[Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este
retoma os três textos sobre As
Cidades e as Serras, de Eça de Queiroz]
1. O homem teórico e a pastoral
serrana
Em A Cidade e as Serras,
publicado postumamente em 1901, Eça de Queiroz mostra-se bastante a par do
espírito do tempo. Em 1872, sob a influência do romantismo, Nietzsche, em A
Origem da Tragédia, lança um violentíssimo ataque contra a cultura ocidental
fundada na racionalidade e no homem teórico, isto é, no homem cuja finalidade e
justificação de vida é a produção de conhecimento. Em Jacinto, com a sua
biblioteca de 30 000 volumes, Eça traça a caricatura da avidez do saber
presente no homem teórico ocidental. O seu desejo de saber não é já a de um
Fausto, que pactua com o diabo para alcançar o conhecimento, mas só a
necessidade de acumular livros, alimentar uma gigantesca e sempre actualizada
biblioteca, onde se pode encontrar tudo o que as ciências e a filosofia
produzem. Uma biblioteca que Jacinto não lê, que o enfastia.
O produto de todo o labor científico, segundo a obra, resume-se,
assim, a papel que se acumula em estantes e aos aparelhos técnicos, os quais
acabam por atrapalhar a vida quotidiana, mais do que libertá-la. A troca de
Paris pela serra do norte de Portugal, por Tormes, representa o voltar as
costas à civilização científica do Ocidente, bem como à técnica (o 202 dos
Campos Elísios, residência parisiense de Jacinto, era uma espécie de museu real
dos últimos produtos da técnica) que dela decorre. A virulência do ataque de
Eça de Queiroz à civilização do homem teórico não é menor que a de Nietzsche,
embora este veja a salvação na restauração do espírito trágico dos gregos
através da música de Wagner, e Eça proponha um Jacinto filho-pródigo que volta
à sua casa ancestral, a uma espécie de Arcádia serrana, onde encontra, apesar
das tempestades invernais e da miséria que ali descobre, um verdadeiro locus amoenos.
Com Zé Fernandes, narrador e personagem, e Jacinto, Eça de Queiroz
acaba por fornecer protótipos do homem português. Pastores viris, não
efeminados como o renascimento os pensou, em contacto com a natureza e a vida
rude dos campos. O homem do conhecimento não passa de uma impostura das grandes
cidades. Mesmo quando, num passeio à Sorbonne, Zé Fernandes reage ao desacato
dos estudantes, não o faz pelo amor ao saber, mas ao da ordem, essa velha e boa
ordem que reina nas serras pátrias. Como em Nietzsche havia o prenúncio de uma
grande tragédia no destino dos alemães, também neste texto de Eça se configura
muito do nosso destino no século XX.
2. Arquétipos femininos e tragédias
pessoais
A segunda nota de leitura sobre A Cidade e as Serras liga-se à imagem do feminino. De certa
maneira, as personagens femininas da obra são pouco densas e a sua construção
obedece à elaboração de estereótipos, cuja finalidade parece ser a de fornecer
uma imagem arquetípica da mulher que se deve ter em consideração, quando chegar
a hora de formar família.
Jacinto não abandona, ao sair de Paris, apenas a civilização do saber e da
técnica. Abandona também a vida social de uma certa alta sociedade e os seus
jogos amorosos, onde brilham duquesas e cocottes, não se distinguindo umas das outras. A mulher, que
Jacinto vai encontrar em Tormes, está longe deste jogo de sedução, seja esta
motivada pela necessidade, seja pelo mero prazer e exercício de poder de casta.
Joaninha, uma reminiscência de Garrett, acaba por ser, à imagem da sua, e
também de Zé Fernandes, tia Vicência, a súmula das virtudes femininas que dão
ânimo ao homem gasto pela experiência mundana. Joaninha é pura, fadada para a
maternidade, uma dona de casa, cujos traços eróticos são, fora do segredo do
lar, não reveláveis.
Esta deserotização da descrição de Joaninha não deve ser relacionada apenas com
a mulher mundana da grande cidade. Ela aparece aqui em oposição a esse tipo de
mulheres, mas nessa sua oposição ela representa também uma forma de relacionamento
muito específica com o masculino. Ela é a salvação para o homem português
experiente e cansado dos jogos eróticos da vida em sociedade. Muitas vezes é-se
tentado a ver este tipo de estereótipos, os quais chegaram até hoje, como
produto do Estado Novo e da coligação moral entre o salazarismo e a Igreja
Católica. O que se constata, porém, é que a ideologia do Estado Novo apenas
reflecte e conserva modelos mais antigos, veiculados inclusive por pessoas tão
insuspeitas como Eça de Queirós.
