sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Interregno

Lorenzo Costa, Birth of Jesus, 1490

Também o Kyrie Eleison suspende a sua actividade neste período de festas. Voltará em Janeiro. A todos um Bom Natal e um Feliz Ano Novo.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Advento e Natal

A minha crónica natalícia em A Barca.

As nossas sociedades secularizadas, mesmo se compostas por pessoas formalmente cristãs, perderam há muito qualquer relação profunda com a religião. Observemos o Natal. Este, devido à sua transformação numa grande festa pagã, em tudo contrária à frugalidade do presépio, é um caso perdido. Para compreender essa perda, vale a pena perscrutar aquilo que as sociedades tradicionalmente cristãs abandonaram no processo de secularização. Ligado ao Natal está o Advento. O interessante desse tempo de preparação do Natal é o seu conjunto de valores, os quais todos nós, crentes, agnósticos e ateus, podemos partilhar. Sublinho três. O arrependimento, a fraternidade e a paz. Nenhum deles exige que sejamos crentes.

A desvalorização da contrição cristã, mesmo pelos cristãos, é algo que nem um ateu deve celebrar. O arrependimento está ligado à falibilidade humana, ao reconhecimento dos nossos limites, à tomada de consciência do mal que fizemos aos outros. O arrependimento é um trabalho de contínua educação moral que o sujeito faz sobre si mesmo. Haver, no ano, épocas em que ele é solicitado significa que a sua importância está viva. Hoje em dia, o arrependimento é visto apenas como um problema da consciência individual, no melhor dos casos, ou como uma fraqueza que se deve evitar. Tornou-se irrelevante, socialmente.

A fraternidade, por seu lado, é fundamental em qualquer sociedade e, por maioria de razão, em sociedades concorrenciais. Estas estão organizadas para que, a todos os níveis, os indivíduos concorram uns com os outros. Esta concorrência tem méritos inegáveis. Fornece melhores produtos, torna as pessoas mais capazes, melhora as próprias instituições. Tem, todavia, um perigo. A sua natureza adversarial pode conduzir à ruptura dos laços comunitários. A fraternidade lembra-nos que pertencemos todos à mesma espécie, que, para além de concorrentes, somos irmãos e, por isso, temos um dever de cuidado mútuo e de manutenção entre nós da paz, essa outra exigência do Advento.

A secularização das sociedades permitiu-lhes separar a salvação da gestão da vida civil, o que foi uma conquista civilizacional. Mas, ao olharmos para a vida de hoje, não deixa de haver um sentimento de perda. A religião trazia com ela um conjunto de valores e de tempos onde eles se tornavam manifestos e de exercício obrigatório. De certa maneira, mesmo que a salvação fosse uma ilusão, as comunidades saíam fortalecidas. O nosso egoísmo natural era confrontado e posto em cheque. Isso acabou, como todos sabemos. Por que razão, sem Advento, haveria de haver um Natal que não fosse um exercício risível de ostentação?

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Ensaios sobre a luz (20)

Myron Wood, Stone, 1980 (via)

Do chão, iluminada, nasce uma pedra que, perdida e quase póstuma, espera a noite para regressar à morosa moradia do sombrio e sonâmbulo silêncio.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Êxodos e errâncias

Marc Chagall, Êxodo, 1952-66

Mais de 350 anos da chamada Paz de Vestefália tornaram, para nós Europeus, a territorialidade e a soberania, a que posteriormente se adicionou o jogo da cidadania com as suas regras de inclusão e de exclusão, como o modo natural do existir humano. A cada grupo o seu território e as suas leis. E esse longo hábito social e político tornou-nos cegos para a realidade da espécie humana. A errância pelo mundo e o êxodo contínuo de povos e grupos alargados de indivíduos são pulsões tão fortes que não reconhecem os diques que a ordem jurídica trazida à Europa, e através dela ao mundo, pela Paz de Vestefália quer impor à realidade.

