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Fred Kradolfer, sem título, 1930 (Gulbenkian) |
quarta-feira, 30 de abril de 2025
Cadernos do esquecimento 56 Gramática
segunda-feira, 28 de abril de 2025
Marlen Haushofer, A Parede
Um dos testes que o romance faz está relacionado com a
natureza social do homem. Somos seres em relação, diz-se. O romance questiona:
e se ficarmos isolados? Se toda a sociabilidade humana desaparecer porque sou
apenas um? A parede é uma metáfora para pensar o processo de
hiperindividualização por que passava já, nos anos sessenta do século passado,
a sociedade ocidental. Essa hiperindividualização significa, na prática, um
corte com os outros, mesmo que com eles se conviva socialmente ou até na vida
amorosa. O indivíduo, na sua afirmação radical, transporta a parede que o isola
de todos os outros, os quais deixam de ter para ele uma existência real. O
romance hiperboliza a experiência social de isolamento e torna visível aquilo
que o hábito e a vida quotidiana ocultam. A estranha parede que separa a
protagonista é o símbolo da parede que torna estranhos, para cada um de nós,
qualquer outro ser humano.
A alteração no espaço, a limitação da liberdade de ir para
além da parede, devolve, paradoxalmente, à protagonista uma liberdade radical.
Toda a convenção social, toda a regra moral, toda a lei jurídica, tudo o que
resulta do processo de regulação social, cuja finalidade é limitar as
liberdades individuais naquilo que têm de danoso para os outros, desapareceu.
Apenas a lei da natureza a limita. Essa experiência de uma liberdade absoluta
tem o condão de, ao ver-se livre das regras sociais, a colocar perante os seus
limites animais. Ela precisa de sobreviver, de organizar a vida não para e com
os outros, mas para si e apenas consigo. Quando se elimina a convenção – que
diminui e, por vezes, sufoca a nossa liberdade – o que descobrimos é a pura
necessidade. Ela vai ter de aprender a trabalhar a terra, de cuidar da vaca que
encontrou, do cão que herdou ou da gata que, na sua independência, usa a sua
hospitalidade. O efeito paradoxal do romance é mostrar, sem nunca o afirmar,
que a liberdade só existe em sociedade – nessa mesmo que nos coage e nos
limita; fora dela, só encontramos a necessidade animal.
Se no romance o espaço se limitou, o tempo sofreu uma
metamorfose. Ficar naquela situação e ter de sobreviver significa sair do tempo
histórico e entrar num tempo cíclico, o tempo da natureza. O tempo histórico é
linear: uma linha que vem do passado em direcção ao futuro, que é preenchida
pelos acontecimentos da vida social da humanidade. É essa linearidade que
conduz, por necessidade da própria razão humana, a colocar nesse passado um
tempo mítico originário e, no futuro, uma qualquer ideia de fim da história.
Tudo isso é agora evacuado pelos ritmos da natureza, com as suas épocas de
sementeiras e de colheitas, com a sua dinâmica de um eterno retorno das mesmas
tarefas. Não há história sem comunidade humana, sem o trágico da acção, sem a
disputa interminável entre homens e comunidades.
Esta saída da história e a perda de sentido do calendário
põem à protagonista um problema de referenciação temporal. Como se orientará,
nesse seu novo mundo, no tempo? Há uma dupla estratégia de referenciação. A
primeira é a da já referida ciclicidade da natureza, com os trabalhos
necessários para assegurar a sobrevivência, segundo o ritmo das estações. A
segunda é a escrita do diário como modalidade de consolidação da memória e de
referenciação temporal. O romance é o diário da protagonista, o registo da sua
existência enquanto exemplar único de uma espécie que parece ter-se extinguido.
Pode pensar-se, na interpretação do romance, a escrita do diário de dois pontos
de vista. Por um lado, como um acto de resistência ao desaparecimento da
humanidade. Por outro, como o registo dos momentos finais dessa mesma
humanidade. O mais plausível é pensar essa escrita dirigida a si mesma como um
acto de resistência e um registo de apagamento, uma espécie de objecto que se
poderá tornar um monumento, embora não exista ninguém para o ler. Um guia na
temporalidade até à hora em que já não haverá qualquer ser que tenha
consciência dessa temporalidade.
