Um vídeo onde se vê a primeira-ministra finlandesa, Sanna Marin, numa festa particular, com um comportamento exuberante incendiou as redes sociais. Defensores e detractores esgrimiram sentimentos mais do que argumentos. A visada defendeu-se dizendo “Dancei, cantei, festejei. Coisas perfeitamente legais”. Apesar do cargo político que ocupa, quer ter uma vida normal: “Tenho uma vida familiar, uma vida profissional e tenho tempo livre para passar com os meus amigos”. Existirá aqui um problema político ou apenas uma manobra rasteira da oposição? Caso se confirme a afirmação de Sanna Marin de que não consumiu drogas, subsiste mesmo assim um problema sobre como deve um governante conceber a sua persona.
Um dos valores políticos fundamentais, em Roma, era a gravitas (gravidade). É uma das virtudes que pertencia aos costumes dos antigos, isto é, à tradição. O campo de significação da gravitas remete para a ideia de peso, de dignidade, de contenção e de rigor moral, bem como de responsabilidade na acção. Esta visão implica uma concepção sacralizada do poder político e, também, a ideia de o governante não ser da mesma natureza que os governados. O governante é o pastor, os governados constituem o rebanho. Outra perspectiva pode ser derivada da visão moderna que vê o poder político como o resultado de um contrato entre iguais, pelo qual alguns desses contratantes são investidos de poder político. Nesta perspectiva, a da democracia liberal, não há sacralização do poder e o governante não é um pastor, mas um funcionário investido temporariamente num cargo.
Percebe-se que a forma como Sanna Marin entende o poder se inscreve na perspectiva contratualista. É uma funcionária e não uma pastora do rebanho finlandês. Cumpre um contrato político, não é agente de um poder sacralizado. Sendo assim, nada a dizer do seu comportamento. A gravitas é dispensável fora de funções. O problema, porém, é outro. Durante muito tempo, as democracias liberais viveram sob a cobertura da visão tradicional do poder. Os governantes democráticos deviam ostentar gravitas e eram reconhecidos como pastores que não se confundiam com o rebanho dos governados, como se possuíssem ainda uma aura sacral. A questão que o comportamento de Sanna Marin coloca é interessante: será que as democracias liberais subsistirão se os governantes perderem a gravitas e a aura sacral, se se tornarem meros funcionários, se se comportarem como os governados? Esta, devido ao confronto entre regimes autoritários, que apelam à gravitas e à sacralidade do poder, e regimes liberais, é, nos dias que correm, uma questão fundamental.
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