domingo, 30 de setembro de 2018

Sonhos numa noite de Verão 4

Francis Wu, Blind Love

A cegueira trazida pelo amor não é um acidente mas a possibilidade da sua existência. Todo o amor traz consigo um imperativo de perfeição e encontra um objecto vulgar. A cegueira é a teia onde perfeição e vulgaridade se casam até que uma qualquer morte as separe.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

No Limiar da Porta 11. Na rosa do tempo

Henri Edmond Delacroix Cross, Arbres au bord de la mer, 1906-7

11. Na rosa do tempo

Na rosa do tempo,
silêncios de pedra
e ondas de luz.
Uma casa de areia.

Na rosa do tempo,
o punho cingido
ao remo do passado,
ao leme do provir.

1978

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

O papel dos cidadãos

A minha crónica no Jornal Torrejano.

No início do ano lectivo, costumo explicar aos meus alunos de Ciência Política que a política é o lugar do mal. No seguimento da lição de Thomas Hobbes, tento mostrar-lhes que a política existe porque nós não somos moralmente irrepreensíveis e, movidos por interesses egoístas, fazemos mal uns aos outros. Sublinho, também, que a forma como o poder limita e castiga o mal é também ela uma figura do mal. O poder reprime o mal através do mal, a chamada violência legítima. Por fim, saliento que a política, vista como exercício do poder, contém em si uma possibilidade de mal ainda mais terrível que as anteriores. Trata-se da hipótese daqueles que governam o fazerem em proveito próprio, enriquecendo ilicitamente, promovendo os seus amigos, perseguindo os opositores e oprimindo a população em geral.

Refiro-lhes, depois, que apesar da política estar intrinsecamente ligada à existência do mal, o seu exercício é fundamental e nobre. Evitar que o mal se propague, destrua a paz pública e desarticule a comunidade, mesmo que isso seja feito através da violência legítima, é uma tarefa digna e que merece grande louvor. Por fim, chamo a atenção para a aparente contradição que cada um de nós, cidadãos, exibe perante o poder político. Por um lado, queremos que ele seja forte e, por outro, que seja fraco. Queremos que tenha força suficiente para defender a nossa segurança e os nossos direitos, mas, ao mesmo tempo, queremos que não tenha força para nos oprimir ou para usar o poder em proveito de quem o ocupa.

Aquilo que gosto de sublinhar é que não podemos, em democracia, olhar a política sem compreender o papel dos cidadãos na limitação do mal. A estes não cabe apenas respeitar a lei ou participar na vida política como actores políticos. Enquanto cidadãos, têm o dever de olhar para a política de forma a limitar o abuso do poder, restringir as possibilidades dos agentes políticos praticarem o mal ilegítimo. Quanto menos conscientes forem os cidadãos, mais facilmente quem ocupa o poder pode abusar. Quanto mais conscientes os cidadãos, maiores são os limites que impõem a quem os governa. E este é um dos problema da democracia portuguesa. A maioria dos cidadãos ou não se interessa pela política ou é fanática, transformando a política numa deplorável competição futebolística. Enquanto assim for, a nossa democracia será frágil, os governantes pouco respeitarão as populações e o abuso do poder será uma possibilidade real, a que dificilmente se porá travão.

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Ensaio sobre a luz (39)

Leni Riefenstahl, Artemis and Endymion, 1936

O grande mistério da luz não reside na sua luminosidade. O grande mistério está em ela conter não apenas a indecisão da sombra mas também as trevas mais densas e inescrutáveis.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Sonhos numa noite de Verão 3

Antonio Tápies, Doblada, 1964

Por vezes, quando se sonha, encontram-se sinais presos na teia do sonho. São mensagens incompreensíveis que o acaso inscreve na superfície do mundo, pequenas armadilhas que nos levam a crer que há mistérios e sentidos ocultos ali mesmo onde, por acidente, o acaso prenuncia o caos.

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Ivan Chmeliov, O Sol dos Mortos


O Sol dos Mortos, de Ivan Chmeliov, foi escrito em 1923, quando o autor se encontrava já exilado em Paris. A obra é uma das mais importantes na tematização da revolução soviética, a partir da experiência do terror vermelho e da grande fome que emergiu na Crimeia, em 1921, devido à seca de Verão e às pragas de gafanhotos, e que se prolongou até 1923. Lê-la, porém, como um mero documento de propaganda anticomunista é cometer uma injustiça tanto do ponto de vista estético como do ponto de vista filosófico. Estamos perante uma obra de arte e não de um panfleto ideológico.