Mais do que o desaparecimento da sociabilidade humana e o
confronto com a necessidade estrita da sobrevivência, numa situação em que os
processos de cooperação desapareceram, o romance acaba por reforçar – na
experiência do isolamento mais radical – a natureza social dos seres humanos. A
protagonista cria uma comunidade com os animais à sua volta. O cão Lince, a
vaca Bella, com o seu filho, a gata e as suas ninhadas. A comunidade – o viver
com os outros – revela-se assim como inescapável. Desaparecidos os seres
humanos, há que encontrar uma nova comunidade, para que a vida continue a ser
possível. E é aqui que se revela uma das ideias centrais do livro. Essa
comunidade assenta não na utilidade, mas no cuidado. A protagonista cuida dos
seus animais não porque lhe sejam úteis, mas para os proteger. Isto permite
repensar todo o romance como uma metáfora sobre a necessidade de substituir,
nas relações humanas, o ethos da relação utilitária, que isola e
coisifica as pessoas, por um ethos do cuidado, por um dever de
atenção ao outro, mesmo que esse outro não tenha o rosto que esperamos.
sábado, 26 de abril de 2025
Liberdade e democracia
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Ana Hatherly, Ruas de Lisboa, 1977 (Gulbenkian) |
Ontem, julgo que numa iniciativa do Banco de Portugal, Pacheco Pereira afirmou que a liberdade chegou na tarde de 25 de Abril de 1974, mas que a democracia ficou claramente instaurada apenas na revisão constitucional de 1982. A distinção entre liberdade e democracia nem sempre é compreendida. Podemos ter liberdade – pelo menos em tese – sem termos um regime democrático. Podemos ter uma democracia sem termos liberdade. Aliás, são duas realidades que não raras vezes entram em choque. Essa era já uma preocupação do pensador político francês do século XIX, Alexis de Tocqueville.
É possível conceber uma sociedade onde não há um método de escolha dos governantes, mas na qual não existe censura, nem polícia política, nem perseguição por motivos ideológicos ou políticos. As pessoas são livres de fazer o que entenderem das suas vidas, inclusive são livres de criticar os detentores do poder, mas não têm o direito de escolher quem as deverá governar ou de participar nessa governação. É estranho para os nossos hábitos mentais, mas no conceito de liberdade individual não se inclui necessariamente o direito de escolher a governação.
Por outro lado, podemos conceber um regime democrático, onde existe o direito de participar na escolha dos governantes, mas em que a liberdade é restringida. A democracia pode ser uma ditadura da maioria, onde esta, legitimada pelo voto, diminui as liberdades da minoria ou certas liberdades individuais. É isso que se passa nas denominadas democracias iliberais: são formalmente democracias, mas as liberdades estão condicionadas.
Dizer que uma democracia é liberal não é o mesmo que dizer que é uma democracia representativa. Esta pode, através de representantes eleitos, limitar ou negar as liberdades individuais. Dizer que uma democracia é liberal significa que é democrática – depende do voto da maioria na escolha dos governantes –, mas que, em momento algum, as maiorias têm a capacidade de eliminar os direitos das minorias ou dos indivíduos.
O 25 de Abril, de facto, trouxe de imediato as liberdades; a democracia liberal foi uma lenta construção, que teve alguns percalços no caminho, em que os portugueses aprenderam a compatibilizar o voto maioritário com o respeito pelos direitos individuais e das minorias derrotadas nas urnas. É muito importante defender a democracia, mas não qualquer democracia. É importante defender um regime que seja capaz de compatibilizar a escolha por maioria popular dos governantes com a defesa dos direitos individuais, mesmo que estes não agradem, circunstancialmente, à maioria vencedora.
quinta-feira, 24 de abril de 2025
O Silêncio da Terra Sombria (10)
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Ben Shahn, The Red Stairway, 1944 |
Mundo sem sombra nem sol,
dedilhado sobre a noite,
imperfeito como um pretérito,
o passado aceso ao meio-dia.
