Vive-se, em Portugal, uma doce ilusão, a de que ainda não
fomos tocados pelo vírus do populismo. É um facto que os principais agentes
políticos têm evitado recorrer ao mais sombrio populismo político. No entanto,
na sociedade desenha-se um desejo mal disfarçado de soluções populistas. O que
caracteriza essa ânsia é a contestação de muitos dos progresso civilizacionais.
Um caso sintomático foi o da fotografia publicada, após captura, dos três
foragidos de um tribunal. O ministro Eduardo Cabrita reagiu, afirmando que
aquele tipo de fotografias era inaceitável por parte da polícia de um Estado de
direito. As reacções de sindicatos e organizações para-sindicais, assim como de
muita gente nas redes sociais não se fez esperar, com ataques ao ministro,
montagem de imagens falsas e todo o arsenal de indignações mais ou menos
alarves.
O que Eduardo Cabrita – e também Marcelo Rebelo de Sousa –
fez foi defender a vida civilizada e as regras segundo as quais esta se deve orientar.
Regras essenciais da vida civilizada são as que desligam a Justiça da vingança
ou as que não eliminam os direitos dos criminosos. Estas regras, cada vez que existe
um crime mais dramático, são postas em causa por uma multidão ululante, que
despreza a vida civilizada e o progresso moral que nos permitiu sair da
barbárie. Na verdade, é através da Justiça que o populismo entra nas
sociedades, dissemina-se e corrói os alicerces que tornam a vida digna de ser
vivida. Mesmo em Portugal, um dos países mais seguros e com uma das taxas de
criminalidade das mais baixas do mundo, a pulsão para a barbárie é mais forte
do que se pensa.
O desejo da barbárie é alimentado de forma insidiosa por
programas de televisão e artigos de jornal justicialistas, por telejornais que,
no infausto modelo que é o seu, destroem uma visão racional e civilizada da
justiça e da própria vida comunitária, vendo-as como um jogo de vinganças, um
prelúdio à guerra de todos contra todos. A corrosão da civilidade e a
degradação da vida em comunidade são vírus que vivem já entre nós. Estão apenas
à espera de um meio ambiente mais propício para mostrarem as garras. Tudo isto
deveria merecer uma profunda e redobrada atenção dos agentes políticos. Só um
exercício político iniludivelmente virtuoso e uma preocupação com a eficácia e
independência da justiça pode evitar que a virose se transforme numa doença
mortal. O que me aflige, hoje em dia, não é sequer que os agentes políticos –
do governo e da oposição – não percebam o que se está a desenvolver. O aflitivo
é que eles contribuam, com palavras e actos, para propagar a doença.
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