domingo, 6 de maio de 2012

Nikolai Gógol, O Capote


Desde a sua publicação, em 1842, que O Capote sugeriu imensas e desencontradas leituras. Muitos dos grandes escritores russos dizem-se devedores de Gógol e deste conto. A introdução de Filipe Guerra dá uma breve panorâmica da influência do texto. Mais uma leitura, apesar de ser uma leitura de um não especialista, não fará grande mal ao conto nem ao mundo, e os grandes textos servem para isso mesmo, para serem lidos e interpretados de maneira plural e contraditória. Uma das leituras que encontrei na internet dizia que Gógol era um escritor sem preocupações filosóficas, tentando retratar a gente simples e a sua vida. Mas será assim? Será O Capote o retrato ingénuo, não filosófico, de um pobre burocrata russo perdido na imensidão de São Petersburgo?

O episódio da escolha do nome do protagonista, Akáki (Akáki Akákievitch, isto é, Acácio filho de Acácio), revela de imediato que se está perante um problema de identidade. O narrador diz mesmo que "houve circunstâncias que, por si sós, tornaram impossível que lhe fosse dado outro nome que não este". Essas circunstâncias são o facto de a mãe, já viúva na altura do parto, não ter gostado de nenhum dos nomes sugeridos, optando por esta duplicação em relação ao nome do pai. Aquilo que é apresentado como uma necessidade - o facto de ele não poder receber outro nome - não passa de uma decisão arbitrária da mãe. Esta subtil apresentação  da identificação do protagonista serve para traçar uma conexão com a sua personalidade. Não apenas o seu nome é uma cópia do nome do pai, como o centro da sua vida, enquanto funcionário público e como simples ser humano, é a de se entregar à cópia de documentos. Quando um dia, alguém tomado pela comiseração, lhe propõe um trabalho ligeiramente menos repetitivo, Akáki perde-se e tomado pelo pânico implora o retorno à sua função de copista.

A iteração, a repetição ritual de gestos, mostra-se, através desta estratégia narrativa, como um dos pontos centrais da identidade. Toda a identidade surge como uma arbitrariedade que começa por ser mostrada como uma necessidade, para depois se consolidar no exercício sistemático da sua repetição. O conselheiro titular Akáki Akákievitch não é o símbolo da pobre burocracia russa, mas a imagem de qualquer homem no esforço para perseverar na sua identidade. Apesar das circunstâncias que o rodeavam lhe serem desfavoráveis - o caso de ser alvo da troça de todos os seus colegas - o exercício da repetição assegurava-lhe - assegura a cada um de nós - a estabilidade de um eu.

O capote, que dá título à novela, surge na narrativa como o elemento que desencadeia uma revelação complementar sobre a identidade. O novo capote de Akáki Akákievitch gera, entre os seus colegas, um momento de espanto e de admiração, de tal maneira que o convidam para uma festa nocturna. Contrariamente às suas rotinas, aceita. Quando volta da festa é assaltado e o seu novo capote é roubado. Nas diligências para mover a burocracia policial a encontrá-lo, o pobre conselheiro adoece e morre. A morte não é o fim da história. Morto, Akáki Akákievitvh transforma-se em fantasma. Um fantasma que assalta os transeuntes e lhes rouba o capote. Esta transição de uma narrativa realista para o registo fantástico permite a Gógol iluminar uma outra faceta da identidade, o seu carácter fantasmático.

Toda a identidade é uma projecção de si no além, um excesso que ultrapassa a circunstância física e faz continuamente renascer o eu muito para lá das enunciações em que ele toma a palavra e diz eu. A ironia de Gógol é uma estratégia que permite escalpelizar a construção da identidade, revelar-lhe as características, mostrando que ela é gerada arbitrariamente, embora nos parece ser fruto de uma necessidade inequívoca, que se mantém pelo exercício ritual da repetição, essa cópia que se copia indefinidamente, e que se prolonga de si para os outros de forma fantasmática. Dos outros, apenas temos o seu fantasma e para eles também não passamos disso, mesmo que estejamos convencidos da solidez do nosso eu e do eu dos outros. O Capote é um irónico exercício de desconstrução da ficção identitária que produzimos como condição de estar e suportar o mundo.

Inopinadamente, o texto sobre uma pessoa comum revela-se como uma meditação sobre o eu e a identidade, meditação essa que deve ser recolocada no âmbito de uma espécie de diálogo subterrâneo entre o romance moderno e a filosofia moderna sobre essa enigmática coisa a que designamos através do pronome pessoal da primeira pessoa, eu ou ego, ou por intermédio dos seus rebatimentos na terceira pessoa, o si ou o ipse ou o self.

Nikolai Gógol (202). O Capote. Lisboa: Assírio e Alvim. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Introdução de Filipe Guerra.

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