sexta-feira, 30 de maio de 2025

Nocturnos 129

William Hogarth, A Noite, 1738
Não é a escuridão que faz a essência da noite, mas antes as sombras que as delidas iluminações humanas projectam sobre o mundo. Movem-se no silêncio e fluem como água de um rio sereno, onde, na aparente placidez, se escondem as ameaças mais perigosas.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Partido Socialista - uma pulsão de morte

Jean-Michel Basquiat, Riding with Dead, 1988

Se se quer uma prova de que a esquerda está habitada por uma pulsão suicidária, basta olhar para o processos em curso de substituição da liderança socialista. É verdade que, desde há muito, o Partido Socialista perdeu o carácter originário. A única coisa que lhe interessa é a ocupação do poder. Contudo, mesmo nessa óptica é estranho que depois de Pedro Nun Santos, um jovem turco mal preparado e sem qualquer capacidade de penetrar no eleitorado, se entregue nas mãos de José Luís Carneiro, um mestre-escola com o carisma de uma tartaruga moribunda. Perante a futura liderança socialista, os eleitores perguntar-se-ão: por que razão haveremos de votar num PS de Carneiro se já temos o PSD de Montenegro ou de outro que lhe venha a suceder? Não me ocorre nenhum razão substantiva.

O problema, porém, está muito longe de ser este. O Partido Socialista ao mudar de líder como muda de camisa, está apostado numa coisa: evitar a todo o custo discutir as razões que o levaram à queda. Não quer discutir as razões sociais que conduziram a um desencontro entre o partido e a sociedade. Não quer discutir as razões políticas da pesada derrota que sofreu. Fundamentalmente, não quer discutir a própria natureza do partido, da sua estrutura e das suas práticas, tudo coisas que têm levado os eleitores a olhar os socialistas com desconfiança. Este não querer enfrentar a própria realidade - sob o alibi de que isso poderia prejudicar o partido nas eleições autárquicas - é o sintoma de uma doença profunda que atinge os socialistas portugueses, à imagem do que acontece com outros partidos irmão na Europa. Os socialistas tinham escolhido um mau caminho com Pedro Nuno Santos e pagaram por isso. Agora vão mudar radicalmente para que tudo fica radicalmente como está.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Simulacros e simulações (73)

Lagoa Henriques, sem título, 1974 (Gulbenkian)
Há um momento em que, ao envelhecer, os homens iniciam uma lenta metamorfose. O corpo perde as fronteiras e vai-se transformando, sem pressa, numa árvore. Não em qualquer árvore, mas naquela que um dia se sonhou ser a autêntica árvore do paraíso.

sábado, 24 de maio de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (13)

José Sanléon, Cuadrado blanco, 1989
 

Pássaros brancos

de asas fluviais.

Aves vergadas

ao peso da tarde,

inclinadas

para a sombra.

Corvos calados

na cal do silêncio.

 

[1993]

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Beatitudes (80) Poente

William Gordon Shields, Sunset on New York Bay, 1915-20

Também no fim existe uma beleza inexplicável, como se o que acaba pertencesse a dois mundos: aquele de onde parte e aquele que o espera. Rasgada a passagem, a luz de um e de outro lado mistura-se e deixa cair um véu que vela o olhar para o abrir para o que até então era invisível.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Abandonados pelo voto popular

Camille Pissarro, Fiesta en la ermita, 1878

Um dos dados mais importantes das eleições de domingo foi o abandono da esquerda pelo voto popular. Os resultados são aterradores para os partidos tradicionais de esquerda. Não apenas porque, no conjunto, estão reduzidos no número de deputados – 68 em 230, mas porque o eleitorado que os abandonou muito dificilmente retornará. Parte substancial do eleitorado do Chega (isto já tinha acontecido nas eleições do ano passado) vem da esquerda. São pessoas que estão revoltadas com a sua situação social e cansaram-se tanto do reformismo socialista como da retórica revolucionária do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda.

Não querem saber de transformações colectivas, nem da luta dos trabalhadores ou das minorias. O centro do seu interesse político é a sua vida. Votaram no partido que imaginam dar corpo à sua revolta. É uma esperança do desespero. Imaginaram, durante muito tempo, que seria a política de esquerda que levaria o Estado a resolver os seus problemas. Como o Estado é impotente para o fazer, pois cada um depende de si mesmo, mudaram não o modo de pensar, mas o sentido de voto. Tornam a imaginar que um partido ou o seu líder lhes resolverá o problema. É uma ilusão que levará tempo a ser desfeita.