É no capítulo “Pão com Sangue”, um dos últimos, que encontramos a chave que nos permite compreender aquilo o que é visado no romance. Perante o desespero de alguém, o narrador escreve:

Não o conhecem, não o viram – senhores apreciadores das «irrupções» humanas, entusiastas dos «atrevimentos»! Tudo isso é o «lubrificador» da maravilhosa máquina do Futuro, é o detrito e a escória do majestoso forno de fundição, em que se molda este Futuro! (pp. 227/8)

Todo o sofrimento e todo o desespero – os quais, muitas vezes, parecem ser eternos, sem uma Páscoa que os redima – são o contraponto da verdadeira alucinação com o futuro que se apoderou do homem moderno, do qual o homem soviético é uma das figuras. O problema do futuro não reside no próprio futuro, mas na ideia de que o Kairós, o tempo oportuno para que cada coisa se realize, pode ser ultrapassado, por uma decisão da vontade humana, e que os homens, através da acção política, podem acelerar a história. O romance de Chmeliov focaliza-se no resultado desta aceleração da história levada a efeito pelos bolcheviques. Lubrificar a máquina do futuro é passar a medida daquilo que é humano. Os comunistas russos são apenas uma encarnação dos apreciadores das «irrupções» humanas e dos entusiastas dos «atrevimentos».

O romance é visto como uma nova descrição do Inferno, na esteira de Dante, ou como uma poética da morte e do luto. Talvez seja mais preciso, contudo, dizer que ele é uma fenomenologia da desagregação do vínculo humano, devido ao projecto de aceleração do tempo histórico. Essa fenomenologia é composta por múltiplas pequenas histórias onde se dá a ver a metamorfose por que passam as pessoas, a sua entrega ao desespero e, por fim, à morte. O vínculo, que agora soçobra, tinha vindo a ser construído ao longo da história, mas, com a revolução, o homem volta às relações brutais, ao tempo das cavernas, como se pode compreender na leitura do antepenúltimo capítulo “Milhares de anos atrás…” Acelerar a história significa então retroceder, voltar à arbitrariedade e à selvajaria pré-civilização.

Esta fenomenologia da destruição do vínculo humano – que um autor contra-revolucionário, Joseph de Maistre, já tinha detectado na revolução francesa – é uma forma de realização do niilismo. Estamos perante a destruição de todos os valores que, até àquele momento, tinham ordenado a vida humana. Esta destruição é obra do terror político, mas também da impotência da nova ordem para responder aos problemas colocados pela natureza através da penúria alimentar. Esta descrição fenomenológica da destruição do vínculo social é, por outro lado, uma espécie de epopeia, na qual os protagonistas, arrastados pela enxurrada da história, lutam, apesar de tudo, para manterem as qualidades humanas que, desde há muito, consideramos virtuosas. E é aqui que, apesar da situação terrível em que se vive, que o narrador, nas últimas linhas da obra, assinala o começo da primavera. Ela marca um tempo de ressurreição e de esperança, embora de uma esperança muito mitigada, como podemos ler no último parágrafo do romance:

A noite já caiu. O melro calou-se. Ao amanhecer, volta a cantar… Vamos ouvi-lo – pela última vez.

Ivan Chmeliov (1915). O Sol dos Mortos. Lisboa: Relógio d’Água. Tradução de Filipe Guerra e Nina Guerra.

domingo, 23 de setembro de 2018

No Limiar da Porta 10. Palavras - III

John James Audubon, Bluejays, sec. XIX


10. Palavras - III

Palavras, aves de azul
suspensas do céu.

Poisam nos ramos
e cantam.
Canção de cobalto
no trilo da tarde.

1978

sábado, 22 de setembro de 2018

A maior perfeição

Mark Shaw, Gitta Schilling, Dior Glamour, 1960

Não há maior perfeição que a do passado. Luminosa, imóvel, intocável. Suspende-se diante do olhar e oferece-nos uma réplica da eternidade. Fechamos os olhos e ao reabri-los o tempo já nos arrastou para o pântano do presente.

