sábado, 29 de novembro de 2025

Nocturnos 133

Fernando Calhau, The Island of the Dead segundo Arnold Böcklin, 1993

Não há crepúsculos ao cair da noite, nem a anunciação da aurora, pois, na ilha dos mortos, a própria luz está morta. Trevas eternas são a casa onde os que deixaram a vida habitam. Caminham nelas em silêncio, mas sem o azedume do ressentimento nem a ira da revolta. Quando estão cansados de caminhar e se sentam perante o mar negro, pensam na luz e interrogam-se sobre se um dia ela voltar à ilha não os tornará mais cegos que a escuridão. Depois, levantam-se e elevam um cântico à noite eterna que a tudo envolve.

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (28)

José Manuel Espiga Pinto, Terra Marcada Nº 2, 1971 (Gulbenkian)

Assim escurecida,

a terra é um

rumor errante,

mácula

de sol e sombra,

uma pedra

no silêncio

das estrelas,

na poeira do luar.


[1993]


terça-feira, 25 de novembro de 2025

Meditações melancólicas (97) Uma eleição

Carlo Carra, Gentiluomo Ubriaco, 1916
Não tarda, e temos de ir escolher o próximo Presidente da República. A eleição presidencial tornou-se, se não numa coisa dolorosa, pelo menos num acontecimento melancólico. Talvez se tenha imaginado que o cargo só deveria ser ocupado por um grande, mulher ou homem, que tivesse adquirido esse estatuto na vida política. E essa tem sido a regra, embora o actual Presidente já tenha sido eleito com pé e meio fora dessa regra. Contudo, ao olharmos os candidatos, entre altos e baixos, não se vislumbra um que, pela sua acção política, tenha meio pé dentro do círculo dos grandes deste país. São umas eleições tristonhas, com candidatos comprados nos saldos, em que não se vislumbra um em que apeteça votar. Muitos deles são esforçados, mas a quem falta pedigree, não aquele herdado por via da genética - isto não é uma Monarquia -, mas adquirido pelo combate pelo bem comum. Uma eleição entre valetes e arrivistas, em pleno e melancólico Inverno. O Inverno do nosso descontentamento. 

domingo, 23 de novembro de 2025

Simulacros e simulações (76)

Marcelino Vespeira, Óleo 131, 1960 (Gulbenkian)

Talvez sejam braços em busca da potência mecânica do movimento. Talvez sejam hélices em rotação à procura do sossego e do silêncio depois de um voo atribulado. Talvez sejam os olhos que levam a imaginação a supor mundos onde não existem. Talvez seja o desejo que, vergado à carência, não pára de simular fantasias e quimeras.

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Manuel Ribeiro (1878-1941)


[Um pedido de desculpas aos leitores: o texto do post tem estado truncado, foi agora reposto correctamente]

Como em todas as literaturas, também na portuguesa existe um cânone. No romance, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Agustina Bessa-Luís ou José Saramago pertencem, de forma permanente, ao cânone. Outras entrarão e sairão dele em conformidade com os humores do dia. E há aqueles que parecem excluídos para sempre desse cânone. Como o escritor alentejano Manuel Ribeiro. Contudo, é uma personagem muito interessante e um escritor com qualidade literária. Muito lido nos anos vinte e trinta, a morte trouxe-lhe, como a muitos outros, o esquecimento do público.

Filho de um sapateiro de Albernoa, chegou a cursar medicina, tendo desistido por falta de recursos. Teve um percurso singular. Durante a República interessou-se pelo sindicalismo, foi director do jornal revolucionário A Bandeira Vermelha. Tornou-se anarquista, colaborando com o jornal A Batalha, e, para completar o percurso revolucionário, foi um dos fundadores do Partido Comunista Português, onde foi eleito para a comissão geral de educação e propaganda e para a Junta Nacional. Em 1921, foi enviado como delegado da secção portuguesa da Internacional Comunista ao III Congresso do Comintern. Contudo, o percurso de Manuel Ribeiro não termina aqui. O revolucionário anarco-comunista converteu-se ao catolicismo, onde encontra a espiritualidade que as doutrinas revolucionárias tinham escondido sob os problemas do estômago.

