quarta-feira, 31 de agosto de 2022

A Garrafa Vazia 100

Ana Hatherly, sem título, 1970

Devolvo ao chão a poeira

de vidro, os despojos

do copo bebido

até à última borra,

o ácido do vinagre

a encrespar a garganta,

o esquecimento a dilacerar

a carne do coração,

a morte como um instante

feito de luz e pólen

roubado à garrafa vazia,

ao bramido de uma rosa.

 

Agosto de 2022 

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Sonhos numa noite de Verão 32

Rodney Smith, Gary Descending Stairs, 1995
Era uma canção que todos conheciam. Ouvia-a, e as palavras que dela deslizavam abriam-me o coração. Rumores vindos de longe ou ruídos metálicos nascidos na rua interrompiam-me o prazer da escuta. A canção terminava, mas logo recomeçava e com ela vinham novos rumores e outros ruídos. Sempre que a canção começava, uma mulher, a mais bela mulher, descia as escadas da casa em frente. Tinha um ritmo solene, mas mal os rumores ou os ruídos se interpunham, ela transformava-se numa harpia. Então o coração acelerava, e eu gritava: estou morto, ela vem comer-me a carcaça. A canção acabava e ela desaparecia, para voltar de novo, bela, até que uma sirene me acordou e o espírito voltou para esta casa solitária perdida no ermo dos campos. Pousado num penhasco, um velho grifo sondava a paisagem.

sábado, 27 de agosto de 2022

O problema colocado por Sanna Marin

Um vídeo onde se vê a primeira-ministra finlandesa, Sanna Marin, numa festa particular, com um comportamento exuberante incendiou as redes sociais. Defensores e detractores esgrimiram sentimentos mais do que argumentos. A visada defendeu-se dizendo “Dancei, cantei, festejei. Coisas perfeitamente legais”. Apesar do cargo político que ocupa, quer ter uma vida normal: “Tenho uma vida familiar, uma vida profissional e tenho tempo livre para passar com os meus amigos”. Existirá aqui um problema político ou apenas uma manobra rasteira da oposição? Caso se confirme a afirmação de Sanna Marin de que não consumiu drogas, subsiste mesmo assim um problema sobre como deve um governante conceber a sua persona.

Um dos valores políticos fundamentais, em Roma, era a gravitas (gravidade). É uma das virtudes que pertencia aos costumes dos antigos, isto é, à tradição. O campo de significação da gravitas remete para a ideia de peso, de dignidade, de contenção e de rigor moral, bem como de responsabilidade na acção. Esta visão implica uma concepção sacralizada do poder político e, também, a ideia de o governante não ser da mesma natureza que os governados. O governante é o pastor, os governados constituem o rebanho. Outra perspectiva pode ser derivada da visão moderna que vê o poder político como o resultado de um contrato entre iguais, pelo qual alguns desses contratantes são investidos de poder político. Nesta perspectiva, a da democracia liberal, não há sacralização do poder e o governante não é um pastor, mas um funcionário investido temporariamente num cargo.

Percebe-se que a forma como Sanna Marin entende o poder se inscreve na perspectiva contratualista. É uma funcionária e não uma pastora do rebanho finlandês. Cumpre um contrato político, não é agente de um poder sacralizado. Sendo assim, nada a dizer do seu comportamento. A gravitas é dispensável fora de funções. O problema, porém, é outro. Durante muito tempo, as democracias liberais viveram sob a cobertura da visão tradicional do poder. Os governantes democráticos deviam ostentar gravitas e eram reconhecidos como pastores que não se confundiam com o rebanho dos governados, como se possuíssem ainda uma aura sacral. A questão que o comportamento de Sanna Marin coloca é interessante: será que as democracias liberais subsistirão se os governantes perderem a gravitas e a aura sacral, se se tornarem meros funcionários, se se comportarem como os governados? Esta, devido ao confronto entre regimes autoritários, que apelam à gravitas e à sacralidade do poder, e regimes liberais, é, nos dias que correm, uma questão fundamental.

domingo, 21 de agosto de 2022

Nocturnos 86

Guy Le Querrec, Paris, Rue Louis Morard, 1989 (Magnum Photos)

A noite é um oceano de escuridão pontuado por breves arquipélagos de luz. Na fronteira, um gato balança em instável equilíbrio. Hesita entre a oferenda do calor luminoso e o mar de trevas onde se fundirá no silêncio nocturno para espiar a cegueira com que as presas se entregarão nas suas garras.