Abrem-se ali rugas no calcário
e escaras no portão descaído,
uma rosa no vestido rasgado,
e fresco, o hálito da invernia.
Vou por uma rua esburacada,
iluminada de malmequeres,
seixos, a caliça nas paredes.
Lugar sem frutos, a poalha
entre campos, as mãos caídas,
caídas ao zunir da varejeira.
[1993]
quarta-feira, 23 de abril de 2025
Como morrem as democracias (3)
Nos quatro países que representam o núcleo duro da cultura europeia – Itália, França, Alemanha e Inglaterra –, os partidos de extrema-direita e de direita radical/populista têm agora mais intenções de voto, medidas em diversas sondagens, do que qualquer partido democrático.
No caso de Itália, esses partidos estão no governo. Em França, a distância entre o partido da senhora Le Pen e o do presidente Macron é demasiado significativa. Em Inglaterra e na Alemanha, o Reform UK e o AfD estão a começar a ultrapassar os grandes partidos tradicionais – isto, para não falar de países como a Holanda, a Áustria, a Eslováquia, a Hungria ou a República Checa.
O que impressiona em tudo isto é a impotência com que as forças democráticas assistem ao crescimento das intenções de voto naqueles que não prezam particularmente as democracias liberais. Nem o confrangedor exemplo vindo dos EUA, com a eleição de um amigo dessas forças, demove os eleitores de, paulatinamente, se entregarem nos braços de aventureiros.
A erosão das democracias liberais vem de trás; pode ser um processo relativamente longo, mas, a continuar assim, parece ser inevitável. Às forças demo-liberais parece faltar duas coisas: imaginação para repensar o modo de acção e, acima de tudo, vontade política para enfrentar os problemas que estão a conduzir os eleitores para fora da democracia liberal.
segunda-feira, 21 de abril de 2025
Beatitudes (79) O espelho de água
Henry G. Peabody, Wing and Wing, 1889 |
sábado, 19 de abril de 2025
Ensaio sobre a luz (128)
Otto Scharff, Eifeltal, Eifeital Valley, 1904 |
quinta-feira, 17 de abril de 2025
O poder como punição
Perante a
corrupção dos juízes, é o povo que, por intermédio de Samuel, pede a Deus um
rei. O pedido desagrada a Samuel e também a Deus, mas este ordena-lhe que
escute a voz do povo. Antes, porém, Samuel deve adverti-lo sobre o custo da
instauração de um poder político — e a lista de encargos é devastadora: impostos,
conscrição, expropriação, servidão. Nada, contudo, demove os israelitas. Deus
encerra o caso com uma fórmula lapidar: “Ouve a sua voz, e põe sobre eles um
rei” — ou seja, alguém que os domine e oprima.
Deus dá ao seu
povo um rei como quem dá uma severa punição. Todo o poder político é pensado,
no texto, como um castigo aos homens, castigo
que os atingirá tanto na liberdade como na propriedade, ou mesmo na vida. Esse
poder é o espelho onde se reflecte a maldade da espécie humana. Existe para a
punir. O que o texto de Samuel nos conta é um processo onde os homens transitam,
pelo seu próprio querer, de uma vida livre para a servidão. Enquanto a tradição
grega vê o poder político como positivo, a tradição bíblica apresenta uma outra
face desse poder: a face negativa, centrada na ideia de poder como penalidade.
Se se quiser
compreender em profundidade as motivações que sustentam, por um lado, o
liberalismo — na sua aspiração a reduzir o Estado ao mínimo — e, por outro, o
comunismo e o anarquismo — unidos no propósito de suprimir esse Estado — então
impõe-se uma leitura atenta do capítulo oitavo do primeiro Livro de Samuel. É
ele que ensina que o poder político não é uma coisa natural aos homens, como
pensava Aristóteles. Pelo contrário. É a corrupção humana, a prática do mal,
que vai conduzir a espécie à busca de mecanismos de autopunição. As ideologias
modernas são a recusa da punição – no caso do comunismo e do anarquismo. Ou uma
tentativa da sua limitação – no caso do liberalismo. Há nelas, uma esperança de
redenção do homem, mas, acima de tudo, existe uma leitura da política que se
funda em Samuel.
