quinta-feira, 17 de abril de 2025

O poder como punição


A tradição ocidental de reflexão sobre o fenómeno político fundamenta-se, por norma, nas grandes obras de Platão e Aristóteles. A estas devem-se acrescentar as de Maquiavel, em especial o Príncipe. No entanto, há uma outra fonte da cultura política ocidental que merece atenção. Trata-se do judaico-cristianismo. Num artigo anterior, explorou-se, do ponto de vista político, algumas passagens do capítulo 18 do Evangelho de João. Neste, dá-se um salto ao Antigo Testamento, ao capítulo 8 do livro primeiro de Samuel. Um dos mais notáveis textos de reflexão sobre o fenómeno político. Trata da transição de Israel do tempo dos Juízes, onde não havia um governo,  para a monarquia: a instauração do poder político.

Perante a corrupção dos juízes, é o povo que, por intermédio de Samuel, pede a Deus um rei. O pedido desagrada a Samuel e também a Deus, mas este ordena-lhe que escute a voz do povo. Antes, porém, Samuel deve adverti-lo sobre o custo da instauração de um poder político — e a lista de encargos é devastadora: impostos, conscrição, expropriação, servidão. Nada, contudo, demove os israelitas. Deus encerra o caso com uma fórmula lapidar: “Ouve a sua voz, e põe sobre eles um rei” — ou seja, alguém que os domine e oprima.

Deus dá ao seu povo um rei como quem dá uma severa punição. Todo o poder político é pensado, no texto,  como um castigo aos homens, castigo que os atingirá tanto na liberdade como na propriedade, ou mesmo na vida. Esse poder é o espelho onde se reflecte a maldade da espécie humana. Existe para a punir. O que o texto de Samuel nos conta é um processo onde os homens transitam, pelo seu próprio querer, de uma vida livre para a servidão. Enquanto a tradição grega vê o poder político como positivo, a tradição bíblica apresenta uma outra face desse poder: a face negativa, centrada na ideia de poder como penalidade.

Se se quiser compreender em profundidade as motivações que sustentam, por um lado, o liberalismo — na sua aspiração a reduzir o Estado ao mínimo — e, por outro, o comunismo e o anarquismo — unidos no propósito de suprimir esse Estado — então impõe-se uma leitura atenta do capítulo oitavo do primeiro Livro de Samuel. É ele que ensina que o poder político não é uma coisa natural aos homens, como pensava Aristóteles. Pelo contrário. É a corrupção humana, a prática do mal, que vai conduzir a espécie à busca de mecanismos de autopunição. As ideologias modernas são a recusa da punição – no caso do comunismo e do anarquismo. Ou uma tentativa da sua limitação – no caso do liberalismo. Há nelas, uma esperança de redenção do homem, mas, acima de tudo, existe uma leitura da política que se funda em Samuel.

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