E enquanto a ilusão popular no salvífico messias se não desfizer, a esquerda fica confinada a um eleitorado da classe média, um eleitorado educado, elitista, mas que não é suficiente para a fazer retornar ao poder. Perder parte substancial do voto popular é uma derrota muito mais grave para a esquerda do que o miserável número de assentos parlamentares que obteve. Pode ser o sintoma de uma doença crónica muito grave, que se arrastará no tempo, mas que pode não encontrar solução.

domingo, 18 de maio de 2025

Falando de democracia


O filósofo norte-americano David Estlund, numa resposta à ideia de um regime epistocrático (um regime onde o governo estaria na mão dos sábios), argumenta que a participação colectiva produz, tendencialmente, melhores resultados do que uma governação de peritos isolados. Há em Estlund uma aposta razoável na competência da comunidade em fazer escolhas. Contudo, esta aposta tem um problema. Ela é, na verdade, baseada numa apreciação empírica das democracias. Não há uma relação necessária – e a priori – entre decisão colectiva e boa decisão. Podemos mesmo estar a entrar numa fase em que, devido à grande complexidade da vida social, as comunidades, movidas pelo sentimento, a emoção e o ressentimento, façam escolhas péssimas. Os primeiros tempos da nova administração Trump parecem dar argumentos a esta visão. Assiste-se, nos dias de hoje, a verdadeiros testes a essa sabedoria colectiva. E não é líquido que ela tenha nota positiva.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Um novo Papa


A eleição de um novo Papa é um acontecimento sempre marcante, apesar de se viver, na Europa, em sociedades cada vez mais estranhas ao cristianismo. Uma das grandes preocupações, antes, durante e após a eleição de Leão XIV, era se o sucessor de Francisco seria conservador ou progressista. Assiste-se já a um ataque da extrema-direita ao novo Papa por não ser um conservador, e, à esquerda, desconfia-se de que não será tão progressista quanto se esperaria. Há, em tudo isto, um equívoco. Termos como conservador e progressista são provenientes de uma ordem de coisas que não a religião e encerram neles a confissão de paixões políticas. Ora, se há uma paixão que deve guiar um Papa, é a Paixão de Cristo — e não as paixões políticas. Mesmo para um Papa, isso não é fácil.

O Sumo Pontífice não é apenas o sucessor de Pedro. Este, além de uma pessoa, é uma função. Por isso, qualquer Papa é, de novo, Pedro, a pedra sobre a qual o Cristo edifica a sua Igreja. Se olharmos para os textos evangélicos, encontramos dois episódios centrais para compreender esta função entregue a um ser humano. Em primeiro lugar, o reconhecimento. A função petrina é instaurada após a pergunta de Cristo: Quem dizeis vós que Eu sou? E Simão Pedro responde: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo. Contudo, a interpretação deste episódio não pode ser desligada da leitura de um outro: o da tripla negação de Cristo por Simão Pedro, na noite em que Jesus foi preso pelos poderes deste mundo e a sua Paixão era iminente. Qualquer Papa vive na tensão entre o reconhecimento de Cristo e a negação desse reconhecimento perante o perigo. Essa negação é, na verdade, a condescendência submissa aos poderes deste mundo.

As tentações conservadoras e progressistas dos Papas são as três negações de Pedro, no mundo moderno, perante a proximidade da Paixão do Mestre. São a cedência aos poderes do mundo, às suas paixões políticas e ao temor perante o significado da Paixão crística. Isto não torna os Papas heréticos. Mostra-os, à semelhança de Pedro, como homens frágeis perante um acontecimento que ultrapassa a compreensão humana. A função papal inclui, deste modo, o reconhecimento de Cristo como Filho de Deus, mas também a negação de que se pertence ao seu mundo. João Paulo II é louvado pela sua luta contra o comunismo; Francisco, pela sua denúncia da injustiça social. Ora, em ambos os casos, isso constitui a fraqueza perante a Paixão eterna do Filho de Deus. É a sua negação. Contudo, esta negação não ofusca o essencial: a resposta à pergunta Quem dizeis vós que Eu sou? Na economia da crença católica, o Papa é o que diz: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (12)

Sam Francis, Around the Blues, 1957-1962

Fulgura uma colmeia azul

na carne ferida pelas mãos,

a boca cansada de pólen.


