A minha crónica no Jornal Torrejano.
Cheguei àquela idade em que os versos, de David
Mourão-Ferreira, “Há-de vir um Natal e será o primeiro / em que se veja à mesa
o meu lugar vazio” começam não só a fazer sentido, demasiado sentido, como
crescem espectrais sobre mim. Há muitas pessoas que não cultivam o Natal ou,
mesmo, que o desprezam. Não me incluo nesse grupo. O meu culto do Natal foi-me trazido
por um não crente, o meu pai. E nunca passou. Nesse culto, eduquei os meus
filhos, e espero que eles eduquem os meus netos. Há uma coisa, porém, que se
alterou radicalmente. Antigamente, o Natal era marcado pelas presenças. Agora,
pelas ausências. E com o passar vertiginoso dos Natais, o meu lugar vazio à
mesa está cada vez mais próximo.
Ora, no Natal, o doloroso não é o sentimento desse dia em
que não estaremos já presentes, nem o dia em que não haverá ninguém na terra
que de nós se recorde. Se olho para esse facto póstumo, nada nele me comove a
não ser que outros, devido à minha ausência, se tornarão, para mim, ausentes.
Doloroso não é perdermo-nos a nós, mas é perdermo-nos daqueles que mais amamos.
O Natal surge assim, na sua plenitude, como uma celebração da presença. Que
isso tenha sido sublinhado por um mito, onde se narra que nascido do seio
virginal de uma mulher o filho de Deus se tornou presente no mundo, é
irrelevante. Podemos dizer que o filho de Deus veio ao mundo para que nós,
pobres mortais, possamos celebrar a vida e a precariedade da presença dos que
aqui estão.
Quando na mesa de Natal começa a haver ausências, percebemos
que há alguma coisa errada na exuberância que tomou conta da quadra festiva. O
excesso de luzes pelas ruas, o turbilhão comercial que sobre nós desaba, a
necessidade de presentear, no excesso que as nossas sociedades exigem, os
próximos, tudo isso surge como um véu para ocultar a realidade. E a realidade é
a da fugacidade da nossa presença sobre a terra, a fugacidade da presença dos
que amamos.
Este Natal mundano e mercantil, ah o velho fetiche da
mercadoria, aquele que nos cabe viver no tempo presente, é não apenas um
adversário poderoso desse outro Natal, mas um inimigo terrível e sem
complacência. O Natal do mito fala-nos da presença para sublinhar que mesmos os
que deixaram o seu lugar vazio ainda fazem parte de nós e da pequena comunidade
que se reúne à mesa. O Natal da realidade de hoje é um exercício falso de
alegria cuja finalidade é esquecermos o que nunca deveremos esquecer. Sim, eu
sei: “Há-de vir um Natal e será o primeiro / em que não viva já ninguém meu
conhecido”.
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