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

A Garrafa Vazia 99

Mário Cesariny, Soprofigura, 1947

Observo as núpcias de sangue,

a inocência a deslizar

pelos trilhos

das noites de insónia.

Caminhos azedos,

ruas onde se debruçam

sobre descuidados transeuntes

putas pobres,

quase virgens na infecta

pulsação do desejo

 

Agosto de 2022

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Herta Müller, A Terra das Ameixas Verdes

 

Herztier (1996) é um romance da escritora alemã, nascida na Roménia, Herta Müller, prémio Nobel (2009). Literalmente, o título original significa coração animal. Em França, o título escolhido foi Animal du Coeur, em Espanha, La bestia del corazón, e em inglês, The Land of Green Plums. A tradução portuguesa (1999) seguiu a inglesa. O romance começa e acaba com as mesmas palavras: Emudecemos e tornamo-nos desagradáveis, disse Edgar, falamos e tornamo-nos ridículos. Esta estratégia confere à narrativa uma espécie de ciclicidade, de eterno retorno do mesmo, mas também o sentimento de um círculo fechado. Este cerramento não é um mero exercício de estilo, mas o modo como autora cria no leitor a sensação de opressão existente na Roménia sob a ditadura comunista. Ciclos contínuos de expectativas (a da sempre adiada morte do ditador), mais do que esperanças, e de desesperos, um ambiente fechado, controlado, de onde qualquer liberdade individual fora banida.

Um outro elemento estrutural liga-se ao anonimato da narradora num romance autodiegético. Ela é a principal personagem, mas nunca se sabe o seu nome, enquanto o das outras personagens – Lola, Edgar, Georg, Kurt, Tereza e o capitão Pjele – são conhecidos. Várias recensões da obra vêem nela um romance autobiográfico, devido à existência de traços biográficos comuns à autora e à narradora. O anonimato desta seria uma ocultação do nome da autora. Existe, todavia, uma outra possibilidade de leitura mais interessante. Essa ausência de nome da personagem principal, esse espaço em branco na trama narrativa, permite que ele fique em aberto e possa ser preenchido por qualquer um. Ao espaço fechado da narrativa corresponde o espaço aberto do sujeito da acção. Num mundo opressivo e fechado, num regime totalitário, o lugar da vítima está sempre em aberto, para que qualquer um, se for esse o desejo do poder, o ocupe. O anonimato da narradora significa que aquele lugar não é pessoal e intransmissível. Pelo contrário.

Contrariamente ao que se possa pensar, não se está perante uma obra de matiz ideológico nem perante um romance de tese. Dentro do espaço fechado da narrativa, o que Herta Müller faz é dar a ver o impacto do universo político sobre as pessoas, não apenas nas suas condições sociais, mas, fundamentalmente, nas suas condições psicológicas ou, melhor, na sua ipseidade, isto é, na forma como se constituem enquanto pessoas. Muitas vezes, talvez demasiadas vezes, pessoas que vivem sob regimes totalitários ou autoritários não percebem que a opressão se abate de forma muito insidiosa sobre a construção da personalidade de cada um, mesmo sobre a dos adeptos e sicários desses regimes. Não são apenas os corpos que são presos, torturados, violentados, ou o discurso que é censurado. O que qualquer regime opressivo faz é manietar os indivíduos não lhes permitindo desenvolver, muitas vezes sem que eles próprios percebam, as suas possibilidades mais fundamentais. Neste tipo de regimes, a política não é apenas a política, mas uma forma de rasurar a humanidade e de impedir a pessoa de se descobrir a si mesma. É uma prática sistemática de amputações, mesmo que os corpos pareçam ilesos.

Apesar de a narrativa ser fechada, ela parece pouco estruturada. Não há divisão por capítulos. O texto corre de princípio até ao fim, composto por pequenos parágrafos, quase como se fossem versos que não coubessem numa linha e tivessem de se expandir por várias. Esta sensação é intensificada pela própria natureza imagética da escrita. Por exemplo: Eu puxo o fio, escreve Lola, a coroa de espinhos vira-se para baixo. A mãe canta. Deus tende piedade de nós, e eu puxo para abrir o polegar da luva. Há uma clara preocupação de dar a ver os pequenos gestos, os acontecimentos insignificantes, tudo aquilo que constitui a vida. Há uma atenção hiperbólica ao real, como se essa atenção fosse o outro lado da opressão e, ao mesmo tempo, uma forma de fuga e afastamento do universo concentracionário.