Fulgura um fogo de água

no voo cego de um anjo,

a quietação do anoitecer.

 

[1993]

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Simulacros e simulações (73)

Eduardo Anahory, sem título, 1983 (Gulbenkian)
Pensamos cidades tomadas pela pureza da geometria, como se fossem fruto de um excesso de racionalidade ou do mais improvável dos acasos. Depois, gera-se um mapa em que as ruas crescem como linhas rectas que se cruzam numa quadrícula. Espreitamos esse mundo, e nele não há homens, nem cães, nem pássaros; e as árvores ali plantadas inclinam-se para a morte tomadas pelo pavor da solidão.

sábado, 10 de maio de 2025

Prosa dos dias (32) Coroação

Hans Baumgartner, Der Milchmann. Zürich, 1938

Aquilo que há de prosaico nos dias é a sua dura submissão à necessidade. Os homens movem-se, impelidos por essa mola real, e seguem em diante, arrebatados pela deusa impiedosa. Não percebem, contudo, que, no texto obscuro das suas vidas, uma outra divindade — uma musa, dir-se-á — trabalha, discreta e silenciosa, para que a necessidade se torne cada vez menos necessária. Até ao dia em que se assiste à sua deposição e, no seu trono, é coroada, como rainha eterna e inevitável, a pura liberdade.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Um novo Papa

Hoje foi escolhido um novo Papa. Três sinais interessantes. Em primeiro lugar, a Europa está em perda dentro da Igreja Católica. Enquanto os europeus se vão afastando da Igreja, esta parece procurar âncoras noutros lados. Dois Papas vindos do Novo Mundo é mais do que um mero acaso. É uma orientação.

Em segundo lugar, a escolha do nome: Leão XIV. Se esta escolha pretende significar alguma coisa, e faz sentido que assim seja, isso significa o restabelecer de uma ligação com o Papa Leão XIII. A atenção que este deu à questão operária - em polémica tanto com o liberalismo como com o socialismo - é a sua imagem de marca. Leão XIV parece predisposto a dar atenção não já tanto à questão operária, mas à dos pobres e dos desfavorecidos. A questão social continua viva na Igreja.

Por fim, uma das frases emblemáticas das suas primeiras palavras. Para começar, escolheu a paz de Cristo, essa paz desarmada e desarmante, como disse. Isto mostra que continuará a haver, por parte da Igreja Católica, uma atenção muito especial aos problemas da paz e da guerra. Não uma atenção inscrita na política deste mundo, mas radicada na mensagem evangélica. Uma paz que não é a dos homens, numa política que não é deste mundo.

terça-feira, 6 de maio de 2025

Faça a sua enciclopédia


O primeiro livro da Metafísica de Aristóteles começa com a afirmação: todos os homens, por natureza, desejam saber. Mobiliza como prova o prazer que os sentidos – e, acima de todos, o da visão – nos proporcionam, independentemente da utilidade que têm. O desejo de saber faz parte da nossa natureza. É no século XVIII que surge uma primeira grande resposta ao desejo de ter qualquer conhecimento à mão, embora já tivessem surgido, há muito, outras tentativas, embora menos articuladas. Trata-se da Enciclopédia, de Diderot e d’Alembert. Estes autores tinham a pretensão de reunir e organizar todo o saber humano. A partir daí, cresceram as enciclopédias. Em Portugal, foram famosas a Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e a Enciclopédia Verbo

Com a chegada da internet, o mundo da enciclopédia modificou-se radicalmente. Houve algumas que desapareceram, outras que se adaptaram, como a inglesa Encyclopædia Britannica e a francesa Encyclopædia Universalis. Trocaram o papel pelo digital e tornaram-se acessíveis, sem perder qualidade, à generalidade das pessoas. Uma das revoluções no domínio enciclopédico foi o nascimento, em 2001, da Wikipedia: uma enciclopédia completamente digital, de acesso livre, construída colaborativamente e em actualização contínua. Como se sabe, enfrenta problemas de fidedignidade, mas tem sido um instrumento de grande utilidade para muitos milhões de pessoas em todo o mundo. A Wikipedia tem uma natureza mais comunitarista, proporcionada pelo estabelecimento de laços, através da rede, entre pessoas que jamais teriam, de outro modo, qualquer projecto comum.