Esta imagem fictícia da virtuosa mulher portuguesa não deixa de ser o produto
de um eros masculino temeroso perante o saber erótico da mulher e do poder que
isso pode representar, como as mulheres de Agustina Bessa-Luís – mulheres da
mesma proveniência geográfica e social – não deixam nunca de mostrar. São estes
arquétipos do masculino e do feminino, presentes em A Cidade e as Serras, que acabam por gerar não apenas muitos dos
equívocos que se estabelecem nas relações entre mulheres e homens, como criam
as condições psicológicas de muitas tragédias pessoais.
3. Um paternalismo virtuoso
O que representa Jacinto no seu retorno a Tormes? Ele emana
de e reforça um certo arquétipo de homem condutor de destinos de uma
comunidade. Volta do estrangeiro, fatigado com a depravação das grandes
metrópoles, e deixa-se cativar pela virtude local, um misto de ingenuidade e de
ignorância. O grande senhor convertido à virtude vai descobrir, horrorizado
estética e eticamente, a miséria que impera nas suas propriedades. Prepara um
grande plano de reforma, passando pela reconstrução de casas, até à construção
de uma escola.
Jacinto é modelado como um homem providencial recto e justo,
que distribui a cada um aquilo que ele, Jacinto, acha que merece. Ele é apenas
e só um pai virtuoso. É um arquétipo político que, em Portugal, vem de trás e
teve até hoje uma enorme fortuna. Mesmo que Jacinto se diga, a dado momento,
socialista, para afastar de si suspeições de partidário de um ultramontanismo miguelista
serôdio, o modelo onde assenta a sua figura não deixou de estar presente, por
exemplo, em Salazar, ou já na democracia pós-74, em figuras como Eanes, Soares
e Cavaco, mesmo Cunhal.
Qual a contrapartida deste arquétipo paternalista e
virtuoso? Se ele é o homem activo que, pelo carácter e pelo sentido de justiça,
coloca o mundo nos eixos, isto é, dá a cada um o que é seu, os outros apenas
têm de esperar que chegue o homem virtuoso. A sorte da maioria depende da
virtude de um só. Por isso, o esforço próprio, a iniciativa e a autonomia são
inúteis. De facto, Jacinto não era um miguelista, mas também não era um
liberal, naquele sentido em que acreditaria que cada um deve tomar a sua vida
nas suas próprias mãos. Todo o drama de Portugal contemporâneo, do Portugal de
hoje, está ali naquelas belas e afectuosas relações que o senhor Jacinto
entretém com as pessoas de Tormes.
Ou seja, nada de gente revolucionária, viva, suja, real, faminta, a comer batatas como no quadro do Van Gogh, nada de gente do campo à Miguel Torga, nada de mulheres à Agustina, nada de misérias à Camões. Um retrato de protótipos bonacheirões...gente boa, como deve ser, nesse campo idealizado por Eça nas Serras...a malta que vivia na miséria em Paris também não interessou muito a Eça...um bom escritor, sim, o criador do chamado Português moderno, sim...espírito crítico de uma certa sociedade, sim...belíssimo narrador, sim. Mas faltou sempre a Eça a grandiosidade do «humano, demasiado humano» para que o possamos considerar um dos grandes. Contudo, recordava-me deste seu texto. Digno de ser inserido numa Sebenta de estudos universitários. Muito bom. Enfim, vou preparar uma canja, citadina, nada de comparável à admirável canja de galinha de A Cidade e as Serras, mas...uma boa entrada, quentinha, para um jantar de Primavera com sabor a Inverno. Quanto à Arcádia...« eu também vivi na Arcádia»...e, contudo....
ResponderEliminarCanja foi uma coisa que fui deixando de gostar. Há décadas que não como. Relativamente ao Eça, julgo que esta obra já não tem o vigor de outras, nomeadamente de Os Maias. Mas Lê-se sempre com agrado. Talvez ela não quisesse fazer outra coisa senão essa, agradar ao leitor sem exigir muito dele.
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