Uma das ideias correntes sobre a natureza da arte de raciocinar é a da sua neutralidade ética. Raciocinar correctamente, devido ao formalismo lógico subjacente ao processo, tanto pode servir as boas como as más causas. É este o pensamento corrente. Este artigo do filósofo australiano Peter Singer permite, contudo, pensar que não será assim. O problema de partida é o da existência ou não de um progresso moral da humanidade. Este foi um dos temas centrais da ética kantiana. No entanto, o século XX com as suas duas guerras mundiais, os regimes totalitários, os campos de concentração nazis, o gulag soviético, a experiência dos Khmers vermelhos no Cambodja e as bombas atómicas lançadas sobre o Japão em 1945 tornou a ideia de um progresso moral da humanidade um tema praticamente obsoleto, se não mesmo risível.
O artigo de Singer é particularmente interessante pois lembra que o círculo de seres a quem estendemos consideração moral se foi alargando. Isto significa, no seu entender, um progresso moral. Recorrendo a dados empíricos, o autor refere que, mesmo no século XX com o seu cortejo de atrocidades, houve um real declínio da violência. Alguns dados citados são surpreendentes. O que terá motivado esse progresso moral foi o amplo desenvolvimento, na espécie humana e durante o século XX, da capacidade de raciocinar. Citando um estudo do psicólogo Steven Pinker, Singer refere que o "reforço dos poderes de raciocínio dá-nos a habilidade de nos separarmos da nossa experiência imediata, e da nossa perspectiva pessoal ou paroquial, e de enquadrarmos as nossas ideias em termos mais abstractos e universais". Isto conduzirá a melhores compromissos morais, onde se inclui a prevenção da violência, acrescentou.
O que pretendo aqui argumentar, como corolário da leitura do texto de Peter Singer, é a ausência de neutralidade ética e axiológica nas disciplinas científicas e nas áreas formais como a matemática e a lógica. A exigência de imparcialidade que tanto as ciências empíricas (da natureza ou da sociedade) como as disciplinas formais pressupõem, bem como o princípio de universalidade que as conduz são valores de carácter moral. Esta conexão entre as ciências empíricas e as disciplinas formais e abstractas com a moral é um dos pontos centrais que deveria ser sublinhada, nomeadamente ao nível da instrução escolar.
A escola não deve educar no sentido habitual do termo. Isso competirá às famílias. No entanto, cada disciplina traz consigo um determinado ethos e uma dada norma moral. O importante é que as novas gerações percebam esse ethos e essa norma moral. Percebam que um bom raciocínio exige imparcialidade e visa uma perspectiva universal, uma perspectiva que todos podem aceitar e comprovar. Aquele que se habitua a pensar de forma imparcial e percebe a exigência da universalidade estará mais apto, como refere Singer, a melhores compromissos morais. Ao que eu acrescentaria que estará mais apto a melhores compromissos sociais, económicos e políticos.
Talvez a ideia de progresso moral da humanidade, defendida por Kant, ainda não tenha morrido e possamos aprender alguma coisa com ela, apesar das múltiplas razões para um exercício de um fundo cepticismo sobre a natureza humana. O exercício quotidiano de exigência de imparcialidade, rigor e universalidade no acto de raciocinar, seja na matemática, na física, na história ou na filosofia, é uma forma subtil de educação moral e cívica. Mais importante que um milhão de aulas de educação cívica.
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