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Ensaio sobre a luz (38)

Z. Datuashvili, Graphics, 1977

São reinos inóspitos aqueles que o furor da luz revela. A brancura da neve, o agreste das encostas, a solidão de uma ave presa à premonição da sua morte.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

As exéquias da escola pública

Julio Romero de Torres, Mira que bonita era, 1895

Há pelo menos duas formas de encarar, do ponto de vista crítico, as constantes mudanças que o poder político, nas últimas décadas, tem introduzido no sistema educativo. Uma, ingénua, considera que, no fundo, essas mudanças constantes são fruto das idiossincrasias dos responsáveis políticos, dos seus caprichos, do desejo de deixar o nome ligado a uma mudança estrutural num sector fundamental para o futuro da comunidade. Mais que malevolência, esta perspectiva ingénua vê uma inconsistência, dos responsáveis políticos, fundada no desconhecimento da realidade do sistema e na vaidade pessoal.

Outra visão tenta compreender a coerência e os objectivos que são perseguidos através de uma girândola de mudanças que nunca sacia a fome de mais e mais alterações. Se olharmos para as sociedades contemporâneas vemos que o professorado vive ainda preso ao mundo da longa duração. Tornar-se professor no ensino público, pensa-se, é entrar numa carreira a longo prazo. Esta ideia de longo prazo é, contudo, inaceitável no âmbito da economia actual. Tudo nesta é visto no domínio do curto prazo, desde as funções até aos contratos, passando pelas relações pessoais. Quer-se pessoas flexíveis que possam sofrer sem protesto a mudança, a alteração rápida do que fazem, a perda de emprego e de sentido da sua vida.

É num livro já com 20 anos, The Corrosion of Character – The Personal Consequences of Work in the New Capitalism, que um sociólogo norte-americano, Richard Sennett, chama a atenção para os efeitos que este tipo de economia tem sobre o carácter das pessoas. Os traços fundamentais do carácter estão, desde sempre, ligados ao longo prazo. A lealdade, o compromisso e todas as características que fornecem um sentimento de persistência no tempo de si mesmo exigem relações e experiências de longa duração. Essas características eram desenvolvidas nas famílias, nas escolas e nas empresas, tendo, tanto a escola como a empresa, um papel fundamental na estabilização desses traços de carácter. Hoje em dia, as exigências do mercado de trabalho chocam de frente com a existência de um carácter forte e solidamente formado.

Como os Estados ocidentais ainda não conseguiram desestruturar completamente o Estado social e a escola pública, os agentes políticos entendem transformar uma carreira de longo prazo, o professorado, com o seu processo lento de maturação, numa carreira que resulta da soma de inumeráveis experiências, com exigências arbitrárias, muitas vezes antagónicas, obrigando os professores – que ainda não podem ser despedidos – a reformular de um ano para o outro a sua função e, consequentemente, a forma como desenvolvem o seu trabalho. Aquilo que parece um caos insensato não é outra coisa senão a transformação de uma carreira de longo prazo num conjunto de funções de curto prazo, que não acrescentam experiência nem sabedoria ao professor, não contribuindo para a consolidação de um carácter forte.

O objectivo de tornar a escola flexível – é este o desiderato actual do poder político através do eufemismo da flexibilidade curricular – é de criar ambientes do curto prazo naquilo que tradicionalmente era visto como sendo de longo prazo. Como se compreenderá, o que se pretende é corroer o carácter dos professores e, como consequência, o dos alunos. Os governos já não querem escolas que fortaleçam os compromissos, que desenvolvam as lealdades, que fomentem os traços que persistirão ao longo de décadas. A volubilidade organizacional e curricular das escolas é o modelo que os indivíduos – professores e alunos – deverão adquirir e ostentar. Volúveis, centrados no curto prazo, receptivos aos caprichos e ao arbítrio dos que ordenam o mundo. Fundamentalmente, pouco senhores de si. O que se assiste em Portugal, como noutros países, é ao fim da educação e a sua substituição pela formatação, em workshops flexíveis,  de personalidades sem carácter, sem lealdades, sem compromissos, sem sentido de si mesmas.

A escola pública, aos olhos das elites políticas, é um anacronismo, uma relíquia de um mundo que acabou. Como ainda não é possível um amplo consenso para acabar com ela, os partidos que ocupam o governo empenham-se em desestruturá-la, corroê-la, falando sempre na sua defesa e na educação para todos. Aquilo que está a acontecer, com mais uma reforma drástica do sistema, não é uma tentativa de reanimação de uma escola pública moribunda. Esta é já um cadáver e aquilo que se desenrola sob os nossos olhos é as exéquias, que serão dolorosas e prolongadas, mas não deixarão de ser exéquias.

