segunda-feira, 29 de julho de 2024

Maria Isabel Barreno, Crónica do Tempo

 

Publicado em 1990, o romance Crónica do Tempo, de Maria Isabel Barreno, contém no título uma dupla referência à temporalidade, na palavra crónica e na palavra tempo. Como na crónica dos reis, também no romance de Maria Isabel Barreno existe uma narrativa cronológica onde a personagem principal é o próprio tempo, ou, melhor, o espírito do tempo, aquilo a que os alemães chamam Zeitgeist. Não se trata, todavia, de uma reflexão romanesca sobre a natureza do tempo, mas da observação dos seus efeitos sobre uma família desde os finais da República, início do Estado Novo e consolidação do poder de Oliveira Salazar até aos anos oitenta do século XX. Trata-se de uma crónica tanto da conformação que o tempo impõe aos indivíduos, moldando-lhes as possibilidades e os horizontes, delimitando-lhes, com rigor, as suas possibilidades de figuração, como do processo de destruição que esse mesmo tempo traz consigo, uma crónica de sucessivas derrocadas.

A obra inicia-se com a descrição de uma entrevista de Ângela, uma jornalista em reciclagem da sua persona profissional e pública, coisa corrente nos anos oitenta, a Jorge, um velho empresário retirado do mundo dos negócios, alguém que veio do nada e se tornou, no tempo da ditadura, um homem de influência, uma personagem nas classes médias altas de Lisboa. Ela estava a escrever sobre os homens de negócios que, antes do 25 de Abril, teriam poder. A desconfiança entre ambos (ao verem-se, ele sentiu malevolência; ela, repulsa), a incompreensão e os preconceitos que, perante o outro, nascem na mente de cada um são apenas o sintoma de uma distância geracional, a que o tempo cortou as pontes para que se pudessem compreender. A função diegética da entrevista é a de sublinhar, logo no início do romance, o conflito entre gerações moldadas por tempos diferenciados, o que introduz nas suas relações não apenas o fantasma da incompreensão ou a sombra de uma comunicação distorcida, mas um princípio irremissível de incomunicabilidade.

Jorge faz a sua fortuna em África, mas Isabel Barreno evita o estereótipo do capitalista explorador, do homem que se aproveitou da submissão dos povos africanos para triunfar na vida. Pelo contrário, Jorge é, desde o início, um opositor à visão de Salazar para as colónias, embora não partilhe a visão anticolonial que, a partir de certa altura, foi a da esquerda. Jorge é uma personagem consistente. Aliás, ele e a mulher, Manuela, são as duas personagens mais consistentes do romance, mais que os filhos e os netos, como se eles viessem de um tempo em que as pessoas tinham uma densidade existencial que as transformações sociais e políticas vieram rasurar. O casamento entre ambos, provenientes de meios sociais muito diferentes, ele do bairro popular da Graça, em Lisboa, filho de um porteiro do Ministério, ela dos meios monárquicos, embora pertencendo a uma família empobrecida pela incúria do pai, nunca funcionou, mas nunca se dissolveu. Aliás, é em torno da comemoração dos 50 anos desse casamento que gira parte substancial da narrativa. Esse fracasso emocional do amor foi compensado pelo compromisso com a instituição e construção de uma família. Isto surge como contraste aos casamentos dos filhos, daqueles que se casaram, que são muito mais frágeis e sujeitos ao espírito do mundo e do tempo.

A autora cruza a história pessoal e familiar com a história do país e deixa perceber as cicatrizes que as metamorfoses sociais e políticas deixam nas personagens. Essas cicatrizes manifestam-se na incomunicabilidade geracional. Jorge e o filho Diogo têm entre eles uma barreira que parece inultrapassável. Diogo não perdoa ao pai de o ter livrado, usando a influência pessoal e económica, da guerra colonial. Essa libertação é sentida como uma pesada herança que lhe limitou a liberdade de fazer escolhas e de correr riscos por sua própria conta. Diogo é o típico intelectual oposicionista, mergulhado nas crises académicas e, após o 25 de Abril, vivendo de uma rememoração do que foi e do que deveria ter sido no pós-revolução. Tanto na geração de Jorge e Manuela, como na dos filhos – embora sentida de modo diferente por Diogo, Carlota e Rosa –, existe uma consciência de que se possui uma responsabilidade perante o devir histórico. É essa consciência que vai desaparecer na geração dos netos. As novas gerações cultivam o pessimismo perante a história, e o seu horizonte existencial é o hedonismo simbolizado no culto da noite.

Crónica do Tempo é um romance marcadamente lisboeta. Lisboa é o cenário dessa história que cruza o indivíduo e a comunidade, a família e a sociedade. Isabel Barreno, em diversos passos, torna patente as transformações da capital portuguesa, transformações que acompanham as transformações políticas, mas também as metamorfoses da sociedade, a evolução das classes sociais e as mudanças no espectro cultural. É verdade que, no romance, também África aparece retratada, na relação de Jorge com esse universo onde fez fortuna. Contudo, na economia da obra, a cidade de Lisboa é o palco das tensões e dos confrontos familiares, dos conflitos e das mudanças sociais, das transformações existenciais. É numa rua de Lisboa que, perante o desabar de uma tempestade, Jorge e Manuela sentem, por uma única vez, que poderiam ser um casal efectivamente realizado, unido por laços que ultrapassariam o mero contrato do casamento, um casal ligado pelo amor. Tudo o que é decisivo no romance passa-se em Lisboa e diz respeito a Lisboa.

O tempo, porém, é a personagem principal do romance de Isabel Barreno. Por isso, a crónica não é sobre Jorge, mas sobre o tempo, como ele vai esculpindo as personagens e os seus conflitos, como traz a mudança e as rupturas à sociedade, aos desejos, às crenças e aos modos de vida. Cada nova geração parece ser mais filha do tempo do que da geração anterior. O romance traça um percurso não apenas no espaço lisboeta, mas em cerca de setenta anos de história do país e dos indivíduos. A autora capta essa complexidade de Cronos através de uma narrativa não linear, com o recurso à memória dos mais velhos, ao exercício da analepse, à reflexão sobre o sentido de uma vida ou dos acontecimentos sociais e políticos. O tempo trouxe os personagens e o tempo os levará, assim como traz e leva as configurações sociais, culturais e políticas, bem como os desejos, esperanças e ilusões de cada um. O tempo configura o espaço e desenha-lhe as metamorfoses. Ele é o senhor absoluto, que torna tudo em que toca relativo. O romance de Barreno ecoa, de um modo bem lisboeta, esse título magnífico de uma obra de Marguerite Yourcenar, O Tempo, Esse grande Escultor.

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