O romance Ansiedade
(1940) é o segundo da Crónica da Vida
Lisboeta, um ciclo de composto por seis romances que Joaquim Paço d’Arcos
dedica à vida na capital portuguesa, a uma certa Lisboa habitada pela alta burguesia
em ascensão e pelo que resta de uma aristocracia decadente, nostálgica de uma
monarquia que nem a mão poderosa de um ditador, talvez monárquico, teve
condições para a trazer à vida. O título é já revelador da orientação que o
autor imprimiu à obra. Um estado de perturbação inscreve-se na acção das
personagens pela desadequação entre o mundo ideal, que alimenta as ilusões dos seres
humanos, e a realidade crua.
A intriga tem dois focos que se cruzam na personagem de
António Coutinho, Toy. Um de natureza política e outro de natureza sentimental.
Ao longe, digamos assim, percebe-se uma época de grande agitação política a
nível internacional. A guerra civil espanhola e a ascensão do nazismo e a
subsequente deriva que levará à segunda grande guerra. No entanto, todos estes
sobressaltos tocam apenas ao de leve a existência que as camadas sociais mais
altas levam em Lisboa. A vida compõe-se de negócios, alpinismo social e traições
amorosas.
O detonador da narrativa é o retorno à metrópole, para usar
uma expressão da época, do jovem aristocrata Toy e de um velho republicano,
Ildefonso Barradas, um homem do reviralho, cuja coroa de glória fora o seu lugar
de vereador na câmara de Lisboa, antes do golpe de 28 de Maio. Apesar das
diferenças sociais e de geração, o africanismo uniu-os de algum modo. Na
verdade, eram dois exilados. Um, o republicano, exilado político, o outro, o aristocrata,
um exilado sentimental. O pai mandara-o para África como forma de o afastar da
sua prima Pequenu, com a qual mantinha um namoro equívoco e intenso.
Quando chegam a Lisboa, nem a República velha tinha sido
restaurada, para desgosto de Barradas, nem a Pequenu se tinha mantido fiel ao
primeiro amor, tendo casado com Carlos Lobo de Castro. Contudo, Barradas e Toy
mantiveram-se fiéis às suas idealizações juvenis. O primeiro, animado pelo
futuro genro, um engenheiro comunista, e apesar de discordar das ideias
redentoras deste, compromete-se na luta contra o regime. Toy, embora não
compreenda o casamento de Pequenu, continua a idealizá-la, não sabendo sequer
que ela se tornara, com a repugnante e interessada cumplicidade do marido, amante
de um dos principais banqueiros do país.
Barradas tenta captar Toy para as suas operações políticas,
mas este, marcado por um idealismo de sinal contrário, decide-se, movido pela
casta a que pertence, pela fidelidade ao regime e torna-se miliciano, uma
figuração dos legionários, uma das organizações para-fascistas do regime de
Salazar. Isso, todavia, não afastou os dois homens. Respeitavam-se apesar das
diferenças. A ansiedade, que vive da iminência do terrível e que o anuncia,
encontra o seu caminho perturbante não apenas na confissão de Pequenu a Toy,
onde este é obrigado a tomar conhecimento da conduta da mulher idealizada, como
no confronto político-militar entre uma coligação de oposicionistas, onde se
encontra Barradas, e as forças leais ao regime, nas quais se integra Toy. O
acaso do conflito militar leva a que, sem o saber embora o descubra logo a
seguir, Ildefonso Barradas abata Toy.
Há, no romance de Paço d’Arcos, uma crítica implacável dos
idealismos. Sejam estes amorosos, sejam políticos. O mundo – neste caso Lisboa
dos finais dos anos 30 do século passado – não é um lugar para os puros. A
pureza do amor de Toy naufraga na realidade da vida amorosa da mulher que ele
idealizou e que, pelas circunstâncias da vida, não corresponde ao arquétipo
nascido na adolescência. O idealismo político de Barradas é confrontado pela
derrota da insurreição e no peso de ter morto, em combate, o seu jovem amigo. O
próprio idealismo político de Toy é compensado com a morte. Nessa Lisboa, sob o
olhar atento do ditador (nunca mencionado), a vida é feita de negócios obscuros,
do esbracejar dos videirinhos e de traições quotidianas. A razão de Estado (do
poder dominante) é mais forte que o romantismo político. A razão do dinheiro e
do poder social derruba sentimentos e compra sexo e consciências. Ali, naquela
Lisboa, não há lugar para ilusões.
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