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Sonhos numa noite de Verão 2

Arnulf Rainer, Blu nero, 1957-59

Como a vida também um novelo se desenrola puxando por um fio. E enquanto se puxa, a trama de memórias, segredos, desejos, traições desdobra-se, toma forma, cresce para dentro do dia, e logo se suspende dos dedos, até que a mão se cansa e tudo se perde na poeira da solidão.

terça-feira, 18 de setembro de 2018

No Limiar da Porta 9. Palavras - II

William Turner, Tempestad de nieve, barco de varpor frente a Harbour's Mouth, 1842

9. Palavras - II

Palavras, punhais de vidro
no comércio do corpo.

Crescem
em silêncio e cio.
Troam
em tempo de temporal.

1978

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

A exumação do ditador

Barcelona bombing, 1938

Segue-me, e deixa os mortos sepultar os seus mortos. Mateus 8:22

Por mais que pense no assunto, ainda não compreendi a utilidade política da exumação do ditador Francisco Franco. O que ganha o governo socialista com o acto e, mais do que isso, o que ganha Espanha em remexer num passado, o da Guerra Civil, que deixou profundos traumas de ambos os lados da barricada? É verdade que a guerra terminou há 79 anos (em 1939) e serão já poucos os espanhóis que terão memórias reais do conflito. No entanto, há muitos filhos e netos, de ambos os lados, que transportam uma memória cultural terrível.

Os espanhóis tiveram, até agora, a imensa sensatez de deixar o tempo passar, como se soubessem que só os anos podem sarar feridas muito dolorosas. Na Espanha democrática, os descendentes políticos dos derrotados da guerra civil já governaram diversas vezes, sem qualquer problema. Retirar Franco do Vale dos caídos, independentemente da pertinência das justificações, é atiçar uma fogueira que se deveria extinguir.

Se o general Juan Chicharro (presidente da Fundação Francisco Franco) tiver razão, se estivermos perante uma manobra para desviar a atenção dos reais problemas que Espanha enfrenta, estaremos perante uma conduta absolutamente oportunista. Se Pedro Sánchez acha que o deve fazer por motivos ideológicos, como uma forma de compensação dos derrotados, uma espécie de vingança ou de reescrita da história, o mais provável é que esteja a reabrir feridas que começavam a ficar esquecidas, o que é, no mínimo, irresponsável.

O que ressalta de tudo isto é a falta de densidade política do actual Presidente do governo Espanhol. Não é os vivos que o preocupam, mas o lugar do morto. Quer sepultar de novo o ditador, não compreendendo que ele mesmo é um morto, um daqueles a quem Mateus se referia quando punha na boca de Cristo a frase Segue-me, e deixa os mortos sepultar os seus mortos. Os nossos vizinhos já passaram por melhores dias. Uma crise sem fim à vista na Catalunha, uma tentativa de reacender os velhos ódios, que o talento de Adolfo Suárez e de Santiago Carrillo começaram a apagar há mais de 40 anos, e, à frente do governo, um morto preocupado com os mortos.

domingo, 16 de setembro de 2018

Sonhos numa noite de Verão 1

Zao Wou-Ki, 1-3-60

Também o coração, muitas vezes, borbulha de cansaço e no lugar da ordem deseja o caos. Exausto, sem destino, procura no informe o lugar em que a memória se dissolva e todas as figuras percam o contorno. Ali, sente-o então, estaria a liberdade. O vórtice, porém, expele-o de novo para rudeza das ruas, para a ordem onde reina a estrita necessidade.

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

O quarto milagre de Fátima


A minha crónica no Jornal Torrejano.


O começo do ano lectivo é marcado pela generalização de uma nova reforma do sistema educativo. A ideia que está na base de mais uma aventura na educação portuguesa prende-se com a convicção da actual equipa do Ministério da Educação de que o trabalho realizado pelo professorado está globalmente desadequado às exigências do século XXI. Esta é uma crença que depende da fé e não, obviamente e por impossibilidade factual, de nenhuma informação empírica sobre o que será o futuro. Portanto, a reforma faz-se, como sempre, em nome da ideologia. Para além da minha profunda desconfiança com a ideologia educativa que suporta as novas orientações, saliento dois problemas que me parecem fatais.