O romance gira em torno de quatro amigos todos com a mesma origem. A narrador sem nome, Edgar, Kurt e Georg. São todos romenos de origem alemã e todos eles tinham pais que fizeram parte das SS nazis, tal como o pai da própria autora. Essa comunidade alemã presente na Roménia era o resultado de acontecimentos políticos, passados no século XIX, que envolveram o Império Austro-Húngaro e o Império Otomano. No romance, a opressão acentua também o conflito de nacionalidades, o choque de culturas, a exclusão dos romenos de origem alemã. O sonho de todos os quatro amigos, depois de terem concluído os cursos superiores, de terem entrado no mundo do trabalho e de dele terem sido excluídos por desagradarem ao regime, era emigrar para a Alemanha. A vida na Roménia tornara-se insuportável, embora eles não tivessem qualquer actividade política digna desse nome. Limitavam-se a cantar canções alemãs, ler livros que não faziam parte do cânone permitido pelo regime ou, no caso de um, de tirar fotografias, que ninguém via, aos autocarros que transportavam presos para os trabalhos de construção das obras do regime. É a insignificância destes gestos e as retaliações que eles suscitam que mostra a natureza totalitária da sociedade romena daqueles dias. Não havia aspecto da vida que não fosse vigiado.

Há, no romance, duas alegorias poderosas, ambas ligadas à morte. Os comedores de ameixas verdes e os tragadores de sangue. Na comunidade camponesa alemã, corria o mito de que se as pessoas comessem ameixas verdes morreriam. Ora, os quatro amigos ficaram espantados quando descobriram na cidade que os polícias, os defensores da ordem do regime, enchiam os bolsos de ameixas verdes e as comiam. Era como se comessem a própria morte e a trouxessem com eles, tornando-os agentes mortais. O poder heurístico da alegoria, porém, não fica por aqui. Uma ameixa verde que é comida não tem o tempo suficiente para desenvolver as suas potencialidades, e de se tornar uma ameixa no pleno sentido. As ameixas verdes são os próprios indivíduos que acabam tragados na boca dos polícias, isto é, nas mandíbulas de um estado policial. A outra alegoria provém da experiência profissional, acabada a universidade, de Kurt. Entra como engenheiro para um matadouro. Descobre, então, que os trabalhadores tragam o sangue dos animais mortos, o que o perturba profundamente. Essa vampirização das vítimas – os animais mortos tornam-se, como as ameixas verdes, uma imagem das pessoas perseguidas pelo estado policial – por parte dos trabalhadores do matadouro torna manifesto que o poder opressivo não se limita aos aparelhos de estado, mas que a própria população se torna uma roda no mecanismo da opressão. No processo, porém, o que mais horrorizava Kurt era a aceitação das famílias da situação. As próprias crianças eram já cúmplices dos pais e não almejavam outra coisa senão o matadouro. É este universo mortal que sustenta as primeiras e a últimas frases do romance: Emudecemos e tornamo-nos desagradáveis, disse Edgar, falamos e tornamo-nos ridículos. Num espaço concentracionário ninguém sabe o que fazer com o discurso, com a luz do logos.

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Nocturnos 85

Nikias Skapinakis, De noite, 1964

Uma noite fêmea, uma noite onde canta o silêncio. Com o seu véu de azeviche, perfurado pela traça estelar, cobre a solidão. Tudo sob o seu império se confunde, para que descanse da azáfama da luz trazida pelo breve parêntesis do dia. Noite mercurial onde dança, como ménade arrebatada, a Terra ungida pelas trevas.

sábado, 13 de agosto de 2022

Crescer para melhorar o clima?


A entrevista, vinda a lume no Público online, de 6 de Agosto, a Alessio Terzi, economista na Comissão Europeia e professor na Universidade de Lille, a propósito da publicação do livro Growth for Good, tem pelo menos um mérito. Terzi diz abertamente que “Precisamos do crescimento para evitar um cenário de conflitualidade, algo que é uma possibilidade muito forte numa era de alterações climáticas”. Sublinha, desse modo, que qualquer alteração ao nosso modo de vida que conduza ao empobrecimento ou anule a expectativa de enriquecimento implicará uma grande conflitualidade, a qual porá em causa o próprio combate à degradação do planeta. Defende que o problema não está no capitalismo, mas no facto de este se apoiar, ao nível energético, em combustíveis fósseis. Será, em última análise, o modelo energético que terá de mudar.