Hoje, porém, numa perspectiva liberal, cada um de nós pode fazer a sua enciclopédia. Os chatbots, como o ChatGPT (OpenAI) e o Gemini (Google), oferecem um modelo denominado pesquisa profunda: fazem investigações altamente estruturadas e orientadas pelos pedidos que lhes são feitos, devolvendo um relatório articulado sobre o assunto solicitado. Têm uma grande elasticidade. Basta que o utilizador peça uma nova investigação do mesmo assunto, a partir de outro ponto de vista, e, em poucos minutos, tê-la-á. Cada um pode ir construindo a sua enciclopédia, conforme o seu desejo de saber. Estas enciclopédias pessoais – com o aumento contínuo da informação disponível online e com o desenvolvimento da capacidade de detectar erros por parte dos chatbots – estão em incessante melhoria, tornam-se organismos vivos. Isto é uma revolução. Traz consigo tanto o perigo de uma hiperindividualização do conhecimento, com a diluição de critérios comuns, como a virtude da democratização do acesso ao saber. Para quem não deixou morrer em si o desejo natural de saber, é uma grande tentação.

domingo, 4 de maio de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (11)

Victor Vasarely, 166 Sirs-Kek, 1953

Deslizam palavras pelas ruas,

sílabas na poeira do coração.

Iremos tão longe na terra.

Iremos à casa do silêncio.

Iremos ao som esboçado

no velho rio da gramática,

na crina da névoa ao arder.

 

[1993]


sexta-feira, 2 de maio de 2025

Educação e Inteligência Artificial


 A democratização do uso da inteligência artificial (IA) é o maior desafio dos últimos 2 600 anos — época em que emergiu a filosofia — colocado aos processos formais de educação das novas gerações. Como deve evoluir o ensino num mundo em que a IA pode fornecer sistematizações rápidas e profundas de informação? Corremos um risco: o recurso passivo à IA pode impedir que as novas gerações desenvolvam um conjunto de competências intelectuais importantes e que isso traga uma paradoxal diminuição da inteligência na espécie. Como deve evoluir o ensino para que a espécie se adapte ao novo ambiente? Que lugar devem ter os tradicionais exercícios de memorização e de sistematização? Que lugar deve ter o desenvolvimento, desde muito cedo, das capacidades de interrogação crítica, avaliação reflexiva e redescrição criativa da informação?

Qual é o solo a partir do qual pode florescer a inteligência crítica, qual é a terra que é preciso não descurar na educação, para que a planta se desenvolva e floresça? Esse solo são as velhas competências da memória e da sistematização da informação (a sua classificação e organização). Se esse solo não for cuidado, toda a semente lançada nele morrerá. Isto não significa que métodos arcaicos de ensino sejam a solução. Significa outra coisa: é necessário que os responsáveis pela educação e os professores encontrem a melhor maneira de trabalhar o desenvolvimento dessas competências básicas. O importante não é se a metodologia é nova ou tradicional, mas que funcione, que conduza os alunos a fortalecer os processos ligados à memória e à sistematização.

Se a informação sistematizada pela IA se encontra à distância de um prompt (a questão posta ou tarefa pedida à IA), as novas gerações necessitam de desenvolver, para além das competências tradicionais, outras bem mais complexas. Precisam de aprender a interrogar a IA, de cultivar competências lógico-matemáticas e de avaliação crítica da informação gerada, bem como de fomentar a capacidade de articular dados para resolver problemas práticos ou cognitivos. Precisam de ser activos na relação com a IA e não receptores passivos — caminho certo para a estupidificação. O novo ambiente gerado pela IA não vem substituir o esforço dos alunos. Vem exigir mais esforço no desenvolvimento das competências básicas e no das mais elevadas. Ambas têm de ser mais sólidas. O caminho será compatibilizar o desenvolvimento das competências básicas da memória e da sistematização com as mais exigentes do pensamento crítico e reflexivo. A IA não veio trazer o descanso, mas um esforço mais complexo e profundo na aprendizagem. Só sobreviverá quem se tornar mais inteligente, não menos.