Em primeiro lugar, a sua preparação. Alterações destas num sistema educativo exigem anos de estudo, planeamento, experimentação, avaliação dos processos e dos seus resultados, antes que se chegue a uma generalização a todo o universo escolar. O que vai entrar em vigor este ano não seguiu nenhum desses trâmites. Não corresponde nem a um estudo nem a um planeamento sólido (é apenas um conjunto de crenças da equipa ministerial). Teve um ano de experimentação – o ano lectivo transacto – em escolas que se voluntariaram, mas, como qualquer pessoas perceberá, um ano não permite qualquer avaliação séria de processos e ainda menos de resultados. Vamos generalizar uma reforma educativa que ninguém sabe se aumenta ou diminui as aprendizagens dos alunos.

O segundo problema diz respeito à exequibilidade material dessa reforma. Em primeiro lugar, ela impõe alterações drásticas na fora de trabalhar com os alunos. Ora isso exige um período relativamente longo de preparação do professorado para que este possa compreender, experimentar e apropriar-se daquilo que o governo pretende. A generalidade dos professores – e não por culpa destes – está a zero (a definição do currículo aconteceu no final de Agosto), sem qualquer tipo de formação. Em segundo lugar, o que se pretende não se compagina com turmas grandes, como continuam a ser, nem com a forma como estão organizados os espaços e os tempos escolares. Só a reforma do número de alunos por turma e a dos espaços escolares implicaria um investimento incomportável para o país.

Em resumo, a educação vai entrar, por iniciativa do governo, num processo que não foi planeado e avaliado seriamente, para o qual os professores não foram preparados e que exige, para que não seja uma catástrofe, recursos humanos, financeiros e de equipamento que não existem nem existirão nos próximos tempos. Talvez os responsáveis políticos acreditem num quarto milagre de Fátima.

domingo, 9 de setembro de 2018

Ensaio sobre a luz (37)

Antonio Reynoso, Una Mujer, 1944

Escondida, atemorizada pela luz exterior, uma mulher declina: primeiro, uma sombra; depois, um traço negro na cinza da parede; por fim, a escuridão perdida no oceano das trevas.

sábado, 8 de setembro de 2018

No Limiar da Porta 8. Palavras - I

André Kertész, Les quais, 1961

8. Palavras - I

Palavras, sombra de giesta
na árvore por escrever.

Sílaba a sílaba, a seiva
desliza e levita
na leveza das letras
na flor que espreita.

1978

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Um equívoco no BE


Este artigo do Público estabelece uma certa ligação entre o chamado caso Robles e a queda nas intenções de voto do BE. Essa relação existe mas não como se poderá pensar. Não é por aquilo que Robles fez que o BE poderá perder eleitorado. O caso Robles teve o condão de chamar a atenção para a inconsistência política do partido dirigido por Catarina Martins. É possível que durante muito tempo uma certa petulância e algum espectáculo na praça pública disfarcem a inexistência de ideias substantivas sobre como governar o país ou a existência de más ideias sobre o assunto. Basta, porém, um pequeno e inesperado acontecimento (e o caso Robles não passa disso) para que as pessoas pressintam, mesmo que de forma obscura, a falta de substância e comecem a equacionar se, à esquerda, não haverá melhores opções de voto. Se o BE pensa que a eventual perda de eleitorado se deve a Ricardo Robles, arrisca-se a não compreender o principal e o principal está na pouca consistência de muitas das suas propostas políticas e no próprio modo de fazer política.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Ensaio sobre a luz (36)

Wolf Suschitzky, Prinsengracht, Amsterdam, 1934

A luz ergue-se das águas e das pedras e, sorrateira, deixa cair flocos de melancolia sobre os ramos despidos pelos vendavais da invernia. Nas ruas, solidões passeiam-se iluminadas pela sombra do silêncio.

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Knut Hamsun, Os Frutos da Terra


O sucesso internacional de Os Frutos da Terra (Markens Grøde, no original norueguês), publicado em 1917, é apontado como uma das causas decisivas para a atribuição a Knut Hamsun do Prémio Nobel da Literatura, em 1920. O romance é, na verdade, uma espécie de epopeia centrada na glorificação da vida na terra e do valor da persistência do indivíduo perante os problemas que a natureza e a sociedade lhe colocam. No centro da narrativa está um herói inesperado, o colonizador de terras pantanosas da Noruega, Isak de Sellanraa. Esta epopeia, apesar da poeticidade inerente ao apelo da Terra e ao carácter ferozmente individualista do herói, inscreve-se claramente no combate que Knut Hamsun – ele que foi um dos grandes modernistas na literatura – trava contra a modernidade, em nome de uma relação mais profunda do homem com a natureza.

