Georges Braque - La Noche (1951)
No panorama da filosofia em Portugal tem estado particularmente activa uma corrente que pretende acentuar a dimensão cognitiva e científica da filosofia. Legítimo exercício, mas estranho para mim. Herdeiro de Kant, penso que os territórios foram definitivamente demarcados com a separação entre pensar e conhecer. A ciência produz conhecimento, a filosofia pensa um conjunto de problemas que a ciência, pela sua natureza empírica, não pode tratar. Mas o mais interessante para mim reside noutro lugar e noutra atitude. Chamar-lhe-ia, ao lugar, noite; à atitude, escavar na noite.
A noite é a imensidão que ainda não foi pensada, aquilo onde a luz do entendimento não penetrou. O acto de escavar na noite significa retirar dela pedaços que iluminamos dando-lhe um nome e uma definição. Todo este processo é muito mais literário do que científico. É um processo de pura ficcionalização. Alguns exemplos. A invenção da Ideia por Platão ou da substância por Aristóteles, a instituição do Cogito por Descartes ou a demarcação do transcendental por Kant são formas de escavar na noite, de lhe retirar um pedaço e de o iluminar, permitindo, com os materiais roubados e confeccionados pelo pensamento, construir mapas para nos orientarmos nessa noite que nos rodeia.
Nada disto tem a ver com a ciência, nem como uma filosofia dita científica, aquela que se faz em muitas universidades, fundamentalmente, mas não só, no mundo anglo-saxónico. Este exercício deixou de ter lugar no mundo académico, como a existência de um Nietzsche, outro grande escavador da noite, demonstrou já no século XIX. Talvez tenha chegado a hora de compreender que a Filosofia não pertence ao mundo da universidade, com os seus rituais e exercícios científicos. Escavar na noite não é uma ocupação digna de doutores e de professores doutores, gente de mãos limpas e unhas cortadas. Escavar na noite é um exercício de gente perdida, tipos que caem em poços quando espreitam os céus.
Concordo com essa visão da filosofia e também me irritam as pretensas veleidades científicas da mesma. Não concordo, porém, com uma incompatibilidade entre filosofia e academia. Esta não se esgota na formação de engenheiros, médicos, advogados ou economistas. Pode servir igualmente para ajudar aprendizes de filósofo a "escavarem na noite". Também o escritor, o pintor ou o músico escavam na noite e isso não é incompatível com a existência de cursos de literatura, de belas-artes ou de música. Já agora um pormenor irrelevante: creio que Tales de Mileto não será um bom exemplo de um tipo perdido. O homem fartou-se de ganhar dinheiro com as coisas que sabia. Hoje, seria um engenheiro de sucesso, muito longe da imagem romântica (Repito, por mim partilhada) de quem escava na noite. JR
ResponderEliminarAcho que a forma como a Universidade se está a estruturar, fundamentalmente com as modalidades de avaliação de professores, vai deixar cada vez menos lugar para isso. No fundo, escavar na noite não é rentável nem eficiente. Os cursos de literatura estão às moscas. Mas talvez esteja enganado, talvez ainda seja possível não reduzir toda a universidade a um centro de formação profissional, o que, de certa maneira, sempre foi desde a sua fundação medieval...
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