Entre os nove romances que publicou, destacam-se duas trilogias. A Trilogia Social (A Catedral (1920); O Deserto (1922); A Ressurreição (1923) e a Trilogia Nacional (A Colina Sagrada (1925); A Planície Heróica (1927); Os Vínculos Eternos (1929). Na primeira, acompanha-se o percurso de um arquitecto, Luciano, no seu processo de conversão ao catolicismo. De certa maneira, podemos ver na personagem uma projecção do autor. O curioso é que o processo de conversão estava já em andamento, enquanto Manuel Ribeiro era preso como revolucionário ou quando foi um dos fundadores do Partido Comunista. A Trilogia Nacional trata, em primeiro lugar, dos tempos finais da República, depois da tensão, no Alentejo, entre a terra e a fé e, por fim, do conflito entre moral e ciência, um tema actual.

Vale a pena voltar a ler Manuel Ribeiro? Sim, embora não seja fácil para leitores que não tenham disponibilidade para uma linguagem rica, erudita e complexa, nem para a descrição que suspende a acção, para dar ao leitor a possibilidade de contemplar através das palavras aquilo que o autor contemplou. Manuel Ribeiro, como outros escritores portugueses, não merece o esquecimento em que caiu.

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Beatitudes (83) Inverno

Léonard Misonne, Hiver, 1904
A rudeza do Inverno, com o seu pacto entre o frio, a parca luz  e os dias pequenos, não é um motivo de dor ou ocasião de trenódia. Há nessa mistura de sombras um secreto júbilo, onde a rememoração dos dias luminosos se junta à esperança do que virá. O Inverno é, também, ele, o linho com que se pode tecer a vida feliz.

sábado, 15 de novembro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (27)

Luis Roibal, Dibujo, 1992

Chegava a manhã

num motim de luz,

abria a porta

de cinza vidrada,

o quarto vazio

onde se escondia

a sombra do coração.

 

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

A persistência da memória (33)

Carl Winkel, Motiv von der Unterelbe, 1907

O trabalho da memória não se orienta pelo chamamento de uma tradição, com a sua legalidade testada ao longo dos anos, ou dos séculos, mas por uma nostalgia indefinível que toca o coração e se exprime no olhar. Esta nostalgia, porém, não é do acontecido ou do vivido, mas dos mundos possíveis que, em certa época, estavam presentes e que a vida se encarregou de eliminar. Na imperfeição de cada época, na imperfeição das coisas de cada época, existem mundos perfeitos que nunca deixarão o estado de potencialidade, para se actualizarem no quotidiano. Quando o olhar surpreende uma dessas imagens, o coração deixa-se atravessar pela nostalgia. Não do que foi, mas daquilo que nunca chegou a ser, mas deveria ter sido. E é isso que ilumina, com leveza, a memória que persiste.
 

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Os três salazares


PRIMEIRO SALAZAR. Foi um ditador cinzento e manhoso. Tinha a virtude de odiar políticos histriónicos e espalhafatosos. Esse ódio virtuoso, porém, era acompanhado por outros ódios nada virtuosos. Odiava, antes de tudo, a liberdade. O país que geria com mão de ferro era uma prisão a céu aberto, pois, para além das prisões políticas, não havia lugar que não estivesse sob vigilância, notícia, livro, peça de teatro ou filme que não fosse objecto de censura. Odiava que os portugueses se instruíssem, pois instrução era coisa apenas para alguns, os de bem. Os outros tinham a miséria dos campos, a pobreza das fábricas, a mediocridade do dia-a-dia como destino. Odiava a realidade e arrastou Portugal para 13 anos de guerras coloniais, num mundo onde a colonização tinha perdido sentido, de tal modo que nem o Vaticano aceitou a política colonial do beato Oliveira Salazar. 