Será que crescimento, no âmbito da economia capitalista, e combate às alterações climáticas são compatíveis? Em abstracto, não existe incompatibilidade entre uma coisa e outra. Os mercados movem-se segundo os interesses dos consumidores. Se estes passarem a comprar apenas o que não tem efeitos nefastos para o ambiente, então as empresas reorientam os seus produtos para satisfazer os compradores. Poder-se-á ainda acrescentar que a economia de mercado possui uma grande plasticidade e capacidade de adaptação à realidade. Contrariamente às economias planificadas, dependentes da burocracia e de decisões centrais, a economia de mercado age, ao mesmo tempo, aos níveis global e local, sendo a tomada de decisão completamente descentralizada ou, melhor, centrada nas empresas que estão no mercado e são sensíveis às suas flutuações. Contudo, esta visão enfrenta pelo menos três objecções.

Em primeiro lugar, os interesses das grandes multinacionais ligadas aos combustíveis fósseis e dos países cuja economia depende da sua exploração. Tanto uns como outros são demasiado poderosos e querem tudo menos uma transformação verde. Em segundo lugar, a inovação tecnológica, apesar de pujante e com grande capacidade de crescimento, não parece ser suficientemente rápida para permitir compatibilizar crescimento económico e protecção ambiental. Por fim, os próprios consumidores são pouco sensíveis à defesa do ambiente, se isso implicar uma alteração dos seus hábitos. O ideal seria um pujante capitalismo verde, num ambiente político de democracia liberal, com alguma regulação estatal, tal como defende Terzi. A realidade, porém, poderá ser bem menos agradável, uma miscelânea de catástrofes, conflitos e crescimento dos Estados autoritários.

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

A Garrafa Vazia 98

Manuel Viola, Batalla nocturna, 1975

Entre o espasmo e o vómito,

deixo o tempo correr

pelo matagal de urtigas

onde lacerado

repouso o corpo.

 

A vida dança sob a luz

porosa do poente.

Sonho, as casas arrasadas,

os dias perdidos,

a garrafa há muito vazia.

 

Agosto de 2022
 

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Michel Houellebecq, Aniquilação

Publicado, em França, no início de 2022, Aniquilação é o oitavo romance de Michel Houellebecq. Como se tornou hábito, o lançamento de um novo romance deste autor gerou uma enorme controvérsia entre defensores e detractores do romancista. No campo da detracção, é sublinhado com insistência o facto do romance ser composto por temáticas diversas que parecem não se encontrarem devidamente soldadas umas nas outras, para que façam sentido estarem presentes numa mesma obra. Aniquilação seria, então, uma obra descosida, e grande parte das páginas desnecessárias. Essas linhas romanescas sem real conexão seriam o terrorismo como ameaça ao mundo ocidental, um terrorismo não identificado e com recurso a uma simbólica satânica do século XIX. Isto aconteceria no período que antecederia as eleições presidenciais francesas de 2027, uma outra linha temática, onde o candidato da maioria actual seria um homem de mão do presidente ainda em funções. Neste ponto, estar-se-ia perante um romance de antecipação e um thriller político. Por fim, o destino do protagonista Paul Raison, o principal conselheiro político do ministro da Economia, um homem chave no triunfo do candidato da maioria perante um adversário do partido da senhora Le Pen. No caso de Paul Raison, o que estaria em jogo seria o seu confronto com o destino, isto é, com o amor e a morte. Para muitos, esta é a parte fundamental do romance, que dispensaria as outras linhas narrativas que, no seu entender, não contribuem para o desenlace romanesco.

