Publicado, em França, no início de 2022, Aniquilação é o oitavo romance de Michel Houellebecq. Como se tornou hábito, o lançamento de um novo romance deste autor gerou uma enorme controvérsia entre defensores e detractores do romancista. No campo da detracção, é sublinhado com insistência o facto do romance ser composto por temáticas diversas que parecem não se encontrarem devidamente soldadas umas nas outras, para que façam sentido estarem presentes numa mesma obra. Aniquilação seria, então, uma obra descosida, e grande parte das páginas desnecessárias. Essas linhas romanescas sem real conexão seriam o terrorismo como ameaça ao mundo ocidental, um terrorismo não identificado e com recurso a uma simbólica satânica do século XIX. Isto aconteceria no período que antecederia as eleições presidenciais francesas de 2027, uma outra linha temática, onde o candidato da maioria actual seria um homem de mão do presidente ainda em funções. Neste ponto, estar-se-ia perante um romance de antecipação e um thriller político. Por fim, o destino do protagonista Paul Raison, o principal conselheiro político do ministro da Economia, um homem chave no triunfo do candidato da maioria perante um adversário do partido da senhora Le Pen. No caso de Paul Raison, o que estaria em jogo seria o seu confronto com o destino, isto é, com o amor e a morte. Para muitos, esta é a parte fundamental do romance, que dispensaria as outras linhas narrativas que, no seu entender, não contribuem para o desenlace romanesco.
Uma outra leitura é possível, começando por não aceitar que o protagonista principal do romance seja Paul Raison, mas a família Raison e seria esta a solda que une as diversas linhas que parecem sem ligação. Não deixa de ser estranho que a generalidade dos comentadores não tenham atribuído qualquer importância ao apelido Raison, a palavra francesa para razão. Falam, muitas vezes, de se estar perante um romance crepuscular, mas parecem não compreender onde está a essência desse crepúsculo, confundindo os efeitos do crepúsculo (o terrorismo, a eutanásia, a diluição dos valores, etc.) com aquilo que o provoca. Ora, é a crise da própria razão – encarnada na família Raison – que gera o imenso crepúsculo a que o mundo ocidental estaria sujeito, na perspectiva do romancista. Édouard Raison, um antigo quadro superior da segurança nacional, um homem que teria tido um importante papel nos serviços secretos franceses, é o pai de Paul, um alto quadro do ministério das Finanças e conselheiro político do ministro Bruno Juge, que procura devolver França à glória económica, de Cécile casada com um notário no desemprego, um casal católico tradicionalista e apoiante do partido da senhora Le Pen. Também Aurélien é um Raison, filho mais novo de Edouard, o mais próximo da mãe, já desaparecida no tempo da narrativa, e como ela restaurador de tapeçarias medievais.
Cada um dos Raison representa uma vertente da razão, tal como o Ocidente, no decurso da sua história intelectual, a entendeu. Edouard representa a razão de Estado marcada pela busca de segurança, uma razão inspirada, em parte, em Thomas Hobbes. Não deixa de ser sintomático que uma das suas leituras seja Joseph de Maistre, o principal pensador da contra-revolução e um defensor do Absolutismo, contra as pretensões do terceiro-estado e a visão liberal do mundo. Paul simboliza a razão económica, cujo protagonista no romance é Bruno Juge, considerado como o melhor ministro da Economia desde Colbert. A referência a Colbert não é um acaso, mas uma afirmação, no campo da Economia, da razão de Estado contra a razão liberal. O Colbertismo é marcado pelo dirigismo estatal da Economia, por políticas intervencionistas e proteccionistas. Tanto Edouard como Paul representam simbolicamente a afirmação da razão de Estado e do Estado-Nação. Aurélien encarna uma razão estética, percebida como incapaz de lidar com a própria existência e os problemas que ela coloca. Uma razão marcada, por outro lado, por laivos de romantismo, manifesto no interesse pela Idade Média. Por fim Cécile, simboliza uma razão prática, preocupada com a família, submetida ao império da fé católica.
O destino dos membros da família Raison fornece uma chave para compreender o que está em jogo. Torna também patente o motivo pelo qual muitas análises vêem em Aniquilação um romance crepuscular e, ao mesmo, tempo uma obra onde existe um sopro de esperança. Édouard, durante todo o romance, está num estado de saúde mais próximo da morte do que da vida, fruto de um AVC. Independente das peripécias que o envolvem, que passam pelo seu rapto, de uma instituição de saúde pública, por parte da família, o que transparece é a doença da própria segurança do Estado. Também a doença que atinge Paul é um sintoma da doença de uma razão económica que se furta ao liberalismo e adopta o proteccionismo em nome do Estado-Nação. Paul não era ministro, apenas um membro do staff, mas seria uma espécie de voz da razão económica. O caso de Aurélien que se suicida torna patente a fragilidade da razão estética que se apoderou de parte do discurso ocidental. Na visão que se desprende do romance de Houellebecq, essa razão é impotente para lidar com os problemas que a existência coloca. Resta Cécile Raison. Nela a razão submete-se à fé, a um catolicismo que não se nega a si mesmo nem se põe em causa. Ela é a única que sobrevive verdadeiramente na tormenta que atinge a família Raison. Só ela resistiu ao processo de aniquilação da família. Há no romance uma visão crepuscular da cultura ocidental, mas é preciso compreender que no crepúsculo existe ainda uma luz, embora ténue. Essa luz é Cécile.
Muitas leituras
do romance apontam a existência, nesta obra de Houellebeca, de um princípio de
esperança e que este se revelaria no amor entre Paul e a mulher, Prudence, um
amor que esteve posto entre parêntesis durante 10 anos, mas que pouco antes de
Paul saber do seu estado de saúde se reavivou e foi uma luz na vida dele.
Contudo, esse amor não tem qualquer poder salvífico e é impotente para
contrariar o destino de Paul. Se o romance é marcado por um princípio de
esperança, este só poderá residir em Cécile, isto é, numa conexão entre fé e
razão. Também neste romance de Houellebecq se pressente a influência de Joris-Karl
Huysmans, o romancista do século XIX que começou no naturalismo, passou pelo
decadentismo e acabou numa conversão ao cristianismo. A doença mortal que
atinge, no romance, Paul Raison é a mesma que levou à morte Huysmans, uma
espécie de sinal de reconhecimento de Houellebecq para com o escritor do século
XIX. Raison não chega a dar o passo que deu Huysmans, embora, em certos momentos,
o leitor fique com a ideia de que está próxima uma conversão. Contudo, o facto
de Cécile ser a única Raison sobrevivente torna manifesto, de um modo claro,
onde permanece ainda, para o autor, um sopro de esperança para o Ocidente e, em
particular, para França. A salvação não se encontra nem nos delírios estéticos,
nem numa razão de Estado que combine a segurança hobbesiana e o
intervencionismo económico colbertista, mas nessa aliança entre fé e razão, que
um dia deu vida ao Ocidente, mas que se lhe tornou completamente estranha com a
vitória do liberalismo. Na verdade, um programa não muito diferente do de
Joseph de Maistre.
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