terça-feira, 15 de abril de 2025
O Silêncio da Terra Sombria (9)
domingo, 13 de abril de 2025
Nocturnos 128
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Piet Mondrian, Landschap bij nacht, 1907-1908 |
sexta-feira, 11 de abril de 2025
Uma pulsão de morte
O mundo anda entretido com a guerra das tarifas e as peripécias da política comercial dos EUA. Um entretenimento que passa pelo triste espectáculo em que se transformou a política norte-americana. Isso está a desviar a atenção das pessoas de um problema central para a sobrevivência da espécie. Todos os tímidos avanços que os EUA empreenderam para salvaguardar o planeta e assegurar um futuro para a espécie humana estão a ser destruídos em números circenses, onde um Presidente eleito se compraz em decisões movidas apenas por um fanatismo ideológico, idêntico aos fanatismos religiosos antigos e modernos. Agora foi a vez do limite de água que pode correr nos chuveiros (aqui). Os EUA tinham uma política de limitação da água que podia correr num chuveiro a 9,5 litros por minuto. Aquilo que os estudos mostram é que não apenas os 9,5 litros asseguram um duche de qualidade, como essa limitação ajuda as famílias a poupar e é um contributo importante para a defesa do meio ambiente e para enfrentar o problema da escassez de água. O limite foi abolido, com a justificação de tornar os chuveiros americanos grande outra vez. A actual administração americana está apostada em tornar a vida no planeta impossível, podendo dizer-se que o seu papel não é apenas confirmar a decadência americana — como defende o antropólogo e historiador francês Emmanuel Todd —, mas o de ser um agente empenhado da destruição de um ambiente sustentável que permita um futuro para a nossa espécie. A eleição de governos como o que governa neste momento os EUA representa um sinal forte de que a espécie humana é habitada por uma pulsão de morte que, nos dias que correm, parece não ter capacidade de travar.
quarta-feira, 9 de abril de 2025
Como morrem as democracias (2)
Nicolas Poussin, The Plague os Ashdod, 1630 |
As democracias podem morrer de várias maneiras. Por exemplo, através de golpes de Estado — uma prática que, em tempos, era corrente, por exemplo, na América Latina. Aquilo de que se gosta menos de falar é, porém, da morte das democracias às mãos dos eleitores. Parece ser para aí que, paulatinamente, estamos a caminhar na Europa.
Dois casos deveriam merecer muita atenção daqueles que defendem a superioridade das democracias liberais sobre todos os outros regimes políticos. Em Inglaterra, onde, ainda há pouco, o Partido Trabalhista venceu folgadamente as eleições, encontra-se, neste momento, empatado em intenções de voto com o partido do populista Nigel Farage, o Reform UK — partido que tinha uma expressão residual no eleitorado. O caso mais dramático, porém, é o da Alemanha. A CDU, vencedora das últimas eleições, ainda não formou governo e já perdeu um número significativo de intenções de voto, que estarão a transferir-se para a extrema-direita da AfD.
Os eleitores europeus, perante a profunda complexidade da situação política internacional, parecem estar a voltar-se para velhas soluções que conduziram a Europa a duas guerras mundiais. É provável que o crescimento da extrema-direita europeia não venha a ter esse efeito dramático. Contudo, o crescimento dessa extrema-direita implicará o crescimento das velhas rivalidades, o que conduzirá as nações europeias à desunião política à irrelevância geopolítica. É nisso que tanto russos como americanos MAGA estão apostados, sem que os eleitores europeus pareçam estar preocupados com o assunto.
Sim, os eleitores também podem matar as democracias.
segunda-feira, 7 de abril de 2025
A Europa e os Estados-Nação
O projecto europeu é uma
necessidade existencial para os Estados desses ex-impérios, onde se incluiu o
português, que integram o projecto. Mais do que uma abdicação da soberania de
Estados nacionais para as instituições europeias, o que se passa é outra coisa:
é a União Europeia (UE) que assegura e torna possível a existência desses Estados.