Uma outra leitura é possível, começando por não aceitar que o protagonista principal do romance seja Paul Raison, mas a família Raison e seria esta a solda que une as diversas linhas que parecem sem ligação. Não deixa de ser estranho que a generalidade dos comentadores não tenham atribuído qualquer importância ao apelido Raison, a palavra francesa para razão. Falam, muitas vezes, de se estar perante um romance crepuscular, mas parecem não compreender onde está a essência desse crepúsculo, confundindo os efeitos do crepúsculo (o terrorismo, a eutanásia, a diluição dos valores, etc.) com aquilo que o provoca. Ora, é a crise da própria razão – encarnada na família Raison – que gera o imenso crepúsculo a que o mundo ocidental estaria sujeito, na perspectiva do romancista. Édouard Raison, um antigo quadro superior da segurança nacional, um homem que teria tido um importante papel nos serviços secretos franceses, é o pai de Paul, um alto quadro do ministério das Finanças e conselheiro político do ministro Bruno Juge, que procura devolver França à glória económica, de Cécile casada com um notário no desemprego, um casal católico tradicionalista e apoiante do partido da senhora Le Pen. Também Aurélien é um Raison, filho mais novo de Edouard, o mais próximo da mãe, já desaparecida no tempo da narrativa, e como ela restaurador de tapeçarias medievais.

Cada um dos Raison representa uma vertente da razão, tal como o Ocidente, no decurso da sua história intelectual, a entendeu. Edouard representa a razão de Estado marcada pela busca de segurança, uma razão inspirada, em parte, em Thomas Hobbes. Não deixa de ser sintomático que uma das suas leituras seja Joseph de Maistre, o principal pensador da contra-revolução e um defensor do Absolutismo, contra as pretensões do terceiro-estado e a visão liberal do mundo. Paul simboliza a razão económica, cujo protagonista no romance é Bruno Juge, considerado como o melhor ministro da Economia desde Colbert. A referência a Colbert não é um acaso, mas uma afirmação, no campo da Economia, da razão de Estado contra a razão liberal. O Colbertismo é marcado pelo dirigismo estatal da Economia, por políticas intervencionistas e proteccionistas. Tanto Edouard como Paul representam simbolicamente a afirmação da razão de Estado e do Estado-Nação. Aurélien encarna uma razão estética, percebida como incapaz de lidar com a própria existência e os problemas que ela coloca. Uma razão marcada, por outro lado, por laivos de romantismo, manifesto no interesse pela Idade Média. Por fim Cécile, simboliza uma razão prática, preocupada com a família, submetida ao império da fé católica.

O destino dos membros da família Raison fornece uma chave para compreender o que está em jogo. Torna também patente o motivo pelo qual muitas análises vêem em Aniquilação um romance crepuscular e, ao mesmo, tempo uma obra onde existe um sopro de esperança. Édouard, durante todo o romance, está num estado de saúde mais próximo da morte do que da vida, fruto de um AVC. Independente das peripécias que o envolvem, que passam pelo seu rapto, de uma instituição de saúde pública, por parte da família, o que transparece é a doença da própria segurança do Estado. Também a doença que atinge Paul é um sintoma da doença de uma razão económica que se furta ao liberalismo e adopta o proteccionismo em nome do Estado-Nação. Paul não era ministro, apenas um membro do staff, mas seria uma espécie de voz da razão económica. O caso de Aurélien que se suicida torna patente a fragilidade da razão estética que se apoderou de parte do discurso ocidental. Na visão que se desprende do romance de Houellebecq, essa razão é impotente para lidar com os problemas que a existência coloca. Resta Cécile Raison. Nela a razão submete-se à fé, a um catolicismo que não se nega a si mesmo nem se põe em causa. Ela é a única que sobrevive verdadeiramente na tormenta que atinge a família Raison. Só ela resistiu ao processo de aniquilação da família. Há no romance uma visão crepuscular da cultura ocidental, mas é preciso compreender que no crepúsculo existe ainda uma luz, embora ténue. Essa luz é Cécile.

Muitas leituras do romance apontam a existência, nesta obra de Houellebeca, de um princípio de esperança e que este se revelaria no amor entre Paul e a mulher, Prudence, um amor que esteve posto entre parêntesis durante 10 anos, mas que pouco antes de Paul saber do seu estado de saúde se reavivou e foi uma luz na vida dele. Contudo, esse amor não tem qualquer poder salvífico e é impotente para contrariar o destino de Paul. Se o romance é marcado por um princípio de esperança, este só poderá residir em Cécile, isto é, numa conexão entre fé e razão. Também neste romance de Houellebecq se pressente a influência de Joris-Karl Huysmans, o romancista do século XIX que começou no naturalismo, passou pelo decadentismo e acabou numa conversão ao cristianismo. A doença mortal que atinge, no romance, Paul Raison é a mesma que levou à morte Huysmans, uma espécie de sinal de reconhecimento de Houellebecq para com o escritor do século XIX. Raison não chega a dar o passo que deu Huysmans, embora, em certos momentos, o leitor fique com a ideia de que está próxima uma conversão. Contudo, o facto de Cécile ser a única Raison sobrevivente torna manifesto, de um modo claro, onde permanece ainda, para o autor, um sopro de esperança para o Ocidente e, em particular, para França. A salvação não se encontra nem nos delírios estéticos, nem numa razão de Estado que combine a segurança hobbesiana e o intervencionismo económico colbertista, mas nessa aliança entre fé e razão, que um dia deu vida ao Ocidente, mas que se lhe tornou completamente estranha com a vitória do liberalismo. Na verdade, um programa não muito diferente do de Joseph de Maistre.

