sábado, 26 de dezembro de 2020

G. K. Chesterton, O Homem Que Era Quinta-Feira

 

Publicado em 1908, quinze anos antes da conversão de Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) ao catolicismo, O Homem Que era Quinta-Feira pode ser lido como um momento dessa caminhada que levará o autor ao seu destino, um tempo de interrogação sobre o mundo, o modo como os homens o interpretam e a própria arte. Uma pequena e desconcertante narrativa esconde uma complexidade tal que a obra dificilmente se pode classificar num dos géneros habituais do romance. Um thriller metafísico, uma novela policial, um romance surrealista, uma distopia? Será mais fácil dizer o que ele não é. Não é um romance realista ou naturalista, muito menos uma obra de um romantismo fora de estação. A partir daí, a sua classificação torna-se disputada e, muito provavelmente, inútil. É um exercício prodigioso de imaginação e de uso do paradoxo, uma discussão sobre arte, política, identidade e metafísica, caso esta seja entendida como uma preocupação com a distinção entre a realidade e a aparência. Mais do que tudo isso é a ficção de uma ficção. O título original – não os da generalidade das traduções, que omitem uma parte essencial – dá uma pista. The Man Who Was Thursday: A Nightmare. O carácter onírico da obra é fundamental para a sua compreensão, pois o desfecho é como um acordar, uma revelação da realidade que não será tão negra quanto o pesadelo se propunha sublinhar.

A narrativa começa num subúrbio de Londres, na era Eduardina, com uma bizarra discussão sobre a natureza da poesia e, por extensão, da arte em geral. Dois homens, Lucien Gregory e Gabriel Syme, divergem sobre o assunto. Essa divergência não é meramente estética, mas o resultado de uma visão do mundo e de personalidades distintas. O que está em jogo é a velha distinção mítica entre caos e ordem. Para Gregory a arte é a abolição de todas as convenções, a destruição da ordem e de todas as hierarquias e poderes do mundo. Para Syme a arte é beleza, ordem, organização. Para um, a obra de arte reside na revolta e toda a revolta, onde se incluem os ataques terroristas, é uma obra de arte. Para outro, a arte é a busca da harmonia, o contrário da revolta. Esta discussão sobre a natureza da obra de arte é o prelúdio para entrar no mundo obscuro da política. Lucien Gregory é um anarquista, daqueles que contestam qualquer tipo de poder, não pelo mal efectivo que possa fazer, mas por ser um poder e um princípio de ordem. Pelo contrário, Gabriel Syme é um adepto da ordem que se tornou polícia para combater a ameaça que o anarquismo representa. Estrategicamente, Syme diz não acreditar que um poeta seja um anarquista e que Gregory na verdade diz-se anarquista, mas não o é. Este decide então mostrar que o que diz ser corresponde ao que efectivamente é e convida o interlocutor para uma importante reunião de uma organização anarquista internacional, onde iria ser eleito um membro para o lugar vago do comité central dessa organização, cuja finalidade seria a de espalhar o terror e combater a ordem. Gregory sonha ser o vencedor da eleição.

A partir do momento em que a narrativa se centra na reunião a discussão sobre a arte desaparece e o papel de Lucien Gregory praticamente se apaga. Syme faz perante o auditório de militantes um discurso com um pendor anarquista muito mais convincente do que Gregory e acaba por ser ele, o polícia secreto disfarçado, que se torna membro do comité central, com o nome de Quinta-Feira. Todos os membros desse comité possuem como nome clandestino o de um dia da semana, sendo Domingo o chefe do grupo anarquista. Em Paris, a organização prepara-se para levar a cabo um atentado para matar o Czar da Rússia e o Presidente da República de França. Daqui em diante, o romance torna-se num jogo de equívocos e paradoxos, em que tudo o que parece uma coisa revela ser outra completamente diferente e, por norma, de sinal oposto. Syme descobre que, ao lutar contra os seus camaradas do comité central, está a lutar contra polícias infiltrados. Todo o comité central da organização anarquista é composto por polícias que foram infiltrados para combater o anarquismo, o terror e a desordem que ameaça os estados. Na verdade, as aparências escondem a verdadeira realidade. A única personagem que resiste a esse desvelamento é Domingo, o qual na verdade não é conhecido por nenhum dos outros membros e que aparente ter poderes terríveis, como se ele fosse uma simbolização do Deus irado do Antigo Testamento e do Deus amoroso do Novo Testamento. As identidades são todas falsas ou incompreensíveis. Apenas o infeliz poeta anarquista é aquilo que diz ser.

A natureza intrincada do romance e a lógica que paulatinamente vai deslizando para a alogicidade onírica conduzem a interpretações antagónicas da obra. Há quem nela veja uma metáfora do triunfo do bem sobre o mal, apesar do peso deste no mundo, o que seria uma leitura já cristã da realidade, há quem a veja como um romance precursor das obras de Kafka, do labirinto que estas desenham e por onde se perde, por falta do fio de Ariadne, a razão humana, e de onde não há qualquer saída optimista. Essas leituras, todavia, podem não ser incompatíveis. O anarquismo, por outro lado, surge como uma metáfora política para o fenómeno da desagregação mítica da ordem, da sua transformação em caos, mas ao mesmo tempo o facto de serem os próprios agentes da polícia que ocupam as cadeiras dirigentes da organização terrorista e da personagem de Domingo se aproximar de uma imagem de Deus, permite a leitura de que o caos nasce por dentro da ordem, segundo uma vontade que a razão não tem capacidade para compreender, mas que se acabará por estabelecer uma nova ordem, como se a realidade acordasse de um pesadelo. Seja qual for a leitura que se prefira, O Homem Que Era Quinta-Feira é um dos romances incontornáveis do século XX, o qual está cheio de grandes e incontornáveis romances.

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