quinta-feira, 24 de maio de 2012

Plano Marshall?


Em consequência da Segunda Guerra Mundial, a perspectiva que a Europa oferecia era de miséria e desolação. As fotografias e os documentários da época mostram torrentes deploráveis de civis desamparados, viajando em carroças através de paisagens bombardeadas, por cidades devastadas e campos áridos. Crianças órfãs vagueiam desoladas à frente de grupos de mulheres exaustas, vasculhando destroços de casas em ruínas. Deportados com as cabeças rapadas e internados em campos de concentração, vestindo em pijamas às riscas, olham apaticamente para a câmara, esfomeados e doentes. Até mesmo os eléctricos, seguindo irregularmente ao longo das linhas danificadas, movidos por uma corrente eléctrica intermitente, parecem traumatizados pelos rebentamentos das granadas. Tudo e todos - com a notável excepção das bem alimentadas forças de ocupação aliadas - parecem gastos, sem recurso, exaustos. (Tony Judt (2006). Pós-Guerra - História da Europa desde 1945. Lisboa: Edições 70, p. 33.)

Foi na paisagem descrita por Tony Judt que em 1947 foi decidido o Plano Marshall. O que levou à ajuda norte-americana não foi qualquer sentimento de solidariedade com a Europa nem uma súbita piedade para com as populações vítimas da devastação trazida pelo conflito. O que desencadeou o Plano foi a ameaça do comunismo e, consequentemente, uma possível diminuição drástica da zona de influência norte-americana. O Plano Marshall foi uma estratégia defensiva da Guerra Fria que visou, e conseguiu, estabilizar as governações europeias e afastar da Europa Ocidental a hipotética atracção que o comunismo poderia exercer sobre massas miseráveis.

Quando hoje em dia se ouve falar de um novo Plano Marshall para a Europa fica-se perplexo. São quatro as causas dessa perplexidade. Em primeiro lugar, a situação da Europa, por difícil que seja em alguns países, está muito longe do grau de devastação, mesmo se apenas se considerar a destruição económica, ocasionado pela Guerra Mundial. Em segundo lugar, o comunismo está morto e enterrado e não representa qualquer ameaça para quem quer que seja. Depois, não se percebe quem é que teria o dinheiro e estaria disposto colocá-lo na economia europeia. Por fim, a situação geopolítica global mudou drasticamente, com novos actores na cena política mundial e novos e poderosos concorrentes no mercado global. Falar de planos marshall para Europa ou coisa semelhante, mesmo para a Europa periférica e em crise, é uma ociosidade e uma manifestação perigosa de preguiça de pensar.

A Europa pura e simplesmente tem de enfrentar as novas realidades mundiais com as suas próprias forças e adaptar-se a essas realidades. Há coisas que percebemos que se tornaram impossíveis. O Estado não pode ser um véu protector geral, como pretendem ainda certos sectores de esquerda. Todavia, as políticas liberais que têm sido seguidas estão a gerar inúmeros problemas, nomeadamente ao nível do sentimento de pertença das pessoas a um projecto colectivo, estão a desfazer os laços entre as classes sociais e a criar, Europa fora, bolsas cada vez maiores de ressentimento social. É aqui que está o desafio que esquerda e direita enfrentam. A esquerda precisa de repensar o valor da comunidade e da igualdade sem que o Estado seja o agente e o gerente dessas políticas de preservação das comunidades e do estabelecimentos de formas de igualdade mínimas entre cidadãos. A direita precisa de repensar os limites da liberdade de mercado e do poder de iniciativa.

O que está em jogo é a resposta da Europa aos desafios globais. Esta resposta terá de conjugar a liberdade, aquela que se expressa no jogo do mercado, com a comunidade onde nos sentimos pertença e experimentamos o reconhecimento justo do contributo de cada um para o bem comum. Nada pior para a Europa do que uma política absolutamente neoliberal, ou ordoliberal, que destrua os laços comunitários. Nada pior, por outro lado, do que a ilusão de um retorno ao Estado protector. O que importa, hoje em dia, é pôr em tensão - o que significa colocar, ao mesmo tempo, em conflito e em complementaridade - a iniciativa individual e a iniciativa comunitária. O que importa é reinventar a política tanto à direita como à esquerda. Só isso poderá ajudar indivíduos e comunidades a ajustar-se à realidade global, a qual a Europa não controla nem pode dispor segundo o seu arbítrio. Isso acabou há muito.

7 comentários:

  1. Texto lúcido e bem estruturado. Contudo, poderia pensar-se que não acredita que haja mentes brilhantes que consigam reinterpretar os tempos, recriando uma nova forma de estar (e estar, estando integrados numa União Europeia cuja função está por desenhar).

    Ou acredita?

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    1. Mentes brilhantes existirão e pensarão, contudo o problema está mais ao nível político onde a ideologia funciona como um nevoeiro denso. Se reparar, o debate ainda é todo ele marcado pelas clivagens do final do século XIX, entre liberais e socialistas. As ideologia dão demasiadas certezas e essas são obstáculos para encontrar soluções novas, soluções de compromisso. Aqui compromisso não significa um compromisso entre duas ideologias e os seus representantes, mas um compromisso sobre o desconhecido, uma necessidade de operar em conjunto e em conflito a partir de pontos de vista estranhos e sobre a estranheza do mundo em que vivemos.

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  2. O que existe de mais externo a movimentos formatados (= partidos) será o que se refere aos movimentos dos indignados. Mas é uma coisa tão inorgânica, tão destituída, apenas boas intenções e lugares comuns. Não se vê gente com miolos que proponha essa fractura, uma clivagem entre o conhecido e velho e o desconhecido. Ou não vejo, pelo menos.

    Mas acho que, ao pontapé ou ao encontrão, com mensagens frouxas e outras despropositadas, a coisa acabará por mudar de carris e, quem sabe, entrar no bom caminho.

    Isto da Grécia está a ser um belo abanão para estes países que andam a definhar na maior frouxidão.

    (Enfim, abanão digo eu, porque para o nosso primeiro-ministro não é abanão nenhum, lá continua colado à Merkel, até na fotografia de grupo, armado em engraxador. Pode meio mundo tirar ilações do que se passa no País, na Grécia, na Europa, no Mundo... que ele não está nem aí, não percebe o que se passa. )

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    1. A minha ideia não passa por esse tipo de movimentos, politicamente muito ingénuos. Depois de escrever a resposta de há pouco ao seu comentário li uma entrevista ao Público de Jan Zielonka, professor de Política Europeia na Universidade de Oxford e líder de projecto do centro de estudos European Council on Foreign Relations, e ela explica algumas possíveis saídas. Mas também aponta claramente os graves riscos que se estão a correr. Isto do ponto de vista político. Do ponto de vista filosófico, é necessário encontrar novas formas de pensar a comunidade e a liberdade. A relação entre a filosofia e a política é de interanimação. As ideias lá farão o seu caminho.

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  3. Talvez fosse interessante (e útil!) divulgar as referidas possíveis saídas ou, não lhe apetecendo, deixar aqui o link. Ou estou a pedir demais...?

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    1. Não deixei o link do Público porque não sabia, e não sei, se a entrevista está aberta ou se é acessível para assinantes. Deixo aqui, depois logo se vê...

      http://jornal.publico.pt/noticia/24-05-2012/a-europa-deve-deixar-a-abordagem-do-castigo-e-passar-a-do-incentivo-24593364.htm

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