quarta-feira, 24 de outubro de 2018

O desejo da barbárie


Vive-se, em Portugal, uma doce ilusão, a de que ainda não fomos tocados pelo vírus do populismo. É um facto que os principais agentes políticos têm evitado recorrer ao mais sombrio populismo político. No entanto, na sociedade desenha-se um desejo mal disfarçado de soluções populistas. O que caracteriza essa ânsia é a contestação de muitos dos progresso civilizacionais. Um caso sintomático foi o da fotografia publicada, após captura, dos três foragidos de um tribunal. O ministro Eduardo Cabrita reagiu, afirmando que aquele tipo de fotografias era inaceitável por parte da polícia de um Estado de direito. As reacções de sindicatos e organizações para-sindicais, assim como de muita gente nas redes sociais não se fez esperar, com ataques ao ministro, montagem de imagens falsas e todo o arsenal de indignações mais ou menos alarves.

O que Eduardo Cabrita – e também Marcelo Rebelo de Sousa – fez foi defender a vida civilizada e as regras segundo as quais esta se deve orientar. Regras essenciais da vida civilizada são as que desligam a Justiça da vingança ou as que não eliminam os direitos dos criminosos. Estas regras, cada vez que existe um crime mais dramático, são postas em causa por uma multidão ululante, que despreza a vida civilizada e o progresso moral que nos permitiu sair da barbárie. Na verdade, é através da Justiça que o populismo entra nas sociedades, dissemina-se e corrói os alicerces que tornam a vida digna de ser vivida. Mesmo em Portugal, um dos países mais seguros e com uma das taxas de criminalidade das mais baixas do mundo, a pulsão para a barbárie é mais forte do que se pensa.

O desejo da barbárie é alimentado de forma insidiosa por programas de televisão e artigos de jornal justicialistas, por telejornais que, no infausto modelo que é o seu, destroem uma visão racional e civilizada da justiça e da própria vida comunitária, vendo-as como um jogo de vinganças, um prelúdio à guerra de todos contra todos. A corrosão da civilidade e a degradação da vida em comunidade são vírus que vivem já entre nós. Estão apenas à espera de um meio ambiente mais propício para mostrarem as garras. Tudo isto deveria merecer uma profunda e redobrada atenção dos agentes políticos. Só um exercício político iniludivelmente virtuoso e uma preocupação com a eficácia e independência da justiça pode evitar que a virose se transforme numa doença mortal. O que me aflige, hoje em dia, não é sequer que os agentes políticos – do governo e da oposição – não percebam o que se está a desenvolver. O aflitivo é que eles contribuam, com palavras e actos, para propagar a doença.

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