sábado, 12 de maio de 2012

J. Rentes de Carvalho, O Rebate


O Rebate é um romance de 1971, de J. Rentes de Carvalho, reeditado agora pela Quetzal. Trata-se de uma descontrução cruel da  mitologia da vida na aldeia, das virtudes do ruralismo tão incensadas pelo regime do Estado Novo. Ao mesmo tempo é uma encenação dos equívocos do reconhecimento de si. O autor explora a tensão entre a comunidade rural, a aldeia, e o emigrante que retorna para sublinhar e ver reconhecido o seu triunfo social em terras de França.

1. Um universo distópico

O paternalismo salazarista - esse prolongamento de uma certa cultura portuguesa bastante antiga - erigiu o mundo rural como arquétipo da bondade, uma espécie de antecipação do paraíso, onde a vida virtuosa dos homens não seria contaminada pelas tentações das metrópoles, esses lugares de perdição por excelência. Rentes de Carvalho, porém, ilumina o espaço rural e permite percebê-lo na sua realidade. A aldeia não é o espaço de uma vida feliz, não é a materialização de uma utopia. De facto, tal como é retratada pelo autor, ela é uma ilha. Ilha significa, contudo, uma espécie de espaço cortado com o mundo, que no seu isolamento gera um modo de vida absolutamente distópico.

A avidez, a inveja, a vigilância contínua sobre os outros e uma sexualidade recalcada e, ao mesmo tempo, exuberante no seu desejo, tensa nas mitologias que a compõem e lhe dão sentido, criam uma atmosfera opressiva, perversa, onde a iniquidade dos actos é moeda corrente. Sem praticamente referir a situação política do país - há uma alusão na figura do padre que abandona o sacerdócio e que o narrador deixa perceber que talvez existam motivações políticas nesse abandono - a aldeia de O Rebate não é apenas a desconstrução da aldeia mítica da nossa infância, mas também a construção de uma imagem do país, da natureza moral da vida comum, da violência surda, mas activamente presente, que percorre o viver comunitário.

Não há grandeza nas personagens, apenas cálculo de oportunidades, enorme tensão proveniente das paixões comuns dos homens, e um exercício contínuo de dissimulação. Nesta ilha rural, a autenticidade das intenções, a veracidade dos actos e a verdade das palavras foram substituídas por uma arte ficcional, cuja finalidade é dissimular, esconder dos outros, abrir o caminho para obter uma vantagem - sexual ou financeira - pela surpresa e pelo engodo. É a este universo cruel e mesquinho que retorna Valadares, o emigrante que acabou por enriquecer em França através do casamento com uma francesa.

2. Os equívocos do reconhecimento

Rico e casado, Valadares retorna para a festa da aldeia em busca do reconhecimento de si e do seu triunfo. Volta para resgatar a derrota social de ter de emigrar, de ter de ir buscar fora da aldeia os bens materiais que, eventualmente, lhe assegurariam a admiração da comunidade e a prestação de vassalagem que o dinheiro deveria trazer consigo. Também o retrato de Valadares é cruel. A emigração e o triunfo social não representam qualquer transformação interior. O universo que o move é o mesmo que tinha à partida, o desejo que o empurra para a aldeia não é diferente daquele que o levou a partir. Ser um entre os outros, ser como os outros, embora mais importante, porque mais rico, que os outros.

Em França aconteceram-lhe coisas - um casamento com uma rapariga estouvada, segundo os modelos da aldeia, arquitectado pelo sogro, e com esse casamento veio o dinheiro - das quais não foi efectivo protagonista e que não tiveram impacto interior, não mudaram a sua forma de ver o mundo, não o libertaram das pequenas mitologias aldeãs com que tinha crescido. É este casal inesperado que é transportado para o universo fechado da aldeia transmontana. Ela vinda de um mundo radicalmente diferente, um mundo que não lhe permite sequer compreender a natureza daquele onde cai. Ele persistindo no que era, trazendo apenas apontamentos dessa vida em França não como manifestação de uma mudança de si, mas como forma de sublinhar a sua nova importância no universo social da aldeia.

A estranheza de Louise, a mulher de Valadares, e a riqueza e pretensões deste vão chocar com o mundo organizado e estruturado da aldeia. A dissonância do casal não conduz à interrogação das consciências e à confrontação com outras formas de habitar o mundo, mas ao exacerbar das atitudes arcaicas e ao reafirmar das práticas perversas que confirmam a solidez da identidade cultural daquela comunidade. A cena da explosão do cio colectivo provocada por Louise ilumina essa perversa solidez identitária. A fuga do casal, envolto no mais puro ridículo, é o resultado final a que conduziu a equívoca busca de reconhecimento do pobre emigrante, daquele que, apesar de algumas aparências diferentes, se mantém estruturalmente fiel ao universo de onde partiu, universo que, contudo, já não o aceita. Abel Valadares é uma figuração de uma demanda de si condenada ao fracasso, pois baseada apenas em factores de ordem social e no retocar da máscara. Retocada esta com elementos estranhos, a comunidade apenas detecta a dissonância e, movida pela sua natureza cruel e impiedosa, pulveriza as pobres pretensões do emigrante bem sucedido.

3. Uma visão de Portugal

Quem conhecer um pouco da História de Portugal não pode deixar de estabelecer uma curiosa analogia entre o casal Valadares e a história dos estrangeirados na cultura portuguesa. De tempos a tempos, a natureza castiça da nossa cultura - científica ou literária - era desafiada pelos chamados estrangeirados. Estes traziam uma novidade, mas esta caía num meio que em vez de ver nela um desafio que propunha renovação e metamorfose, apenas procurava assimilá-la de forma a que não alterasse o fundo do casticismo vigente. De certa forma, Louise é essa imagem de uma novidade desafiante ao nível dos costumes e da economia do desejo. A forma como foi acolhida é uma bela alegoria das dificuldades que, durante muitos séculos, teve a cultura portuguesa de dialogar com o universal proveniente de outras paragens.

O Portugal de O Rebate vem na continuidade do Portugal de A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz. Onde, todavia, Eça mitifica e prodigaliza de virtudes essa cultura particular e castiça, Rentes de Carvalho desconstrói e manifesta a sua natureza distópica e totalitária. Esse Portugal ruralizado não é apenas um país tecnologicamente atrasado, mas um universo mesquinho, cruel e doentio. O Rebate é, em última análise, o diagnóstico, com a crua exposição dos sintomas, de uma doença que corrói o país.

Fará ainda sentido, passados 40 anos da publicação original e com as transformações sociais e políticas que ocorreram, ler Portugal através desta obra? Se se abandonar a descrição totalitária e nos concentrarmos na natureza da cultura, descobrimos que, para lá do verniz que os mass media e a integração na União Europeia trouxeram, dificilmente se deixa de ser aquilo que se é. Os campos despovoaram-se, as cidades encheram-se, bem como as escolas e as universidades. Isso significa, porém, que o campo invadiu a cidade, tomou conta das escolas e transformou a universidade naquilo que se vê nas Queimas das Fitas, nos espectáculos de música pimba que tanto alegram os nossos estudantes e nas monumentais bebedeiras a que se entregam. A aldeia desapareceu para invadir tudo e de tudo tomar conta. A dinâmica da perversidade que Rentes de Carvalho retratou disseminou-se e age difusamente até naqueles sítios onde a imparcialidade e a universalidade deveriam ser a pedra-de-toque.

J. Rentes de Carvalho (2012). O Rebate. Lisboa: Quetzal.

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