Apesar da importância no desenrolar da intriga  de figuras femininas como Inger, a mulher de Isak, Oline, parente de Inger e personagem perigosa pelo seu oportunismo e tendência para a coscuvilhice, e de alguns vizinhos, a obra funda o seu sentido em quatro protagonistas masculinos. O herói Isak, os seus filhos varões Eleseus e Sivert e o meirinho da aldeia próxima da quinta de Isak, Geissler, o qual foi destituído do seu posto ainda numa fase inicial da narrativa. Isak representa o ideal do homem em contacto com a natureza. Duro, persistente, trabalhador, mas marcado pelo grande amor à terra e à família. É a personificação do ideal do homem do campo, aquele que está em contacto com o que há de mais essencial na vida. Um individualista que, apesar desse individualismo, se liga à grande tradição dos homens que transformam, pelo trabalho, a terra num jardim. Tudo nele o afasta da modernidade, enquanto projecto ideológico contaminado pelo liberalismo económico e pela visão burocrática e desencantada do mundo. Curiosamente, Isak, o inconsciente herói anti-moderno, não desdenha as conquistas tecnológicas trazidas pela modernidade.

O meirinho Geissler é a personagem mais misteriosa do romance. Ele próprio se designa como sendo nevoeiro. Vê o que é certo, mas não tem o poder para o realizar, segundo afirma. Tudo nele é nebuloso. É nebulosa a história que o leva a perder o lugar de meirinho, como é nebulosa a sua vida posterior e os poderes que possui, entre eles a sua capacidade económica e a de influenciar a justiça. Desde o início que se constituiu como uma espécie de anjo protector de Isak de Sellanraa e da sua família. Ajuda Isak a adquirir os terrenos da sua quinta ao Estado, ajuda Inger, devido a um caso de infanticídio, perante a justiça, proporciona alguns negócios lucrativos à família. Tudo isto em troca de nada. No último capítulo, Geissler pergunta a Sivert quantas quintas há naquela zona. Este responde que são dez. Geissler diz então: Dez propriedades? Bem estou satisfeito. O país precisa de 32 mil homens como o teu pai, digo-te eu, que o calculei. Geissler é o anjo da ideologia, uma espécie de deus ex machina que resolve certos problemas e dá uma orientação e um sentido: Escuta, Sivert: alegra-te! Têm (os de Sellenraa) tudo porque viver, tudo com que viver, tudo em que acreditar, nascem e dão à luz, e são essenciais à terra. Nem todos o são, mas vocês sim: essenciais à terra. Sustentam a vida. Persistem de geração em geração e sentem-se completos ao simplesmente procriar; quando morrem, os filhos tomam o vosso lugar. É este o significado da vida eterna.

Sivert é importante na narrativa não apenas porque escutou a anunciação do anjo da ideologia, mas porque é o continuador da saga iniciada por Isak. Sivert é o segundo filho varão mas será ele que tomará em mãos a tradição sagrada do homem da terra. Não é a sua acção no tempo da narrativa que lhe dá importância, mas o facto de ele assegurar que a epopeia terá seguimento e que a terra continuará a ser trabalhada por gente vista como essencial. Eleseus é o elemento contrastante da família. Esteve, ainda jovem, num grande centro, onde adquiriu hábitos adversos à vida na terra. É a presença do mundo moderno no seio da família de Sellenraa. Um burocrata pouco vigoroso, talvez pouco masculino, demasiado preocupado com a aparência e incapaz para o confronto com a natureza. Mais do que os empresários e engenheiros ligados a uma mina de cobre adjacente à quinta de Isak, Eleseus é o representante do mundo moderno e liberal. Inquieto, consegue com a ajuda fraternal de Sivert algum dinheiro e parte, com promessa de voltar, para a América, o lugar do mundo moderno por excelência. Nunca voltou.

