operário, é uma
tentativa de dizer que no PCP ainda não são as elites que mandam, que aquele é
o partido dos que perderam na concorrência existencial, dos que são vítimas da
sociedade de mercado. Uma tentativa de salvar a boa consciência operária. Ora,
o problema é que o Chega é mais atractivo para aqueles que sofrem com a
história do mundo, para os que no lugar de uma consciência de classe revolucionária
possuem uma consciência ressentida relativamente ao seu lugar na sociedade. Os
operários de hoje, na sua generalidade, não querem ser agentes da revolução,
querem deixar de ser operários, para poderem fruir mais completamente da sua
existência. Revoltam-se, eventualmente, mas não são revolucionários. Não querem
outro mundo, querem ter um lugar melhor neste ou, em caso de desespero, que
este mundo rebente nas mãos de aventureiros, para punição dos pecados das
elites, vistas como avaras e corruptas. Os actuais operários – os trabalhadores, na linguagem do PCP – não têm consciência
de classe, têm consciência de si, da sua individualidade e da vida estreita em
que essa individualidade está mergulhada. O Comité Central do PCP atribuiu a Paulo
Raimundo, como se de um Atlas se tratasse, o papel soteriológico de salvar a consciência
de classe.
sexta-feira, 11 de novembro de 2022
Simulacros e simulações (40)
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Paul Almasy, Nuns, Paris, 1950 |
quarta-feira, 9 de novembro de 2022
O progresso moral da humanidade (9)
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Lee Miller, Charred bones, Buchenwald, Germany, april 1945 |
segunda-feira, 7 de novembro de 2022
Declinação da Sombra 7
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António Saúde, Dia de trovoada, 1906 |
Universos de barro e pó,
o som
das folhas caídas,
mãos e
musgos,
a
noite estremecida
no negro
trono de rainha.
Desprendia-se
da macieira
um
odor azul,
a
cinza sobre a terra,
a
paisagem de cal.
Na
estrada, passava quem ia,
cobria-se
a casa de pano:
a
seda, o linho,
o
algodão em árido ardil.
Assim
fiavam as fiandeiras,
o
tempo
de
suas mãos desabava,
um brusco
bater de asas,
uma
sombra
ao sol
do meio-dia.
Da
árvore, a folha desce.
Nela, uiva
o cão,
o
grito da tarde
suspende-se,
logo cai.
(1998)
sábado, 5 de novembro de 2022
O principal conflito político
Durante muito tempo, a clivagem direita – esquerda estruturou a vida política. Orientava as opções do Estado e os votos dos eleitores. Essa clivagem que começou, em França, como uma querela entre os defensores do Absolutismo e os dos interesses de uma burguesia ascendente desejosa de os fazer valer politicamente, foi tomando novos sentidos. O mais significativo era o que opunha as classes triunfantes com o liberalismo e as classes trabalhadoras. Jogava-se fundamentalmente no terreno da justiça distributiva, sobre aquilo que nos rendimentos deveria caber ao capital e ao trabalho, havendo todo um espectro de distribuições, que iam de uma quase escravatura até à abolição da propriedade privada dos meios de produção. No meio destes dois marcos havia, e há, gradações distributivas muito diversas.
Hoje em dia, a clivagem direita – esquerda deixou de ser estruturante da vida política. Não é que tenha acabado. Ela persiste. Contudo, uma outra clivagem sobrepôs-se à que era dominante. Está ligada à tensão entre regimes democráticos e regimes autoritários. Não é que esse conflito não existisse há muito. Existia, mas não apresentava os aspectos dramáticos que ostenta nos tempos que correm. A avaliação das situações depende das expectativas. Ora, nas democracias surgiu, a partir da Queda do Muro de Berlim, uma crença de que o mundo caminharia, mais depressa ou mais devagar, para regimes democráticos, tal como são concebidos no Ocidente. A terceira vaga de democratizações, iniciada em Portugal, com o 25 de Abril, iria alastrar-se a todo o planeta, numa espécie de globalização da democracia.