Aquilo que assistimos na Europa com a chegada contínua de imigrantes e a eleição, em diversos países europeus, de governantes com programas para liquidar a chegada de migrantes e, se possível, expulsar os que já lá estão é apenas a manifestação do conflito entre a pulsão natural da espécie humana para o êxodo e a artificialidade cultural e jurídica da territorialização das soberanias. No mundo ideal nascido com a Paz de Vestefália, nós teríamos o nosso território e as nossas regras e vós, os outros, o vosso território e as vossas regras. A realidade, porém, é que as fronteiras jurídicas são construções frágeis perante o apelo constante ao êxodo que anima a espécie humana, como se o nosso lugar fosse sempre um outro no qual não estamos.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Um programa político

Hans Zatzka - At the Swan Lake

Olhamos a pintura de Hans Zatzka e facilmente encontramos nela uma imagem, por certo estereotipada, da Áustria. Quem leu Thomas Bernhard tem, contudo, outra imagem da Áustria. O escritor via sob o véu da social democracia e do catolicismo austríacos algo de muito tenebroso, tenebroso que foi o objecto da sua obra. E é esse tenebroso que explicará o novo governo austríaco. Não apenas pela extrema-direita ter voltado, mais uma vez, ao poder, mas porque as três grandes pastas políticas lhe terem sido entregues: Negócios Estrangeiros, Defesa e Interior. Uma economia liberal e uma política musculada. Eis todo um programa político. A Áustria nunca foi um conto de fadas.

domingo, 17 de dezembro de 2017

Micropoemas - Mármore 4

Ben Kerckx, Paisagem de pedreira de mármore de Carrara, 2007

4. Da terra

Da terra,
a solidão do monte.

Do mármore,
um deus no horizonte.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

sábado, 16 de dezembro de 2017

Ensaios sobre a luz (19)

Herman Leonard, Dancer-Choreographer Martha Graham, Undated

De súbito, da cintilação de uma estrela nascem mãos, e o corpo, leve e luminoso, fulgura e ergue-se da penumbra, onde, por instantes, levita para, agraciado, pousar em graça e luz.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Há-de vir um Natal

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Cheguei àquela idade em que os versos, de David Mourão-Ferreira, “Há-de vir um Natal e será o primeiro / em que se veja à mesa o meu lugar vazio” começam não só a fazer sentido, demasiado sentido, como crescem espectrais sobre mim. Há muitas pessoas que não cultivam o Natal ou, mesmo, que o desprezam. Não me incluo nesse grupo. O meu culto do Natal foi-me trazido por um não crente, o meu pai. E nunca passou. Nesse culto, eduquei os meus filhos, e espero que eles eduquem os meus netos. Há uma coisa, porém, que se alterou radicalmente. Antigamente, o Natal era marcado pelas presenças. Agora, pelas ausências. E com o passar vertiginoso dos Natais, o meu lugar vazio à mesa está cada vez mais próximo.

Ora, no Natal, o doloroso não é o sentimento desse dia em que não estaremos já presentes, nem o dia em que não haverá ninguém na terra que de nós se recorde. Se olho para esse facto póstumo, nada nele me comove a não ser que outros, devido à minha ausência, se tornarão, para mim, ausentes. Doloroso não é perdermo-nos a nós, mas é perdermo-nos daqueles que mais amamos. O Natal surge assim, na sua plenitude, como uma celebração da presença. Que isso tenha sido sublinhado por um mito, onde se narra que nascido do seio virginal de uma mulher o filho de Deus se tornou presente no mundo, é irrelevante. Podemos dizer que o filho de Deus veio ao mundo para que nós, pobres mortais, possamos celebrar a vida e a precariedade da presença dos que aqui estão.

Quando na mesa de Natal começa a haver ausências, percebemos que há alguma coisa errada na exuberância que tomou conta da quadra festiva. O excesso de luzes pelas ruas, o turbilhão comercial que sobre nós desaba, a necessidade de presentear, no excesso que as nossas sociedades exigem, os próximos, tudo isso surge como um véu para ocultar a realidade. E a realidade é a da fugacidade da nossa presença sobre a terra, a fugacidade da presença dos que amamos.