Sem ela, a existência desses Estados ficaria perigosamente comprometida. Sem a
Europa, esses Estados estão condenados à irrelevância, mesmo ao desaparecimento.
E isso percebe-se. Basta olhar para os grandes actores mundiais – EUA, China,
Rússia, Índia – para compreender que mesmo os maiores países europeus, se
isolados, não têm qualquer possibilidade de fazer parte do jogo político
mundial, aquele onde se decide a vida do cidadão comum.
Se a visão de Snyder for correcta, e ela parece sólida, o crescimento, nos diversos países europeus, das forças nacionalistas, soberanistas e anti europeias é uma pulsão de morte. De morte, não apenas do projecto europeu, mas dos próprios Estados europeus, que existem ancorados na União. As dificuldades que a Inglaterra tem enfrentado desde o Brexit são um sintoma de que a visão de Snyder está correcta. Os europeus – em que só 50% se mostram agradados com a UE – parecem inclinados para essa autodestruição, muito desejada pela Rússia e, agora, pelas hordas MAGA capitaneadas por Trump, Musk e Vance. Se o projecto europeu resulta de uma necessidade existencial dos Estados que o compõem, então a sua destruição é, também, a destruição desses Estados. E é isto que as elites políticas europeias deveriam explicar muito claramente aos seus cidadãos. Esclarecer que o caminho mais rápido para destruição das nações é o nacionalismo levado ao extremo.
sábado, 5 de abril de 2025
O Silêncio da Terra Sombria (8)
Romeo Mancini, Antibes, 1950 |
Dou-te em herança esta terra,
os prados de cinza e fogo,
os cavalos inclinados do coração.
Aprenderás na véspera do dia
a incendiar o Inverno,
a repartir a palavra que te deixo.
Ao suplicares o murmúrio da morte,
último assalto da vida,
descobrirás a cinza no coração.
[1993]
quinta-feira, 3 de abril de 2025
O duplo padrão dos eleitores
A estratégia de Montenegro está
fundada numa convicção: o eleitorado é muito mais tolerante com a direita do
que com a esquerda. Essa convicção leva-o à crença razoável de que os
eleitores, no dia 18 de Maio, não o penalizarão pelos seus pecados; pelo contrário,
reforçarão a sua força política. Aquele que desencadeou o processo, através de
uma conduta pouco transparente, será, plausivelmente, o grande beneficiário da
obscura situação que gerou. A esquerda corre o risco de sofrer uma ampla
derrota nas urnas – não apenas o PCP, o BE e o Livre, mas também o Partido
Socialista. Parece enigmático este duplo padrão com que os portugueses avaliam
os dois lados do campo político, mesmo quando as políticas de esquerda e de
direita são semelhantes.
Trata-se de um problema cultural.
Existe uma espécie de ideia subliminar de que verdadeiramente legítimos são
apenas os governos de direita. Quando a esquerda governa, isso é sentido como
uma concessão temporária do povo; quando a direita governa, fá-lo como se
ocupasse o poder naturalmente e por direito próprio. Isto não se passa apenas
em Portugal. Uma coisa é a legitimidade constitucional; outra é a legitimidade
ao nível do sentimento comum. Muito provavelmente, o problema tem a sua génese
na Revolução Francesa. Apesar de vitoriosa, a sensação de ilegitimidade dos
seus herdeiros nunca desapareceu. A esquerda é herdeira dessa Revolução,
enquanto a direita acaba por se filiar, de algum modo, no regime deposto em
1789. Este é o pano de fundo onde se inscreve, ao nível popular, a maior
tolerância para com a imoralidade da direita do que com a da esquerda, como se
existisse uma mal disfarçada nostalgia do antigo absolutismo real e uma crença
popular obscura de que qualquer governo de esquerda é ilegítimo.
terça-feira, 1 de abril de 2025
Simulacros e simulações (72)
Júlio Pomar, Campinos, 1963 |