Herztier
(1996) é um romance da escritora alemã, nascida na Roménia, Herta Müller,
prémio Nobel (2009). Literalmente, o título original significa coração animal.
Em França, o título escolhido foi Animal du Coeur, em Espanha, La
bestia del corazón, e em inglês, The Land of Green Plums. A tradução
portuguesa (1999) seguiu a inglesa. O romance começa e acaba com as mesmas
palavras: Emudecemos e tornamo-nos desagradáveis, disse Edgar, falamos e
tornamo-nos ridículos. Esta estratégia confere à narrativa uma espécie de
ciclicidade, de eterno retorno do mesmo, mas também o sentimento de um círculo
fechado. Este cerramento não é um mero exercício de estilo, mas o modo como
autora cria no leitor a sensação de opressão existente na Roménia sob a
ditadura comunista. Ciclos contínuos de expectativas (a da sempre adiada morte
do ditador), mais do que esperanças, e de desesperos, um ambiente fechado,
controlado, de onde qualquer liberdade individual fora banida.
Um outro
elemento estrutural liga-se ao anonimato da narradora num romance
autodiegético. Ela é a principal personagem, mas nunca se sabe o seu nome,
enquanto o das outras personagens – Lola, Edgar, Georg, Kurt, Tereza e o
capitão Pjele – são conhecidos. Várias recensões da obra vêem nela um romance
autobiográfico, devido à existência de traços biográficos comuns à autora e à narradora.
O anonimato desta seria uma ocultação do nome da autora. Existe, todavia, uma
outra possibilidade de leitura mais interessante. Essa ausência de nome da
personagem principal, esse espaço em branco na trama narrativa, permite que ele
fique em aberto e possa ser preenchido por qualquer um. Ao espaço fechado da
narrativa corresponde o espaço aberto do sujeito da acção. Num mundo opressivo
e fechado, num regime totalitário, o lugar da vítima está sempre em aberto,
para que qualquer um, se for esse o desejo do poder, o ocupe. O anonimato da
narradora significa que aquele lugar não é pessoal e intransmissível. Pelo
contrário.
Contrariamente
ao que se possa pensar, não se está perante uma obra de matiz ideológico nem
perante um romance de tese. Dentro do espaço fechado da narrativa, o que Herta
Müller faz é dar a ver o impacto do universo político sobre as pessoas, não
apenas nas suas condições sociais, mas, fundamentalmente, nas suas condições
psicológicas ou, melhor, na sua ipseidade, isto é, na forma como se constituem
enquanto pessoas. Muitas vezes, talvez demasiadas vezes, pessoas que vivem sob
regimes totalitários ou autoritários não percebem que a opressão se abate de
forma muito insidiosa sobre a construção da personalidade de cada um, mesmo
sobre a dos adeptos e sicários desses regimes. Não são apenas os corpos que são
presos, torturados, violentados, ou o discurso que é censurado. O que qualquer
regime opressivo faz é manietar os indivíduos não lhes permitindo desenvolver,
muitas vezes sem que eles próprios percebam, as suas possibilidades mais
fundamentais. Neste tipo de regimes, a política não é apenas a política, mas
uma forma de rasurar a humanidade e de impedir a pessoa de se descobrir a si
mesma. É uma prática sistemática de amputações, mesmo que os corpos pareçam
ilesos.
Apesar de a
narrativa ser fechada, ela parece pouco estruturada. Não há divisão por
capítulos. O texto corre de princípio até ao fim, composto por pequenos
parágrafos, quase como se fossem versos que não coubessem numa linha e tivessem
de se expandir por várias. Esta sensação é intensificada pela própria natureza
imagética da escrita. Por exemplo: Eu puxo o fio, escreve Lola, a coroa de
espinhos vira-se para baixo. A mãe canta. Deus tende piedade de nós, e eu puxo
para abrir o polegar da luva. Há uma clara preocupação de dar a ver os
pequenos gestos, os acontecimentos insignificantes, tudo aquilo que constitui a
vida. Há uma atenção hiperbólica ao real, como se essa atenção fosse o outro
lado da opressão e, ao mesmo tempo, uma forma de fuga e afastamento do universo
concentracionário.
O romance gira
em torno de quatro amigos todos com a mesma origem. A narrador sem nome, Edgar,
Kurt e Georg. São todos romenos de origem alemã e todos eles tinham pais que
fizeram parte das SS nazis, tal como o pai da própria autora. Essa comunidade
alemã presente na Roménia era o resultado de acontecimentos políticos, passados
no século XIX, que envolveram o Império Austro-Húngaro e o Império Otomano. No
romance, a opressão acentua também o conflito de nacionalidades, o choque de
culturas, a exclusão dos romenos de origem alemã. O sonho de todos os quatro
amigos, depois de terem concluído os cursos superiores, de terem entrado no
mundo do trabalho e de dele terem sido excluídos por desagradarem ao regime,
era emigrar para a Alemanha. A vida na Roménia tornara-se insuportável, embora eles
não tivessem qualquer actividade política digna desse nome. Limitavam-se a
cantar canções alemãs, ler livros que não faziam parte do cânone permitido pelo
regime ou, no caso de um, de tirar fotografias, que ninguém via, aos autocarros
que transportavam presos para os trabalhos de construção das obras do regime. É
a insignificância destes gestos e as retaliações que eles suscitam que mostra a
natureza totalitária da sociedade romena daqueles dias. Não havia aspecto da
vida que não fosse vigiado.
Há, no romance,
duas alegorias poderosas, ambas ligadas à morte. Os comedores de ameixas verdes
e os tragadores de sangue. Na comunidade camponesa alemã, corria o mito de que
se as pessoas comessem ameixas verdes morreriam. Ora, os quatro amigos ficaram
espantados quando descobriram na cidade que os polícias, os defensores da ordem
do regime, enchiam os bolsos de ameixas verdes e as comiam. Era como se
comessem a própria morte e a trouxessem com eles, tornando-os agentes mortais.
O poder heurístico da alegoria, porém, não fica por aqui. Uma ameixa verde que
é comida não tem o tempo suficiente para desenvolver as suas potencialidades, e
de se tornar uma ameixa no pleno sentido. As ameixas verdes são os próprios indivíduos
que acabam tragados na boca dos polícias, isto é, nas mandíbulas de um estado
policial. A outra alegoria provém da experiência profissional, acabada a
universidade, de Kurt. Entra como engenheiro para um matadouro. Descobre,
então, que os trabalhadores tragam o sangue dos animais mortos, o que o
perturba profundamente. Essa vampirização das vítimas – os animais mortos
tornam-se, como as ameixas verdes, uma imagem das pessoas perseguidas pelo
estado policial – por parte dos trabalhadores do matadouro torna manifesto que
o poder opressivo não se limita aos aparelhos de estado, mas que a própria
população se torna uma roda no mecanismo da opressão. No processo, porém, o que
mais horrorizava Kurt era a aceitação das famílias da situação. As próprias
crianças eram já cúmplices dos pais e não almejavam outra coisa senão o
matadouro. É este universo mortal que sustenta as primeiras e a últimas frases
do romance: Emudecemos e tornamo-nos desagradáveis, disse Edgar, falamos e
tornamo-nos ridículos. Num espaço concentracionário ninguém sabe o que
fazer com o discurso, com a luz do logos.