quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Rumores de Maio - 14. Na morte de...

Francisco de Goya - El 3 de Mayo en Madrid: Los fusilamientos en la montaña del Principe Pío (1814)

14. Na morte de...

Que sentimento há para se morrer tão jovem?
Queima o asfalto, a calçada que não mais tocarás.
E o grito sufocado pelo anoitecer servirá
ainda de fogo pela rua, fogaréus de pedras
pelas mãos, os braços pálidos e parados,
olhos fixos pela fronteira na morte desabada.

Querias uma hora de liberdade, um tempo de anos
correndo sobre os anos, as mãos presas ao mundo.
A cabeça é agora uma inclinação para a sombra
e de tão caída pede à luz que a suporte.
Haverá no ódio um grito suficiente, uma luz parda
de primaveras ateadas no trabalho do esquecimento?

No hálito da terra, nas pequenas casas da aldeia,
no fumo anoitecendo os campos, há uma voz negra
de nuvens e sonhos, uma voz de energia e dor.
Com ela, vingam as horas pelas terras e sobre a lavoura
dos dias uma suave claridade, a réstia insondável
na esperança cicatrizada, levemente gasta da tarde.

Nada começa sem um caminho de morte, sem a queda
das células pelas mãos sedentas de terra. Uma bandeira
pregada na cúpula da casa. Trémula no ócio,
nos gestos flexíveis e fortuitas que se desenham
nas ruas, nas arcadas silenciosas do coração.
Nela fermenta a morte na crueza fria do firmamento.

(Rumores de Maio, 1977)

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