Este Natal mundano e mercantil, ah o velho fetiche da mercadoria, aquele que nos cabe viver no tempo presente, é não apenas um adversário poderoso desse outro Natal, mas um inimigo terrível e sem complacência. O Natal do mito fala-nos da presença para sublinhar que mesmos os que deixaram o seu lugar vazio ainda fazem parte de nós e da pequena comunidade que se reúne à mesa. O Natal da realidade de hoje é um exercício falso de alegria cuja finalidade é esquecermos o que nunca deveremos esquecer. Sim, eu sei: “Há-de vir um Natal e será o primeiro / em que não viva já ninguém meu conhecido”.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Credo quia absurdum

Raymond Daussy - Icarus flight (1948)

Talvez um dia destes fale sobre Tertuliano. Tudo é possível. Hoje, porém, fico-me pela frase latina Credo quia absurdum,  Creio porque é absurdo. O que me interessa não é a polémica religiosa entre o fideísmo e a ortodoxia, tão pouco o desafio que ela apresenta à razão filosófica. A frase de Tertuliano é um óptimo guia para determinar a verdade dos acontecimento políticos de hoje em dia. Há tempos, muito se falou – por exemplo, na sequência do Brexit ou da eleição de Trump – numa era da pós-verdade. Erro de perspectiva. A nova era não nega a verdade, diz-nos apenas que o verdadeiro é absurdo. As pessoas lamentam-se de que, em política, não sabem o que acreditar e em quem acreditar. A solução é fácil: quanto mais absurdo mais digno de ser considerado verdade. Um acontecimento é absurdo, logo é verdadeiro. Um personagem político é absurdo, logo é digno de crédito. Qualquer argumento político que se possa reduzir ao absurdo deve ser considerado válido. Tertuliano, na verdade, era um visionário. Da longínqua Cartago dos século II e III da nossa era, ele olhou para o futuro e compreendeu a essência dos nossos dias: Credo quia absurdum.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Ensaios sobre a luz (18)

Francisco Mora Carbonell  - A la cita, Spain, 1935

Sob a luz que rasga as trevas, o amante caminha inquieto e sôfrego para a sofreguidão dos braços que a amada na inquietude da espera lhe estende.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Micropoemas - Mármore 3

Cascatas de calcário na Turquia, Egeu

3. Calcário

Calcário,
cidade sem fim.

Brancura,
morte a sonhar-se em mim.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

domingo, 10 de dezembro de 2017

Alma Pátria - 40: Francisco José - Olhos Castanhos



Este era também um dos "cromos" que não poderia faltar nesta "colecção" de Alma Pátria. Temos a reprodução da edição de Olhos Castanhos em 78 rpm, a primeira gravação, efectuada pela etiqueta Estoril. Foi graças ao blogue IÉ-IÉ que descobri que Francisco José é irmão do cientista Galopim de Carvalho, esse mesmo, o dos dinossauros. Olhos Castanhos é uma magnífica canção, talvez a mais conhecida de Francisco José. Talvez fosse mais indicado uma outra, Guitarra Toca Baixinho, mais de acordo com o espírito da rubrica. Mas fiquemos pela taxonomia dos olhos, que não deixa de ser um catálogo de fidelidades e traições. Se não tiver olhos castanhos, paciência. Acontece aos melhores.

sábado, 9 de dezembro de 2017

Ensaios sobre a luz (17)

Dennis Stock, Venice Beach Rock Festival. California, 1968

A luz do Verão nasce no centro do mar e derrama-se, furtiva, no desejo dos corpos que, entediados, esperam a revelação de um segredo ou da volúpia de uma deusa.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Descrições fenomenológicas 30. Algumas mulheres 3

Rothko, N.º 5, 1964

Foi assim que a vi pela última vez. Um fundo negro, de um negro mais espesso que a noite, onde o rosto fulgurava na púrpura da escuridão. Não falava com ninguém, pois não havia quem dela se aproximasse. Olhava, com os olhos azuis, demasiado azuis, para um ponto indefinido. Os lábios deveriam ter incendiado muitas paixões, mas agora não havia neles nada que cantasse, nem sequer a promessa de um amor de ocasião. Estavam fechados, como fechada estava a face. Não havia sombra de desafio, nem uma nuvem de desilusão. As narinas, por vezes, abriam-se ligeiramente para deixar passar o ar. Nessas alturas, as pálpebras tremiam e o brilho dos olhos diminuía, mas logo se recompunha. Quem a via poderia pensar que esperava, mas nada o indicava, pois nela não ardia a tocha do desejo. A mão direita saiu da obscuridade e pousou no pescoço. Os dedos finos e compridos, belos como os olhos, eram agora ramos que nasciam do corpo. Os anos ainda não tinham passado por eles. Seguravam, na sua palidez, o fulgor que se desprendia do silêncio do rosto.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Uma comédia

