Majestade, majestade, pobre majestade,
Que fizemos do reino, o reino que entregaste
Ao desvario das tardes de calor, reino de água,
Água fresca e cintilante caída dos céus
Sobre um deserto de carros sangrados em silêncio,
Homens de vísceras revolvidas a fumegar entre mãos?
O tremendo clarão, o porto incendiado,
Bolas de neve a bambolear encosta abaixo,
Tempestade invernosa e fria no calor meridional.
Sussurram e riem, impotentes, os amantes,
A mão no clítoris exausto, esperma corre pelas pernas,
Os corpos requebrados, varas movidas pelo vento.
Majestade, majestade, pobre majestade,
Uma lata de atum, o mar a balançar no esgoto,
O desenho das algas secas sobre as areias da praia,
E um grito ribomba nas sucatas de ferro:
Crescem gerânios e buganvílias pelo zelo das mãos,
Uma conspiração de moscas e melgas ao crepúsculo.
O tremendo cheiro nauseabundo nas margens.
Sonho com a cidade – a luz de Lisboa – e enlouqueço,
O corpo pelo chão, que um anjo me salve.
Zumbe nos carris o eléctrico e caem as últimas árvores.
Restam, entre campas, alguns ciprestes,
E na casa branca a nogueira, para morte a plantei.
Majestade, majestade, pobre majestade,
O presépio singular, deram-to por palácio,
O trono onde os ossos rangeram e o sangue golfou
São promontório, rocha escarpada no voo da águia:
Cresce sobre a terra, abate-se em nossos filhos,
Arrebata o prémio, o desvario o doou.
O tremendo rugir de todas as televisões.
Os locutores abrem a boca, salivam, cospem,
E tudo canta. Onde o silêncio a rosa,
A luz pura a desvanecer-se ao cair a noite?
Troveja o celofane, coristas nuas abanam a cauda,
Cadelas sem cio, sem sexo, a latir noite fora.
Majestade,
majestade, pobre majestade…
A tremenda majestade grita no reino confiscado.
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Missa Pro Defunctis é um ciclo de poemas escrito em Setembro e Outubro de 2011. É constituído por 21 poemas e pretende ser uma meditação poética sobre a nossa situação actual, meditação que acompanha a estrutura de um Requiem na tradição religiosa católica. Será publicado integralmente neste blogue nos próximos tempos, embora sem periodicidade diária ou qualquer outra.
Gosto da tua heideggeriana nogueira-para-a-morte:)
ResponderEliminarObrigado, Ivone.
EliminarQue um anjo nos salve!
ResponderEliminarMuito bom, mais uma vez...a invocação da «majestade, majestade, pobre majestade» é arrasadora, transmite a sensação de total impotência. Que um anjo nos salve, tornemo-nos anjo! Bravo!
Obrigado, Maria. Mas se os anjos se tiverem esquecido do seu papel?
EliminarAh, nesse caso, teremos de os lembrar...aprendi em miúda a rezar ao Anjo da Guarda...ainda hoje o faço.Talvez o problema seja esse também, é que nos esquecemos de os lembrar, perdeu-se a comunicação.
ResponderEliminarUm dos próximos poemas do ciclo fala do que aconteceu aos anjos.
EliminarHum, aguardamos ansiosamente a poética revelação.
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