quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Perfis 10. O pintor

Yousuf Karsh, Pablo Picasso, 1954
O pintor não pinta. Descansa a cabeça, encostando, com leveza, o rosto à mão. O que vê diante de si não é o que lá está, mas aquilo que ainda não veio à existência. O pintor pensa, mas não pensa como os outros homens. Os seus pensamentos são feitos de luz e cor, de linhas e figuras. Tudo isso se entrelaça mesmo por detrás dos olhos, num sítio guardado por muralhas inexpugnáveis. Se do olhar se soltam chispas, não é porque ele queira incendiar a casa e o mundo, mas porque um fogo arde dentro do seu corpo, e este é demasiado frágil para conter as labaredas. Então, o fogo expande-se para dentro de uma tela, ganha cor, deixa escapar raios de luz, sombreia em linha perfeitas, que logo se quebram, tornando-se um labirinto. Nesse momento, o coração do pintor é um labirinto de labaredas, de paisagens devastadas pelo ócio de nelas pensar. Não como os outros homens pensam, mas com pensamentos feitos de imagens em movimento. O pensamento do pintor é uma sessão de animatógrafo. Em turbilhão, de dentro dele, saem imagens que se projectam na tela, ganhando e perdendo contornos, fazendo e desfazendo mundos, criando retratos que logo se contorcem para que, na arbitrariedade das linhas, se descubra a senda que leva à verdade. O pintor guarda a verdade do mundo na ponta dos dedos com que pega nos pincéis para se tornar um médium entre o mundo, aquele que só ele descobre no fogo do sentimento, e os olhos daqueles cujos pensamentos não são feitos nem de luz, nem de cor, nem de linhas, nem de figuras. O pintor descansa a cabeça e descansa as mãos, pois são árduos os trabalhos que esperam a uma e a outras, assim que o gongo soar para que ele se dirija ao ringue e, diante da tela, defronte o adversário que se esconde dentro de si. 
 

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