Jean-Louis Hamon - La comedia humana (1852)

Fátima Bonifácio terminava o seu artigo no Observador, sobre a eleição de Mário Centeno, assim: Sintomaticamente, as reacções mais do que reservadas do PCP e do Bloco à promoção europeia de Mário Centeno foram mais do que cautelosas. António Costa que se cuide. Mais do que uma aviso a Costa, a articulista estava a expressar um desejo. Um desejo, aliás, partilhado por largos sectores da direita. Esse desejo não é outro senão que o BE e o PCP façam o trabalho que a direita parece incapaz de fazer: derrubar o governo para que ela, direita, retorne ao poder.

Ontem, por um acaso, ouvi, na SIC Notícias, Mariana Mortágua dizer, sobre a eleição de Centeno, duas coisas. Primeira, que a eleição de uma pessoa não implica uma alteração das políticas de uma instituição e que não é expectável que haja qualquer novidade vinda do Eurogrupo. Segunda, que sempre houve uma divergência de fundo entre o BE e o PS sobre as questões do euro e das políticas que estão com ele relacionada. Apesar disso, acrescentou, tem havido condições para um acordo político. Não muito diferente será a posição do PCP.

O interessante é a conjugação das duas afirmações. Dito de outra maneira. No plano dos princípios, há uma divergência entre o PS e os partidos à sua esquerda. No entanto, e apesar da posição socialista implicar o respeito pelas políticas europeias, essa divergência não é fundamental. Não tem a importância suficiente para impedir um acordo e uma convergência de esforços das esquerdas. Há duas maneiras de ler a situação. Uma é a desejada pela direita: que esta divergência cause o colapso da geringonça. A outra é aquela que a direita teme e recalca: na prática e apesar de alguma retórica, BE e PCP aceitaram as regras do jogo e os princípios de equilíbrio orçamental e de combate ao défice público.

Dois anos de governação e três orçamentos parecem provas empíricas suficientes para suportar esta última afirmação. Por que razão a esquerda – que a direita, em desespero de causa, não se cansa de chamar radical – aceitou as regras do jogo? A coisa explica-se em poucas palavras: a Grécia e a governação Syriza. Quem quer copiar, seja onde for no mundo ocidental, as peripécias dos primeiros tempos do Syriza? Quem quer sofrer a humilhação que este sofreu? Os partidos políticos também aprendem.

O resultado de tudo isto não deixa de ser caricato. A grande clivagem política que animou o debate público, nos últimos dois anos, sobre a governação do país era pura e simplesmente inexistente. De uma maneira ou de outra, uns através dos princípios e outros através das práticas têm estado de acordo. Estas encenações com as suas liturgias, contudo, não servem apenas para satisfazer as clientelas ideológicas dos partidos. Servem também para esconder a sua falta de ideias sobre o que fazer do país. Na verdade, uma comédia. E é aqui que está o problema.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Micropoemas - Mármore 2


2. Pedras

Pedras,
fantasmas no fundo da serra.

Jazem mortas,
frias para quem as espera.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Um tronco cortado

Jean Dieuzaide, Vacances dans ma maison, cytologie, 1975

Olhamos para o tronco cortado e, no lugar de vermos o trabalho da morte, descobrimos o fascínio de uma geometria que nos faz imaginar símbolos que remetem para mundos desconhecidos ou sinais de um segredo que, sem sabermos porquê, sentimos que queremos desvendar. A morte na figura do animal, com a putrefacção da carne e do sangue, causa-nos nojo e horror. A morte no mundo vegetal acorda em nós sonhos e desejos que nos conduzem ao louvor da vida.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

A eleição de Centeno

Alfonso Parra Domínguez - Realidad dialéctica (1977-78)

Nota-se, em certos sectores da direita, mais activos nas redes sociais, um certo ressentimento com a eleição de Mário Centeno. Esse ressentimento manifesta-se, por vezes, de forma enviesada. Anunciam que o BE e o PCP tiveram de engolir mais um grande sapo. Contudo, isto não passa de um equívoco. Quando esses partidos estabeleceram os acordos de governo com o PS, imaginavam que este se tinha transformado num partido revolucionário anti-europeu, um partido que estaria disposto a emular os primeiros tempos do Syriza na Grécia? É evidente que tanto PCP e BE sabiam bem, muito bem, que tipo de partido era o PS. Sabiam também que este, no governo, não desafiaria o essencial da ortodoxia que rege o euro. BE e PCP não foram ao engano. Só para a direita foi uma surpresa o caminho que o país seguiu com a actual solução política.