O que significa o facto de Eleseus nunca ter voltado? Significa que dali, onde a modernidade se instala, não há retorno possível a um lugar onde a vida seja autêntica. A América não é meramente um país, mas o território da modernidade liberal, o lugar daqueles que vivem rapidamente – que são relâmpagos, como assinala Geissler – e que confundem os meios com os fins. O lugar da confusão. Não se fica a saber nada do destino de Eleseus, apenas que não voltou. Este silêncio, na economia da narrativa e da ideologia do autor, não é inocente. Seja o que for o que lhe tenha acontecido, o fracasso ou o triunfo, isso é irrelevante, porque a vida no mundo moderno é destituída de significação autêntica. A autenticidade reside no solo pátrio, na luta individual do herói com a natureza, até a domesticar. Este silêncio é revelador de uma opção ideológica do narrador e do próprio autor. Por muito que simpatizemos com Isak e Sivert, por muito atraente que seja a epopeia narrada, por genial que seja a técnica de Hamsun – o uso da corrente de consciência e do monólogo interior, por exemplo –, o livro não deixa de ser inquietante e ajuda a perceber muito bem a atracção do autor pelo nazismo germânico, onde encontramos muito desta ideologia. Seja como for, uma grande obra a ler com toda a atenção.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

A decência do possível e a loucura do impossível

Giorgio de Chirico, Melancholy of a Beautiful Day, 1913

A esquerda que se situa à esquerda da social-democracia tem dois exemplos, na vida política actual, que valem a pena serem meditados e compreendidos no seu significado profundo. Por um lado, o caso grego e, por outro, a Venezuela. Estes dois casos relacionam-se exemplarmente, embora de forma antagónica, com a frase atribuída a Otto von Bismarck que afirma ser a política a arte do possível. Como sublinha o filósofo alemão Peter Sloterdijk (Dans le même bateau), esta perspectiva relaciona-se com os actores políticos que são politicamente adultos, aqueles que agem segundo o possível, e aqueles que permaneceram crianças deslumbradas pelo impossível.

O Syriza de Alexis Tsipras, na Grécia, chegou ao poder com um programa de deslumbramento e alimentado pelo desejo do impossível. Preso ao sonho alimentado na oposição, conduziu o país à porta da saída do Euro e, nesse momento crucial, Tsipras deu provas de uma maturidade política impensável. Entre o duro caminho daquilo que era possível fazer e a utopia que, por milagre, transformaria – imaginava-se – impossíveis em realidade, despediu a utopia, os seus representantes, e decidiu trilhar o dificílimo caminho do possível. Por muito rude que seja o caminho dos gregos, Tsipras encontrou uma abertura para um futuro mais decente. Mais decente não significa paradisíaco, mas apenas que pode não ser infernal.

Inferno é aquilo em que a Venezuela se transformou, com a chamada revolução bolivarista de Chávez e Maduro. A utopia bolivarista estava ancorada, como todas as utopias políticas, num desejo do impossível, numa desadequação dos objectivos políticos com a realidade existente. O resultado é aquele que está à vista de toda a gente. Não é que a situação anterior ao chavismo fosse paradisíaca. Não era. Aliás a situação normal da América Latina varia entre o duro purgatório e o inferno, com breves e esporádicas passagens pelo limbo. No entanto, o desejo do impossível, essa infantilidade política que anima certos sectores de esquerda, transformou o duro purgatório num inferno insuportável.

Não se pense, por outro lado, que a questão da política do possível se relaciona apenas com os meios para chegar a um certo destino político, à sociedade socialista onde desapareceria a exploração do homem pelo homem, digamos assim. O problema está mesmo nesse fim. Não se trata de trazer à terra uma sociedade perfeita, onde a justiça reinaria de forma absoluta sobre o egoísmo humano, mas de, paulatinamente, promover sociedades menos injustas, tornando as pessoas mais fortes, mais capazes de gerirem a sua vida, de fazerem frente às armadilhas que o destino – seja a natureza ou a sociedade – lhes estende. Entre a loucura do impossível e a decência do possível, por certo que a generalidade das pessoas agradece que a dispensem de aventuras que acabam sempre na falta de liberdade e de comida na mesa.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

No Limiar da Porta 7. A angústia cintila

Giorgio de Chirico, A angústia da partida, 1913-14

7. A angústia cintila

A angústia cintila
na lava do levante.

Átrio de alegria.
Sangue de súbito
pelo fogo devorado.

1978

domingo, 2 de setembro de 2018

Valores fundamentais

A minha crónica em A Barca.