domingo, 7 de agosto de 2022

Ensaio sobre a luz (94)

Lucien Clergue, Nu at Sam Wagstaff’s, New York, 1976

Nem sempre a luz acolhe a cintilação de um corpo. Nem sempre a nudez se entrega na clareira iluminada. Nem sempre os olhos encontram o objecto do seu desejo. Nem sempre a vida deixa a sombra e se entrega na transparência dos dias luminosos.

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Simulacros e simulações (36)

Berenice Abbott, Light through Prism, 1958-61

Os jogos de luz num prisma nunca deixam de ser um simulacro de uma operação mágica, talvez de um momento da obra alquímica. A realidade é de tal modo surpreendente que acaba sempre por suscitar na imaginação o desejo não apenas de a simular, mas de inventar uma outra realidade, ainda mais surpreendente.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

A Garrafa Vazia 97

Albert Bloch, Jordan, 1946

Em cada vigília tremo

ao beber o vinho

que me há-de derrotar.

 

Sobre a vertigem ergo

uma taça

de onde escorre o medo.

 

A vida é uma sombra

solitária

no coração da morte.

 

Agosto de 2022

 

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Degradação da linguagem e democracia


Foi no blogue Delito de Opinião (post de Pedro Correia, de 24/7/22) que encontrei a seguinte informação: Camões terá utilizados, em Os Lusíadas, 9160 palavras diferentes. Há um século, um português culto poderia conhecer cerca de 10 mil palavras. O léxico-padrão dos escritores actuais é metade disso e um português médio não domina mais de mil vocábulos. O autor da postagem conclui que a contínua compressão lexical empobrece o pensamento e torna-nos menos livres. A conclusão é verdadeira, mas não cobre as consequências que decorrem do empobrecimento vocabular que se assiste ao mesmo tempo que, paradoxalmente, sobe a escolaridade dos portugueses.

O filósofo John Searle chama a atenção, em Da Realidade Física à Realidade Humana, p. 240, para o seguinte facto: “O dinheiro, o governo, a propriedade e o casamento exigem todas a linguagem, mas a linguagem não exige qualquer uma delas”. Depois imagina duas situações. Na primeira, refere que se “um antropólogo volta da bacia amazónica e diz que estudou uma tribo que tem linguagem, mas que não tem dinheiro, propriedade privada ou governo, podemos aceitá-lo”. Essa aceitação não seria possível se ele afirmasse que esses seres humanos “têm sistemas bastantes elaborados de governo, de propriedade privada e dinheiro, mas não têm linguagem”. Uma afirmação absurda. Com isto, Searle demonstra que a linguagem é a instituição primária, da qual todas as outras dependem necessariamente.

No actual estado do mundo, parece haver uma correlação entre a afirmação dos populismos políticos e a compressão da linguagem dos cidadãos. Nas democracias liberais, tudo repousa na escolha feita pelos eleitores. Ora, se tanto as elites políticas como as pessoas comuns sofrem de uma linguagem pobre, então não será de admirar que os eleitores, perante os complexos problemas existentes, se deixem atrair pela linguagem estereotipada dos slogans e das frases feitas. A indigência da linguagem política significa, porém, muito mais que uma degradação estética do discurso.

A pobreza da linguagem política representa também uma corrupção das instituições democráticas. Estas assentam num complexo jogo de equilíbrios, o qual exige um apreciável domínio linguístico para ser entendido. Por exemplo, para se perceber coisas como a independências dos diversos poderes ou o facto de uma vitória eleitoral não dar aos vencedores todo o poder, mas antes um poder reduzido e vigiado. Quando se assiste a uma contínua erosão da linguagem, não podemos esperar senão que as instituições democráticas, que se fundam no discurso, se pervertam, abrindo o caminho que substituirá a palavra pela violência.