Dirá essa mesma direita, desesperada por BE e PCP não derrubarem o governo para que ela volte ao poder, que isso contraria aquilo que ambos os partidos defendem. Talvez. No entanto, desconfio que tanto os eleitores do BE como os do PCP estão muito longe de quererem um novo resgate ou uma aventura que conduza ao enfrentamento com a União Europeia e à saída do Euro. Mesmo para comunistas e bloquistas a saída do Euro poderia ser devastadora para os seus partidos e, portanto, não estão dispostos a criar um problema em que se corre o risco de todos perderem, talvez eles mais que todos os outros. Também BE e PCP sabem, e o PCP sabe-o há muito, que a política é a arte do possível e percebem que há que conformar os princípios aos interesses dos seus eleitorados. Coisa que todos fazem. A realidade é o que é.

domingo, 3 de dezembro de 2017

Ensaios sobre a luz (16)

Andre de Dienes - Paris, 1936

O silêncio nascido da luz abre-se como um vendaval a rodopiar na noite que despiu as árvores para as revestir com a gélida glória das névoas de Dezembro.

sábado, 2 de dezembro de 2017

Gravitas

A minha crónica em A Barca.

Os antigos romanos possuíam quatro virtudes que estimavam acima de todas as outras. A pietas (piedade), a dignitas (dignidade), a iustitia (justiça) e a gravitas (gravidade). A tradução portuguesa de gravitas por gravidade não consegue reter a riqueza e densidade semântica do vocábulo latino. Literalmente, gravitas significa peso. Este peso, todavia, não é um peso físico mas moral. O peso que alguém ostenta devido à profundidade da personalidade, à seriedade, à responsabilidade e ao fundo compromisso com o dever. A gravitas foi vista como o pilar do gentleman inglês nas épocas Vitoriana e Eduardina. Até ainda bem dentro da segunda metade do século XX, um político que se prezasse ostentava a gravitas como forma de legitimar a sua presença no poder.

Sem se perceber muito bem porquê, talvez devido aos eflúvios do Maio de 68, a gravitas deixou de ser uma virtude que um homem político devesse ostentar. Talvez as câmaras da televisão, depois da grande revolução dos costumes, convivam mal com personagens graves, profundas e sérias. Elas precisam de outro tipo de actor político para animar o show business. Ora a decadência da gravitas não representa apenas a substituição de políticos com peso na sociedade por políticos cuja característica seja a leveza. A diluição da gravitas arrastou com ela o desaparecimento dos atributos que a compunham. Não apenas desapareceram as personalidades profundas, como desapareceram o culto da seriedade, da responsabilidade e o compromisso com o dever. Não vale a pena dar exemplos tanto em Portugal como por essa Europa fora. Talvez com a excepção da senhora Merkel, o mundo político é risível.

Em tudo isto há um sintoma de uma doença profunda que atinge as nossas democracias. Essa doença, porém, não tem a sua origem nas elites políticas mas nos cidadãos e nas comunidades. Estas, com o desenvolvimento da democracia e do bem-estar, tornaram-se complacentes com as elites dirigentes. São os eleitores que permitiram, primeiro, e exigiram, depois, que a gravitas desaparecesse da vida política. São elas que escolhem políticos risíveis, que veneram gente irresponsável. São elas que desligaram, nas suas concepções de vida e de comunidade, a relação entre dever e política. Assim como os monarcas absolutos, no Antigo Regime, se libertaram da tutela do papado, também os políticos actuais estão a libertar-se da tutela dos cidadãos. Estes são agora cúmplices da leveza com que as elites governativas tratam do bem público. Ora, contrariamente ao que se possa pensar, a democracia não é um regime irrevogável. Um dia poderá cair por falta de gravitas.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Micropoemas - Mármore 1

Imagem daqui

1. Branca cal

Branca cal
tisnada de cinza e sangue.

Rumores de outono e vida exangue.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)