Há tempos, em conversa com um amigo de longa data, este dizia-me que estava a trabalhar num país muçulmano do Médio-Oriente. É outro mundo, sublinhava, e que a ele, fora de alguma embaixada ocidental, não lhe passava sequer pela cabeça beber uma cerveja. É uma questão de respeito pelas regras locais, referiu. Esta história pessoal vem a propósito de uma reportagem sobre a Dinamarca, lida há dias, onde um grupo de jovens mulheres muçulmanas se organizou para contestar a lei dinamarquesa que as proíbe de andarem em público de rosto completamente velado pelo niqab. O grupo argumenta que o uso do véu faz parte da sua liberdade. A um ocidental não lhe ocorreria exigir o respeito pela sua liberdade de beber uma bebida alcoólica num país islâmico.

O caso dinamarquês é interessante porque o que se proíbe é a ocultação do rosto no espaço público. Esta lei, por estranho que possa parecer a alguns ocidentais, está de acordo com a cultura iluminista que se desenvolve na Europa desde o século XVIII. No espaço público, os actores sociais estão submetidos ao princípio de publicidade, à transparência da sua presença, à impossibilidade de aí estarem resguardados pelo segredo. Estes valores, que nos constituem e dão sentido ao nosso modo de existência, deverão ser para nós objecto de uma protecção contínua, pois a sua destruição significará o fim desse mesmo modo de vida.

O que estamos a assistir, Europa fora, é a um teste sistemático desses valores por parte de algumas comunidades islâmicas. Lutam para que, pelo menos, se abra uma excepção para as suas práticas que contrariam os ordenamentos jurídicos ocidentais. Ora, o princípio de excepção é algo que os valores iluministas combatem também como uma perversão inaceitável. O problema que a Europa atravessa, em alguns países, parece ser a impotência de impor a lei a todos os que ali habitam, abrindo-se inaceitáveis excepções de facto.

As pessoas não devem poder andar de rosto velado na rua, nem podem existir casamentos combinados, nem pode ser permitido que crianças sejam forçadas a casar, nem se pode permitir que homens batam em mulheres, não porque isso sejam práticas de determinadas comunidades, mas porque isso contraria os valores desses países consagrados na lei. Contrariamente ao que pretendem alguns grupos islâmicos, o que está em causa não é a religião, mas a universalidade da lei. Se as jovens muçulmanas dinamarquesas podem, felizmente, protestar contra a lei, os europeus não podem pactuar com qualquer ataque a três valores fundamentais: o princípio de publicidade no espaço social, a universalidade da lei e a inaceitabilidade de qualquer excepção.

sábado, 1 de setembro de 2018

Descrições fenomenológicas 33. O canal (2)

Mark Rothko, N.º 15, 1957

Despidas pela invernia, as árvores bordejam o canal. A água desliza inquieta, banhada no silêncio da manhã. Um barco encosta-se à margem. Saem e entram passageiros, enquanto ele sobe e desce levado pela ténue ondulação. A luz fosca do sol de Inverno ilumina as ruas, toca o emaranhado dos ramos, desliza pelos troncos e dá um brilho esquivo ao chão, ainda molhado pelas chuvas da noite. Um carro, estacionado, parece querer inclinar-se para as águas, enquanto outro, vindo sabe-se lá de onde, passa sorrateiro, sem pressa, como se o tempo tivesse abrandado a sua corrida para o futuro. Um homem, de bicicleta, olha para a direita, espreita o carro, mede sem furor o poder do inimigo. Um outro, empurra a sua à mão, dá a viagem por terminada, procura um lugar onde a máquina possa descansar. No passeio, afastadas vinte metros, duas mulheres, vestidas de negro, caminham, olhos no chão, os ombros levemente curvados. Uma pára diante de uma janela e conversa com uma rapariga, enquanto a outra, a que vinha atrás, passa por ela e perde-se no fim da rua. Um sino ecoa ao longe, fende o silêncio, mas ninguém parece ouvi-lo. Os motores do barco começam a trabalhar e logo este se afasta, desliza sedicioso pelo canal. Uma criança aproxima-se da margem e aponta para a embarcação, depois olha para trás e chama pela mãe. Nas casas, há tabuletas penduradas. Anunciam as necessidades da vida. Uma padaria, uma mercearia, uma drogaria. O passado sobrevive na humidade da rua, enquanto o som de uma campainha assinala a presença de uma nova mulher, vinda daquele lugar de onde chegam os seres cuja origem é um mistério. A esteira aberta pelo barco dissolve-se e as águas do canal adormecem batidas pela solidão do sol. A manhã caminha devagar para o meio-dia.