Ana Paula, Perfil duma
Lisboeta é o primeiro romance de um ciclo de seis intitulado Crónica da Vida Lisboeta, da autoria de
Joaquim Paço d’Arcos. Publicado em 1938, inscreve-se nos primeiros anos da
ditadura do Estado Novo e traça um retrato da vida das classes altas lisboetas.
Mostra uma aristocracia em declínio e que, apesar do seu amor monárquico, não
perde tempo em procurar um lugar no regime republicano que lhe permita
conduzir a vida com a antiga abastança. A obra mostra também a natureza de uma alta
burguesia financeira, videirinha, oportunista e implacável.
Este primeiro romance do ciclo tem como tema
fundamental a honra, esse valor aristocrático por excelência. Não se trata,
porém, da honra do homem aristocrata, mas da honra entendida como persistência da mulher no
caminho da virtude e da fidelidade, mesmo quando as circunstâncias, as difíceis
provações e as inclinações do coração tornam propício o adultério. Não deixa de ser sintomático que, no dealbar do Estado Novo, a última defensora da
virtude aristocrática seja uma mulher e que essa virtude tenha perdido todo o
sentido político, reduzindo-se a uma mera questão de alcova, a resistência à
tentação da infidelidade sexual.
O drama centra-se no casamento de Ana Paula, filha do Conde
da Balsa, uma velhíssima família da nobreza nacional, com um oficial arrivista, herói do Estado Novo, boémio, mulherengo e
viciado no jogo. As virtudes másculas de Jorge de Melo seduzem Ana Paula. O
casamento para ele é uma porta para um mundo onde nunca poderia entrar e para
ela o caminho para uma vida infernal. A boémia, as amantes e, principalmente, o
jogo levam a que o oficial, no âmbito de uns negócios militares, faça, para alimentar a vida viciosa, uns
desfalques. É detido e julgado, mas salvo por um amigo, advogado Eduardo Reis,
o qual através duma retórica exímia consegue um triunfo em pleno tribunal, ilibando o amigo.
O problema é que, durante a detenção do militar e no decurso
do processo judicial, o advogado e Ana Paula apaixonam-se. A narrativa mostra-nos
então a luta destes dois protagonistas para resistirem à tentação. O advogado, à
tentação de abandonar Jorge de Melo, o amigo, à sua sorte, a um destino odioso. Ana Paula, à tentação
de se entregar ao advogado. Se a resistência à tentação em Eduardo Reis se deve
acima de tudo à consideração de si mesmo e ao medo de surgir com uma imagem
degradada aos olhos do objecto do seu amor, em Ana Paula assenta nas convicções
religiosas e no sentido da honorabilidade da família e da casta.
Neste triângulo não consumado, Paço d’Arcos acaba por
projectar, não sem ironia e algum distanciamento crítico, uma imagem
estereotipada da relação entre as classes sociais e a moral. Jorge de Melo,
oriundo de classes baixas, é um modelo de leviandade e corrupção moral, incapaz de contenção e de sentido da sua medida. Eduardo
Reis simboliza uma moral individualista e burguesa escudada numa forte cultura
jurídica e numa tolerância tácita que lhe permite manter-se, com glória, no âmbito dos seus interesses. Ana Paula é a imagem dos velhos valores aristocráticos em rápido processo de dissolução.
Apesar da banalidade da história, contada na terceira pessoa
por um narrador omnisciente, o leitor pode fazer uma visita – quase como se o
romance fosse um filme – a uma época de Lisboa e do país e aos valores que
então guiavam os estratos sociais retratados. O facto do autor se mover nesses
meios contribui para que o leitor suspenda a descrença e contemple um mundo
feito de interesses obscuros, forças que se movimentam em silêncio, corrupção
económica e moral, homens poderosos com as suas garçonnières, raparigas pobres mantidas por senhores ricos. Um mundo onde a influência da religião é, apesar do peso da Igreja no país ser enorme, praticamente
nula e onde a virtude moral é compensada com a infelicidade e a vergonha.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.