Um conjunto de
acontecimentos traumáticos vieram abalar essa confiança num devir democrático
do mundo. A evolução política da Rússia, o falhanço democrático das Primaveras
Árabes, a rigidez autoritária da China que, em momento algum, deu sinais de se
aproximar de uma democracia, a evolução do nacionalismo indiano, tudo isto é
uma má notícia. Assim como são más notícias a força do bolsonarismo no Brasil,
do trumpismo nos EUA e, também, a evolução da Turquia e de alguns regimes da
União Europeia, como o húngaro ou o polaco, ou o peso da extrema-direita em
muitos países europeus. Isto para não falar do Irão, Venezuela, Coreia do Norte,
Cuba, Afeganistão, a generalidade do mundo árabe. A vaga de democratizações nascida
em 1974 encontra-se em refluxo. A intensa luta entre democracias e regimes
autoritárias tornou-se o principal foco de conflito que atravessa o mundo e que
organiza todos os outros, mesmo os referentes à justiça distributiva.
quinta-feira, 3 de novembro de 2022
Nocturnos 91
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Cleora Clark Wheeler, Evening, 1922 |
terça-feira, 1 de novembro de 2022
Não a religião, mas as redes sociais
Não é a religião, mas as redes sociais que estão a destruir a herança do Iluminismo. Este foi um movimento multifacetado cujo momento central é o século XVIII. Trazia uma visão do mundo baseada na razão e na crença de que, sendo o homem um animal racional, todos deveriam orientar a vida pelos ditames da razão. O Iluminismo foi um movimento de libertação dos indivíduos dos preconceitos, da tradição e da tutela de príncipes e pastores. Não sendo um movimento ateísta, as Luzes questionavam a aceitação acrítica de dogmas e, fundamentalmente, o facto de a religião, através dos seus agentes, exercer um poder sobre a consciência dos indivíduos, mantendo-os numa espécie de menoridade. A influência do Iluminismo prolongou-se, com diversas vicissitudes, até aos nossos dias, embora sempre contestado.
A herança das Luzes, no que tem de melhor, sublinha a autonomia dos indivíduos, o poder de dirigirem por si a sua existência. A religião, com a sua estrutura de controlo das consciências individuais, foi vista como a principal ameaça aos valores Iluministas. Hoje, em dia, quando se observa uma forte degradação desse legado do século XVIII, constata-se, não sem perplexidade, que as igrejas cristãs se adaptaram, com mais ou menos entusiasmo, aos valores do Iluminismo, muitos deles originados no próprio cristianismo e secularizados pelas Luzes. É nas redes sociais e nos comportamentos que estas permitem ou suscitam que parece estar um dos principais factores de ameaça aos melhores valores Iluministas. Dois exemplos.
A noção de seguidor, um dos elementos centrais da vivência nas redes, é um exemplo de negação do ideal da autonomia dos indivíduos. A crença Iluminista é que cada um apenas deve seguir, de modo imparcial, a sua razão. Como seres racionais, é uma degradação ser seguidor seja do que for e de quem for, a não ser da razão. As redes desocultaram e passaram a explorar até à saciedade o desejo de ser seguidor, de adoptar alguém como pastor que indica um caminho. Um segundo exemplo é o do debate. Segundo os valores Iluministas, o debate público deve ser ele mesmo orientado não pelos preconceitos, nem pelos afectos ou sentimentos de cada um, mas por valores racionais de compromisso com a verdade. Ora, o debate nas redes sociais é o contrário de tudo isso. Uma gritaria exaltada, irracional, avessa à verdade. Uma afirmação de preconceitos de uns contra os preconceitos de outros. Com tudo isto, não é apenas a herança das Luzes que está a ser destruída, mas as próprias comunidades e as regras de uma convivência sã num mundo plural.