SEGUNDO SALAZAR. Um salazarito histriónico e espalhafatoso, sempre pronto para berrar. Manhosinho, cinzentão e provocador. O primeiro Salazar, que não admirava histriões, não o aceitaria nem para porteiro. Julga que Deus o enviou, mas é claro, para qualquer observador atento, que aqueles modos, as coisas que diz, os cartazes com que conspurca a imagem de Portugal, os berros e esgares com que ele e os seus inundam o parlamento e as televisões, tudo isso é obra do tinhoso, talvez de um belzebu da classe baixa que anda à procura de promoção nas hostes infernais e esteja empenhado na perdição dos portugueses. E como todos sabemos, quando alguém, por influência do tinhoso ou de um seu agente, se perde, vai acabar no inferno. 

TERCEIRO SALAZAR. O mais importante dos três. É, segundo o dicionário da Porto Editora, um utensílio de cozinha que consiste numa espátula de borracha presa a um cabo de madeira ou plástico, usado para rapar tachos ou tigelas. Este salazar é o símbolo dos outros. Quando um Salazar, ou mesmo um salazarito, toma conta dos tachos e das tigelas, o que fica para os portugueses, para a maioria,  é rapar tachos e tijelas, como se o seu destino fosse o de permanecer à porta da cozinha, à espera dos tachos vazios e das tijelas lambidas, para rapar os restos lá deixados pelos portugueses de bem, sempre disponíveis para trazer a pátria na boca e o conteúdo dos tachos no bolso. Será este salazar que os portugueses terão direito, se um dia decidirem eleger um qualquer salazarito histriónico e sem maneiras, possuído por um belzebu à procura de promoção por arrastar os portugueses para o inferno.

sábado, 8 de novembro de 2025

Mariana Mortágua e o Bloco de Esquerda


Mariana Mortágua anunciou que deixará o parlamento e não se recandidatará à coordenação do Bloco de Esquerda (BE). O caso Mariana Mortágua é interessante porque mostra que uma pessoa tecnicamente bem preparada não tem de dar um bom líder. Mariana Mortágua foi uma deputada excelente. Competência técnica e assertividade. Contudo, a sua liderança política foi um desastre. O BE quase desapareceu do parlamento e está em vias de extinção. À sucessora de Catarina Martins falta-lhe uma qualidade essencial: a empatia. Surge, aos olhos do eleitorado, como distante, para não dizer arrogante. Falta-lhe também maleabilidade para perceber as mutações sociais e para compreender que a agenda política do seu partido já só atrai um núcleo muito restrito da população. Mariana Mortágua passa de uma deputada brilhante a uma líder medíocre. Ultrapassou o seu limite. Pagou, politicamente, caro. 

É um facto que os tempos não estão de feição para a esquerda, seja ela qual for. Os interesses do eleitorado deslocaram-se para áreas em que a esquerda tem muita dificuldade em integrar na sua agenda. Os eleitores estão, por um lado, mais individualistas e descrentes nas lutas sociais; por outro, mais interessados numa afirmação identitária, deixando-se cativar pelos discursos de exclusão dos que são diferentes, como os imigrantes. Também a visão do mundo que, através das redes sociais, se tornou dominante, é adversa para a esquerda. Tanto ao nível dos costumes, como da economia, as perspectivas ideológicas e a interpretação do que deve ser a sociedade mudaram radicalmente, estando parte substancial do eleitorado mais perto daquilo que é defendido pela direita radical, do que daquilo que propõe a esquerda. Tudo isto tornou a tarefa de Mariana Mortágua mais difícil, mas isso não explica a sua incapacidade para lidar com a situação. 

A substituição da actual líder por um outro porá fim à agonia do BE? É duvidoso. O BE foi uma invenção genial para integrar no sistema político nacional um conjunto de militantes da extrema-esquerda, que pretendiam entrar no mainstream político sem passar pela desonra da deserção da sua área e integração nos grandes partidos. Enquanto esses militantes, que vinham dos anos 70, estiveram no activo, o BE, ajudado por uma comunicação social simpática e por uma conjuntura política favorável, teve um desempenho político e eleitoral interessante. Hoje, porém, nem a comunicação social é simpática para o BE, nem a conjuntura lhe é favorável. Mariana Mortágua estava longe de ser a líder ideal do BE, mas os tempos não auguram nada de bom para a futura liderança.