Esta manchete do antigo Diário de Lisboa presta-se facilmente a um enorme equívoco. Plausivelmente, a notícia é de 1973 - não se consegue perceber a data - e estamos em plena ditadura, com o Prof. Marcello Caetano no presidência do Conselho de Ministros. A ideia de sacrifício pedido aos portugueses parece permitir estabelecer uma analogia entre a situação de então e a que vivemos hoje em dia. Recolhi a imagem no facebook e alguns dos comentários enfatizavam que a diferença seria a da existência da liberdade, mas que rapidamente caminharemos para uma nova ditadura. Será assim? Será semelhante a situação de hoje àquela que se vivia no período anterior ao 25 de Abril de 1974.
A crise retratada no Diário de Lisboa é a resultante do choque petrolífero dos anos setenta, a nossa deve-se à questão da dívida soberana. Mas o problema não está aí. O problema é a questão da liberdade. Naqueles anos, a liberdade era sentida como uma antídoto à vida sacrificada, como uma promessa onde uma vida boa e decente seria possível. A liberdade representava a possibilidade de fugir ao altar onde as esperanças eram ritualmente executadas. Não por acaso, Marcello Caetano pede sacrifício económico e sacrifício da liberdade.
O que mudou foi o estatuto da liberdade. A liberdade deixou de ser um direito que se reivindica ao soberano para passar a ser, como muito bem notou Zygmunt Bauman, um dever que eu tenho de realizar. Passos Coelho não dirá que algumas liberdades terão de ser sacrificadas, mas apela continuamente a que todos - desde jovens a velhos desempregados - realizem a liberdade através da iniciativa. Assim, o drama é que a liberdade não significa apenas o direito de reunião e de associação, de participar na vida cívica ou poder tomar a palavra e exercer o direito de crítica. A liberdade é também a exigência de ser completa e totalmente responsável pelo seu destino, não contar com uma teia social de protecção e de enquadramento, assumir-se como mónada racional que apenas conta consigo.
Os ataques ao Serviço Nacional de Saúde, ao sistema público de educação e à protecção social não são feitos em nome de uma aspiração à ditadura. Pelo contrário, eles são o efeito de uma exigência moral de liberdade, são o resultado de um imperativo que nos manda ser livres até às últimas consequências. A ideologia dominante, aquela que tomou conta da governação portuguesa, olha para cada ser humano como uma encarnação do herói americano que, com a sua autonomia, independência e coragem, empurra, a cada dia que passa, a fronteira mais para lá, conquistando território, desbravando caminhos sem contar com qualquer laço social de protecção. Esta narrativa subjacente às práticas governativas justifica os sacrifícios em nome da liberdade e não da ditadura. Muitos dos comentadores de direita e dos bloguistas liberais que enxameiam o espaço público representam a realidade social à luz desta narrativa imaginária.
Se a esquerda quer perceber o que se está a passar, então o melhor é deixar de lado os quadros mentais de há 50 anos e compreender as novas realidades e a natureza moral delas. A ameaça não vem da ditadura, de um governo despótico que tolha a iniciativa, mas de uma exigência de liberdade que se tornou um terrível fardo para a generalidade dos indivíduos. Nunca como hoje fez sentido a proposição de Sartre "o homem está condenado a ser livre". Cortados os elos de ligação do indivíduo à comunidade, cada um está só com a sua liberdade. A família está em destroços e o Estado social é destruído metodicamente em cada dia que passa. Tudo isto, porém, é feito em nome da liberdade, em nome desse projecto delirante que vê no homem um mero ser racional desligado da sua natureza social.
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